sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Beren

As letras estavam embaçadas. Usou a costas da mão para limpar um pouco da terra negra que deixava manchas nas folhas do caderno surrado. Era o seu refúgio, o templo para onde corria quando as balas voavam acima dele. Mas, naquele dia, a fonte de onde retirava a paz interior, mesmo soterrado no turbilhão frenético onde estava enfiado, estava seca. Forçava o olhar, mas as letras continuavam fora de foco.
Em seu íntimo, pensava em todo o horror dos últimos anos. O absurdo da guerra deixa marcas mais profundas do que aquelas provocadas pelas balas. Cicatrizes que flagelam as almas de todos os jovens soterrados pela terra suja do front, almas estocadas pelo tédio e atormentadas pelo medo que os vigiava em todos os momentos. Respirava, tentando saborear o ar, como se fosse o último suspiro, mas uma sobra murchava seu coração e o amanhã parecia tão longe quanto podia imaginar. Algum dia, escondido em seu destino, correria novamente entre as árvores inglesas? Poderia cruzar planícies e rios? Havia futuro em seu futuro?
Ao seu redor, cápsulas ocas: atos de violência que, aos poucos, se tornavam corriqueiros e sem significado, naturais até. Dado certo momento, muitos de seus colegas - rapazes inteligentes e de boa índole - deixavam de distinguir o ato de urinar com o de matar pessoas. Outros eram assassinados à sangue frio, como demônios que haviam escalado a terra, saídos das profundezas de onde foram libertados por uma força maligna. Recusava-se a aceitar o maniqueísmo daquela guerra, ainda que lhe parecesse o caminho mais fácil. Sua moralidade, no entanto, sempre escolhia o caminho mais turbulento. O primeiro passo, dizia, é tudo que preciso para começar a mais incrível das jornadas.
As letras estavam embaçadas. Os sentidos embaralhados. Uma metralhadora vomitava sobre eles seus artifícios mortais e o espírito diminuía. A ferida no braço de um de seus irmãos de arma, deitado há menos de dez metros, fedia e o odor nauseabundo alcançava suas narinas. O cheiro da ferida servia para esconder o ar podre que escapava de seus pés eternamente úmidos. Por um momento imaginou-se em um pântano, rodeado de faces sem vida, mas capazes de voz, vozes que chamavam seu nome, que prometiam a paz que o esperava do outro lado. A saída fácil. Ainda mais fácil do que acender um cigarro e levantar a mão destra. O tiro de um milhão, eles chamavam. Um ticket para casa. Tudo que precisava fazer era esconder a verdade e deixar a vergonha enterrada em seu peito. As feridas que os homens não vêem são as piores.
Acendeu um cigarro e tragou, deixando-se ficar enjoado com a nicotina. Se ao menos pudesse levantar a mão, tudo estaria acabado em alguns dias. Edith estaria na estação e poderia continuar com seus estudos, quem sabe voltar a Oxford para lecionar. Se ao menos fosse covarde o suficiente.
Batucou a caneta no papel surrado. As palavras sem nexo, frases sem emoção. Arrancou todas as páginas escritas e as jogou para o outro lado das trincheiras, para a Terra de Ninguém. Ao menos elas estavam livres da toxicidade das trincheiras. Os pés inchados e doloridos sentiam inveja.
“Ei, Ronald! John, venha aqui!”, alguém gritou.
Fechou o caderno vazio de palavras e andou, com dificuldade. Logo voltaria para seu templo e tentaria escrever, deixando para trás toda aquela loucura da guerra. Pensou em Edith. Pensou em sair daquele hospício e voltar para seus braços ternos.
Correr livre pelas florestas, como um elfo. Beber cerveja como os anões guerreiros de Valhalla.
Na próxima oportunidade, decidiu, escreveria sobre elfos e anões. 

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