quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Via Lacta

“"Ora (direis) ouvir estrelas!” 
Olavo Bilac, “Via Láctea” 

 Ontem perdi o senso após o jantar. Colocávamos a estrela na árvore de natal para nos guiar o horizonte. Angulosa, brilhante, quase o menino Jesus reencarnado quando a luz acabou e a estrela não quis brilhar.

Peguei o sem fio na mão. Não funcionava sem eletricidade. Procuramos o celular, no escuro. “Tem como ligar para ele?”, não tinha. Demorados dez minutos para tateá-lo.

Ligamos para a central de energia elétrica. “Em duas horas estará estabelecida”. Mas como? Perguntei. “Duas horas, senhora”. Senhora. Explodiu a memória juvenil da voz fina. Voz de viado. Voz de bicha desmunhecando. Por que malditas duas horas? “O senhor não precisa ser hostil. É um tempo limite”.

Então, saí de casa. O bairro todo na escuridão e eu caminhando, as estrelinhas zombando de mim lá em cima. Olhei no relógio, eram quase dez. Olhei para a frente, as coxas doendo em razão do caminhar rápido, eu não chegaria a tempo.

As luzes dos carros deixavam sombras de meu corpo no chão. Sentia o vento beijando-o com a velocidade. Volta e meia alguém morre, passa no Datena, mas tanto faz. Mais vale uma alma rasgada no sangue do pneu do que uma verba não desviada para pavimentar o acostamento. Estamos acostumados.

Estava suando, reclamando por todos os poros. As luzes acabaram, demorariam duas horas. Perderia o jogo, a bebida estaria sabotada e a casa tão quente como se envolvida em um cobertor felpudo. Cinco minutos. Vamos, gordinho, ande. Não adianta correr. Gordo não corre, saibam disso. Ande um pouco mais rápido, perca o ônibus, a hora, a estação, mas não se esforce e não obrigue o mundo a ver o desastre das banhas subindo e descendo, trombando em si mesmas e escurecendo de suor as camisas mal-lavadas.

Aos três minutos, avistei o posto visível na escuridão. Cheguei à lojinha arfando, achando que não passaria deste Natal. A moça com cara de viciada em metanfetamina deve ter me dado um olhar de desdém, não vi, mas conhecia o olhar de outras vezes. Ouvi apenas um “estamos com o sistema fora do ar”

Eu queria lhe levantar o dedo e dizer: “escuta aqui, sua vadia”, mas não o fiz. Na escuridão, só havia vultos. Então, eu aproximei do balcão e lhe perguntei novamente por quê, tentando ouvir pacientemente. Enquanto fingia ouvir a lorota que culpava a falta de luz, retirei o dinheiro de meu bolso e, lentamente, coloquei o produto no bolso com o mesmo cuidado.

Agradeci e sai.

Caminhei um quarteirão sem olhar para trás. Eu dispararia se pudesse correr. Mas caminhei lentamente para casa.

Toquei meu bolso direito, sentindo-o, quase chamando meu nome. Deslizei até o bolso e retirei-o com cuidado. O papel rasgou e quase dei uma dentada no outro, de alumínio, dentro dele. Então, mordi. Uma mordida glutona, enchendo-me a boca com aquele sabor adocicado, suave, a hóstia de minha salvação.

Estava saindo da linha, mas era um pouco tarde para chorar. Pensei no doutor me dizendo para evitar os doces. Que a dieta era algo sério. Mas eu já tinha perdido três quilos que engordei nos últimos meses por conta do stress, da lasanha congelada, dos problemas familiares, do desgraçado do oficial de justiça querendo embargar minha casa, me dei a esse luxo.

E, ali, no fim de minha via Lacta, comi o chocolate com a paixão dos amantes. Lambendo a embalagem antes de descartá-la na avenida. Feliz como um César ao comandar seu exército. A alegria em centímentros de gordura, que se acomodaria feliz na parte cententrional de minha pança que começava a diminuir.

Então, olhei as estrelas. Aqueles pontinhos brilhantes lá de longe falando comigo em picos de açúcar e bombons de chocolate. Estradas pavimentadas por mousses de maracujá e montanhas de chantilly e eu me dei conta de como gostaria de estar dentro do conto de João e Maria, sonhando com a casa da bruxa. Nem sei como cheguei em casa.

As luzes voltaram quando estava na porta. O vizinho de cima gritou “Vai, Flamengo” ainda que o time não jogasse naquela noite. As cervejas estavam chocas. Ela estava deitada na frente do ventilador.

- Onde foi? – me perguntou.

- Ao paraíso, mulher, ao paraíso.

E ela me olhou com interrogação enquanto eu ainda lambia os beiços.

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