sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Jogo dos deuses - Parte 2


Crale apontou dois dedos para Dargius, acumulando energia vital na ponta de suas unhas. A maga liberou, sentindo um leve formigamento na mão esticada, o encantamento e viu dois pequenos feixes de luz piscarem na direção do guerreiro.
Dargius agachou-se com velocidade impressionante, mas não rápido o suficiente para  desviar da força arcana disparada contra ele. Sentiu o impacto quebrar duas costelas esquerdas e deixou o corpo tombar para o lado, caindo com o rosto sobre uma das raízes que se erguiam da terra. “Você não quer fazer isso”, ele disse com uma voz surpreendentemente segura. Podia sentir o segundo ataque sendo preparado. “Crale, há alguma coisa lá embaixo clamando por nós e não podemos ignorar.”
“Nós devemos ignorar assuntos que nos desviem das ruínas, Dargius. Foram as ordens reais!”, ela gritou de volta. Em seus dedos, outra magia acumulava força. Em seu íntimo, tentava acalmar-se. Nada de bom surgiria de um luta entre os dois.
“Chega, vocês dois”, Rasg comandou. Ironicamente, nos momentos de maior indecisão e impasse, o bárbaro era o que chegava mais perto da razão. Rasg transformava-se sempre que uma tempestade atingia o grupo, mantendo a calma e tomando as melhores decisões prováveis. Era o completo oposto do monstro letal em batalha. “Eu não sei se você irá conosco”, disse para Crale, “não posso continuar sem minha espada e aquela bosta de aranha está em algum lugar aí dentro.” Olharam para cima e viram um buraco no casco da gigantesca árvore. A aranha com a espada cravada em seu exoesqueleto havia desaparecido de vista. “Sem mencionar o nosso Rastreador”, dirigiu um olhar cerrado para Dargius.
O guerreiro ficou sobre as próprias pernas e apalpou a região atingida, sem realizar esforços para esconder a dor. Andou devagar até o buraco pelo qual havia jogado Telassa e olhou para baixo. “Telassa!”, gritou e esperou pela resposta do Rastreador.
Dargius!
A palavra explodiu em seu cérebro e ele deu um pulo para trás, o coração batendo como um cavalo em plena corrida.
“Vamos logo com isso”, Crale abriu a mochila e pegou a longa corda que carregava, sem demonstrar qualquer sinal de que havia escutado a voz uma vez mais. Ela amarrou uma das pontas na raiz mais próxima do buraco feito por Dargius e completou o nó com um forte puxão, verificando se a corda estava firme o suficiente. “Pegue, vá na frente.” Suas palavras saíam como faíscas contra o guerreiro, que obedeceu prontamente.
“Da próxima vez que você lançar uma magia contra mim”, quase tocava a testa da elfa, “sera a última”. Crale sabia que não eram palavras vagas, mas sim uma promessa, quase uma maldição jogada sobre eles: uma promessa fadada a ser cumprida.
Rasg ajudou a amarrar a corda na cintura de seu companheiro e olhou para cima, procurando pela criatura que ficara com sua espada encravada. Não gostava da idéia de desviar o caminho da missão que haviam recebido diretamente de Laurecon, mas perder aquela espada era uma perspectiva que ele simplesmente não poderia aceitar, sem considerar que aquela voz poderia ser uma armadilha, uma maquinação maléfica de seres poderosos. Rasg odiava controladores de mentes. E também odiava a idéia de descer amarrado pela corda até um lugar desconhecido, provavelmente infestado por insetos do tamanho de seu próprio corpo. Mas era o necessário, não apenas se quisesse recuperar a arma com a qual crescera, mas também para resgatar o Rastreador. Desejou ter as palavras de Crale para filosofar sobre aquele momento e suspirou, desanimado. Mal tinha as palavras certas para manter Crale e Dargius longe de estrangular um ao outro.
Passados quinze minutos, Rasg encostava os pés no que parecia ser uma caverna dentro da árvore. Estavam todos no interior do solo, em um longo túnel que não poderia ser natural. Raízes saíam por todos os lados do corredor e pequenos insetos passavam por eles quase de forma constante. Um cheiro úmido e ácido chegava até eles e provocava uma leve náusea no bárbaro.
Crale fez um leve movimento com as mãos e a corda desatou o nó, como animada, e voltou para as mãos da elfa. “Sinto uma magia forte aqui dentro. Dargius, lidere o caminho e vamos sair rápido daqui. Não estou gostando de como entramos aqui, parece que fomos manipulados.”
Uma faísca se soltou das duas pedras que o guerreiro carregava e em questão de segundos uma chama firme ocupava o fim da tocha em suas mãos. O fogo revelou pouco mais do que ele e Rasg podiam ver, apenas mostrando que o corredor continuava alguns metros além do que enxergavam; a elfa via muito além do que os dois humanos e podia visualizar uma curva atrás deles. “Para esse lado”, ela indicou.
Andaram por meia hora sem que o túnel acabasse. O solo fofo se mostrava incômodo para Dargius, pesado por causa da armadura que vestia. Cada passo sugava sua energia e, em pouco tempo ele estava ofegante. “Está tudo bem?”, escutou a voz de Rasg ao longe e teve quase certeza de que indicara positivamente com a cabeça, confuso por uma névoa mental. A voz do bárbaro se misturava com a misteriosa voz que perpetuava no interior da árvore. Em sua cabeça, a voz ficava cada vez mais alta e clara, um canto suave, doce, carregado de luxúria que pedia sua atenção. Precisava chegar naquele lugar, precisava encontrar a fonte da doce, doce voz.
“Uma câmara na frente, talvez mais duzentos metros”, Crale avisou enquanto sacava as duas adagas que portava. Dargius seguiu o exemplo e retirou o gladiu da cintura. Rasg lamentou internamente a ausência de sua espada e agarrou uma pedra que estava perto deles. Avançaram com extrema cautela na expectativa de um ataque iminente.
A câmara, uma grande sala retangular, estendia-se até onde Crale podia enxergar com os olhos élficos. “Definitivamente não natural”, ela disse enquanto estudava o lugar. No centro da sala, um amontoado de folhas, terra e raízes permanecia em paz. Crale cerrou os olhas, procurando qualquer sinal de perigo.
“Um ninho”, disse Rasg.
“O quê?”
“Um ninho”, apontava para as folhas no centro da câmara.
“O melhor é desviar e continuar em nos-”
Antes que pudesse terminar a frase, Crale sentiu o cheiro ácido atenuar-se de forma aguda. Suas reações a fizera agachar e formar um círculo completo com sua perna, derrubando os outros dois companheiros no chão. No momento em que alcançaram o solo, a elfa viu uma bola passar sobre eles, errando suas cabeças por alguns centímetros. O ataque, qualquer que tenha sido sua origem, atingiu a entrada da câmara e um rápido crepitar foi iniciado. Crale viu as pedras e folhas derreterem em contato com a substância lançada. “Ácido”, alertou.
Passos pesados surgiram da outra ponta da câmara e um enorme besouro saiu da escuridão. Cores metálicas tingiam a dura carapaça e um dos três chifres funcionava como defesa, lançando bolas de ácido diante qualquer sinal de perigo. O inseto parou por alguns segundos, talvez analisando as três criaturas que invadiam seu território, decidindo afinal que iria decompor os três corpos, uma vez que estivessem sem vida.
“Ele vai atacar!”, Dargius gritou, quando viu as patas traseiras do besouro se fincarem no solo macio. De fato, o inseto investiu contra o pequeno grupo e os errou por poucos centímetros, separando Rasg dos outros.
A elfa pulou em um ímpeto sobre a carapaça de cores metálicas e forçou as duas adagas, apenas para ter o ataque repelido pela resistência do exoesqueleto. O besouro atirou outra bola de ácido contra Dargius, que deu um longo pula para o lado. Ele lutava para respirar, mas o forte odor do ácido incapacitava seus pulmões.
Sentada sobre o besouro, Crale tentava perfurar a proteção, disparando golpe após golpe no mesmo ponto. Assim que percebeu que seria inútil, ela desceu do monstro, parando do lado do guerreiro e gritou para Rasg: “Tente virá-lo!”
O bárbaro contraiu os músculos e deixou a fúria cega tomar conta de seu corpo. Ele agarrou uma das patas traseiras do besouro e deu um forte impulso com ambas as pernas, virando o inseto para cima dos outros companheiros. Mais uma vez, Dargius e Crale desviaram do corpo colossal e aterrisaram em segurança, mas Rasg sentiu um impacto repentino em seu estômago e foi lançado com pela pata do inseto para cima do ninho, caindo sobre as folhas e terra úmidas.
Ele sentiu algo pressionando suas costas e puxou um osso humano do meio das folhas. Um chiar agudo surgiu de baixo de suas pernas, saindo de centro do ninho, e ele pulou, segurando firme o fêmur que tinha em mãos. Duas garras fecharam-se sobre as folhas em um firme abraço e Rasg viu uma figura humanoide se levantar. Ele tinha pele escura e uma cabeça oval, com duas orelhas para cima, como as de um morcego. Os olhos eram leitosos e duas presas desciam da gengiva superior. A criatura chiou novamente e mecheu as orelhas, pulando em seguida sobre o bárbaro e desviando do golpe desferido com o osso, rasgando a pele de seus braços com os dentes afiados.
Dargius segurou o gladiu com a ponta para baixo e o enterrou fundo na carne macia do besouro que se debatia. O inseto paralisou qualquer movimento instantaneamente um jato de sangue e ácido espirrou do corte, causando queimaduras nas mãos e rosto do guerreiro. Dargius gritou de dor e protegeu, no último segundo, os olhos do játo ácido.
A elfa registrava tudo. O ato estúpido de Dargius, a morte do inseto e as feridas de Rasg causadas pela estranha criatura. Conjurou uma calma forçada sobre seu corpo e foi como se o tempo desacelerasse por alguns segundos. Ela agiu rápido e precisa. Pegou o saco de couro que continha água e derramou um pouco do líquido sobre sua mão. Fechou os dedos molhados e direcionou a misteriosa força natural que controlava suas magias, para lançar, em seguida, três adagas de gelo.
O bárbaro sentiu a peculiar energia no ar e empurrou a cabeça do monstro que estava sobre ele para cima. As três adagas atravessaram a cabeça da criatura e ele caiu, sem vida, para o lado.
Crale colocou a mão, ainda molhada, sobre o rosto de Dargius e deixou parte de sua energia vital fluir para ele, pensando em cenas do passado, algo que mantinha sua mente tranquila. As queimaduras do guerreiro desapareceram. A elfa, envelhida pelos artifícios mágicos, caiu sobre os joelhos e respirou fundo, tossindo em seguida o ácido que entrara em seus pulmões. Sentia-se estranhamente fraca, foram magias de médio impacto e sabia que estava preparada para o esforço necessário. Não entendia a fraqueza em seu próprio corpo.
“Você está bem?”, Dargius perguntou, andando até o bárbaro.
“É só um arranhão”, ele respondeu. Sangue escorria de seus braços e um pedaço de pele jazia pendurado. “Mas aquilo será um problema.” Ambos olharam para onde Rasg apontava e Crale sentiu uma sombrar cair sobre seu peito.
A entrada da câmara estava fechada pelas raízes da árvore, selada de maneira intransponível. Tinham apenas um caminho para seguir e dele, podiam escutar dezenas de chilros idênticos aos da criatura que descançava no ninho.

Talessa abriu os olhos. Não sabia onde estava. Aos poucos o mundo começou a tomar forma para a mente confusa e ele se lembrou da traição de Dargius e de cair alguns metros até chegar no chão fofo do interior da Árvore. Lembrava-se apenas de uma sombra e de uma pancada na cabeça.
A primeira coisa que percebeu foi que estava de ponta cabeça e que seus membros estavam imóveis por pesadas correntes. Acentuou o olfato e farejou. Havia ao menos uma fonte de odor naquela sala, além dele. Sentia o cheiro da terra, de folhas e raízes, de pequenos mamíferos em decomposição. Podia identificar o cheiro de água corrente, passagens de ar e... um cheiro que lembrava seu pai, esquecido em algum lugar trancado em seu cérebro. Era um cheiro terrível, que trazia as piores lembraças para o farejador, um odor corruptível que destruía tudo aquilo que tocava.
Talessa sentiu o cheiro da loucura.
“Um Rastreador?”, ele escutou a voz de um homem, seguida por uma insana risada. “Quantos anos... sim, sim... um Rastreador. Mas que dia especial, especial, especial!” A risada continuou por um longo tempo. “A Árvore está feliz! A Árvore me ama!”
A risada, aguda e aterrorizante, espalhou-se pelo interior da Árvore.

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