quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

piés descalzos

Ela chamava atenção pelas ruas. Quando eu era pequeno, não importa onde estivesse, todos paravam para olhar a moça que andava descalça pela cidade. Minha mãe me chamava sempre a porta da loja para junto com os funcionários observá-la de longe. Era um ultraje.

Especulavam, alguns diziam que era verdade, que ela era rica. As roupas não mentiam essa história. Fofocavam que era um tanto quanto louca. Louca da vida, não da cabeça. Os pés descalços confirmavam sua maneira de lidar com os outros. Passos firmes sobre o asfalto violento.

Eu criança imaginava como ela poderia suportar. Não os olhares, que ainda era novo para compreender como se julga o diferente. Pensava nos pés. Nas ruas mal compostas da cidade, no lixo, nos vidros, e ela descalça, indiferente. Lembro que retirava meus sapatos e, até levar bronca de minha mãe, andava pela loja sem eles. Queria sentir o que ela sentia, ser capaz de estar descalço, livre.

Não me lembro quando preferi os pés descalços aos chinelos. Nunca me acostumei com aqueles que ficam entre os dedos e sandálias me machucavam. Minha vó dizia ser culpa de meu pé, gordo demais para vesti-las.

Sempre que possível eu retirava os tênis e caminhava pela casa de meias ou descalço. Lembro-me até hoje das broncas pela falta de chinelo, da insistência inútil de que as meias se sujam rápido. Era por isso mesmo que eu as usava. Pela liberdade de sujá-las sem nada em meus pés além delas.

Descalço sempre recordo essa moça. Prevejo a sensação de ter pés livres em conflito com o fardo do julgamento de outros. Vejo-a calçando sapatos em casa, rindo da contradição.

Ela perdeu seu título de lenda quando tornei-me adolescente. Nunca mais a vi, nem mesmo compreendi a razão daqueles pés descalços. Embora tenha pensado muitas vezes que era sua maneira de liberdade. Ponderando que ela, ao contrário de muitos que decidem viver em proteções, preferia a vida sem barreiras de contato.

Parece bobagem, sei disso. Mas não consigo não rir cada vez que lavo meus pés sujos. Riso frouxo e despreocupado. Cúmplice dessa mulher que nunca conheci.

3 comentários:

  1. Lendo esse extrato de vida real, a viagem pela cronica torna-se ainda mais interessante.

    A sua imagem caminhando no corredor da saudosa casa da sao goncalo veio nitida a mimha mente tb.

    Ri ao tentar imaginar a dona maria falando sobre a gordura do seu pe.

    Personagens reais em fatos narrados com muita categoria. Adoro sua narrativa pq vc envolve minha atencao!

    Saudade Thi
    Bjo!

    PS: "Louca da vida, não da cabeça." - AMAZING

    bjao, saudades!

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  2. a sensação de ter pés livres, em conflito com o fardo do julgamento de outros...

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