terça-feira, 3 de setembro de 2013

Saga: sem efeito

Getúlio se calou e nada aconteceu. Não esperava inversão dos polos magnéticos, nenhuma outra catástrofe. Desejava que os detalhes lhe dessem ao menos um fingimento como preocupação.

Recordou-se de um filme americano que assistiu, em que a personagem, falando das grandes cidades que não conectam ninguém, contou a história de um rapaz que morreu no transito de um metrô. Permaneceu intocado dentro do vagão por uma noite e um dia inteiro. Imaginaram que estava dormindo.

A princípio, o porteiro traduziu o silêncio de Getúlio como dor de garganta. E depois de breves explicações fracassadas à família sobre o silêncio, utilizou a doença como argumento. Mais fácil apontar o indicador com o pescoço para que aceitassem a ausência de fala.

Aprendeu a falar com os dedos, o corpo, o rosto. Pedia um café apontando para os letreiros. Agradecia os outros com um sorriso grato que se expressava até o canto dos olhos.

Se era naturalmente triste, tornou-se estranho para observadores. No terceiro mês, decidiu-se comunicar por escrito. No bolso, um caderno e um bloco de post it. Frases pontuais, breves, sem perder a ternura.

O teste a que se propôs era consigo e com o mundo. Tornou-se atento com quem respeitava-o sem um olhar acusador. Em silêncio contestou o próprio ruído. Reconhecia melhor sons externos e os próprios sonidos. O ronco da barriga que lhe indicava fome leve, mediana ou imediata. O bocejo entre preguiça e sono genuíno. Um estalar mecânico de dedos que lhe avisava de cansaço. E os risos frouxos pelos próprios sons.

Gostava de como o ar entrava com impacto e passava pelas cordas vocais, vibrando-as de maneira explosiva enquanto sentia um pulsar alegre. O silêncio o apagou. De estranho tornou-se invisível. A experiência inicial, uma provocação em que era cientista e rato se modificou. A sensação de invisibilidade matava-o aos poucos até que fez da clausura do silêncio uma aliada. Decidiu se bastar quando observou que se preocupava demais com os outros e pouco tempo tinha para si.

Nessa noite silenciosa encontrou equilíbrio. Expiou como homem, chorou como criança, brindou como um ébrio aos amigos perdidos e a Laura, sempre Laura, cuspindo pedaços do coração. Pela manhã, engolia-os de novo sem escaras.

Invisível passou a desprezar qualquer um que lhe parecera omisso. Acreditava que não fazer nada também era uma ação. A festa a meia luz sem amigos se tornara uma caverna escura iluminada por si só.

Sentia a alma doente. Nunca esteve tão são. Via a vida dentro de uma redoma. Primeiro o silêncio imposto por si. Depois o julgamento de outros. Sedimentado pela inércia de quem ele gostaria que perguntasse, Getúlio, o que há com você? Não recebi mais notícias suas. As noites o diminuíram até os ossos. Ria da infantilidade, de novo rindo de sentir-se ridiculamente criança, ao desejar que o amor que deu fosse igual ao que receberia.

A primeira frase de Getúlio, a primeira composta com começo, meio e fim, articulada, foi dita dez meses depois do silêncio. Ele não se lembrava do que o fez sair do silêncio. Sentia nas palavras uma revelação, um encontro, um nirvana, qualquer experiência que significasse um rito de passagem, um batismo que separasse o que foi do que é. Fui não sou. Sou não fui. Mas havia um vazio que ainda não sabia preencher, exceto a sensação de que sentia-se mais centrado, firme e sozinho como um párea.



Getúlio e seu silêncio me comoveram. Mais de uma vez senti uma tristeza sem explicação ao saber de sua condição calada. Sentia a opressão de um homem que, feito o monge que ateia fogo em si, em desespero procura uma mensagem. Me vejo dentro daquele homem, na festa acabada esperado uma felicidade que não existe. Me apeguei a ele. Em meus momentos de solidão, converso com Getúlio como se ele fosse parte de mim. Nossos silêncios se completam com amargura.



Minha esposa me espera silenciosa na cama neste momento. E, assim que findar estas palavras, vou me deitar ao seu lado, fazendo o mínimo de movimento possível para não acordá-la. Ao tocá-la ela sentira minha presença e, mesmo em um sono pesado, tocará minhas mãos como quem diz aqui estou. E eu me sentirei amado. Entre a vigília e o sono ainda me sentirei a beira de precipícios. Agarro-me forte a ela, a esposa, não ao abismo. Tentando explorar o que tenho. Minha guia nessa escuridão.

 Quero acreditar que não estou só.

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