domingo, 8 de setembro de 2013

Genética

O sol. A luz sobre as crianças no parque; sombras no chão; mil movimentos ao mesmo tempo. Ele absorveu os minúsculos detalhes daquela cena, exaurindo-a de emoção e mistério. O sol brilhava o calor do verão e em de algum lugar, podia escutar o carro de sorvetes descendo a rua. Algumas crianças corriam para seus pais, apontando para a direção da música alegre. Era um domingo como todos os outros, um dia típico de parque, guloseimas, brincadeiras e um ou outro joelho ralado.
Puxou os óculos escuros do rosto e os pousou ao lado, deixando as retinas se acostumarem com a claridade acentuada. Observou um garoto correndo ao redor dos brinquedos do parque, cruzando balanços, gangorras e pneus, disparando entre outras crianças que jogavam bola ou construíam pistas de corridas para seus carros minúsculos. O garoto vestia uma camiseta estampada com uma imagem quase obscena do Bart Simpson e tinha os cabelos avermelhados, dois dentes lhe faltavam no sorriso, os dois da frente. Ele sorria, explodindo em felicidade. Escapava de qualquer compreensão adulta como alguém poderia experimentar aquele nível de felicidade apenas por estar no parque, .
Virou um pouco a cabeça e observou uma linda menina, com os cabelos escuros em duas tranças, colocando uma boneca Barbie num carro rosa. Era a boneca quem dirigia e não o castrado Ken, notou com uma pontada de humor. Ela vibrava os lábios, dando som ao motor do carro terrivelmente feminilizado. Ao lado dela, outros dois meninos brincavam com espadas improvisadas - clack, clack, clack, clack - e, como se estivessem em câmera lenta, apenas olhou enquanto eles passavam sobre o carro e as bonecas da garota, que começou a chorar desesperada, apontando para o carro quebrado.
Domingo no parque. Um dia qualquer.
Por fim, procurou o próprio filho. Sentiu um aperto no estômago, quando encontrou o pequeno rapaz, sentado ao lado de Laura e jogando bolinhas de gude em um caminho que eles haviam feito. Gabriel olhou para ele e sorriu, abanando uma das mãos. Respondeu e continuou a assistir ao jogo dos dois. Eram as duas coisas mais importantes de sua vida e vê-los juntos, felizes e sorrindo, piorava a o peso que sentia no peito. Crescera tentando entender o egoísmo de seu próprio pai. Como ele podia ir embora, deixar para trás a família que dele dependia de tantas formas? Ainda podia sentir o cheiro forte o pai exalava, como se aquele fosse o odor natural de sua pele, uma mistura de colônia barata com cigarros - camadas e camadas de cigarros acumuladas no seu cabelo, dedos e roupa - um cheiro que impregnava toda a casa e tudo aquilo que ele tocava. Lembrava ainda da barba hirsuta que machucava suas bochechas toda vez que ganhava beijos e carinho.
Alguns anos antes, enquanto procurava por indicações de filmes numa revista, leu um artigo sobre a vida cotidiana de pessoas que haviam perdido membros. O que ficou em sua mente foi o fato de que a maioria dos entrevistados ainda sentiam os membros perdidos. Eles coçavam, doíam, formigavam. Mas era uma dor fantasma, uma sensação tátil… uma lembrança tátil. E era justamente isso que seu pai representava: um cheiro fantasma que, vez ou outra, atingia repentinamente suas narinas.
Seja bom com sua mãe, ele disse numa manhã de sol, parecida com aquela. Sempre, não só hoje ou amanhã. Ela é uma ótima pessoa, ouviu? E merece muito mais do que ela recebe, pode ter certeza. Escute, ele disse mais alta, estapeando o brinquedo de suas mãos. Escute com atenção, meu filho. Seja bom com sua mãe e com quem merecer. Aprenda isso. E coisas boas acontecerão em sua vida. É simples. Não estrague tudo com sua maldita personalidade. Seu pai então se virou, dizendo que estava saindo para comprar cigarros. Ele entrou lentamente no carro e puxou um cigarro do maço estranhamente novo. O vidro baixou e ele escutou as últimas palavras na voz daquele homem de barba grossa: Fique longe dos cigarros, isto é uma merda. O motor explodiu em gás e barulho e o carro disparou até desaparecer de vista. Uma hora se passou, depois a manhã, o dia, a semana. Vinte anos depois, agora um adulto crescido que ocultava uma maldita personalidade, ali estava, sentado no banco do parque, um marasmo como todos os outros desde que o homem aprendeu a não fazer porra alguma num domingo de manhã.
Cresceu para se tornar uma boa pessoa, apesar da ausência paterna - às vezes se perguntava se o certo seria ‘por causa da’. Pagava seus impostos devidamente, levantava cedo todos os dias, fazia café, tomava banho, entrava no carro velho e ia para o mesmo trabalho tedioso. Esforçava-se para ser gentil, ajudou sua mãe até o último segundo de sua vida, segurando a mão em pele e osso, enquanto o câncer lhe roubava o último suspiro; mas, o cigarro. A merda do cigarro.
Em certos momentos, conseguia compreender a fuga de seu pai. O homem era um desastre, descobriu alguns anos mais tarde. Olhando para Laura e Gabriel, jogando bolas de gude, gargalhando juntos, compreendia que era a visão mais linda que podia existir naquela terra esquecida por qualquer divindade que estivesse se divertindo com o sofrimento da humanidade. O pequeno era a coisa mais sagrada de sua vida, o maior acerto de seus atos. E ficar por perto… tinha certeza que iria estragar o que tinham, cedo ou tarde. Estava em seus genes. Coçou a barba que crescia selvagem, apesar da guerra privada que combatiam toda a manhã. Aquele quadro lindo, os dois brincando sob o sol de verão, era o ápice de sua vida, o clímax de tudo que lutara para conquistar. Daqui, meu amigo, é ladeira abaixo.
Escutou o carro de sorvete se afastando do parque; os gritos do menino com a camisa do Bart Simpson; a garota ainda chorando pelo brinquedo partido e o infinito bater das espadas improvisadas - clack, clack, clack, clack. No fundo, escutou a inconfundível gargalhada de Gabriel. Ficou satisfeito, sentiu que sua vida estava completa.
Retirou o lacre da caixa de cigarros que tinha no bolso da camisa e pescou um. Acendeu e tragou profundamente. Algumas mães olharam, irritadas, para o homem que fumava no meio de incontáveis crianças. A sorte dele era que havia ultrapassado a linha da gentileza. Nada mais importava.
Acenou para Laura e moveu os lábios: Comprar. Cigarros, disse sem qualquer som. Ela concordou com a cabeça. Deus, ela é linda.
Apontou um dedo para Gabriel e disparou um revólver invisível. O menino sorriu e atirou de volta.

O carro disparou pela rua e passou pelo vendedor de sorvetes. Em pouco tempo, deixou para trás aquela música irritante.

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