quarta-feira, 18 de setembro de 2013

não-narrativa

O editor de camiseta regata, bermuda e chinelos, mexeu as mãos no ar.

- Faça uma não-narrativa – disse.

- O que? – perguntamos – somos escritores – prosseguimos - não dá para fazer uma não-narrativa.

Ele suspirou, como chamando-nos de idiotas e foi em frente.
corr
- Vocês dois são muito apegados a contar história. Blá, blá, blá, histórias, detalhes, a cor do passarinho verde com barbatanas – ele usou barbatanas, o que deixou sua fala mais surreal – azuladas na região setentrional. Escrevam, seus filhos da puta, escrevam, apenas. Deixem essas descrições para a porra do Eça de Queiroz se remexer no túmulo.

Então, eu liguei o computador, o cursor piscando na minha frente – este é o máximo de descrição que saberão – e fiquei pensando no que escrever.  Pensando, pensando, comecei a olhar meu quarto. No calendário, percebi que estamos no dia 18 de Setembro e não tenho mais um puto na carteira. O que tinha na conta bancária gastei em um livro. No sebo. Hellen Garner.

Olhei novamente para o computador. O cursor piscando, piscando, e o silêncio da página. Fui até o navegador, li notícias, terminei em um site de pornografia e, ao perceber, voltei a página em branco. Uma não-narrativa uma ova.

Assim, comecei a escrever a não-história de um rapaz não-agoniado que, em seu não-relacionamento com a não-família, sente-se incomodado por não ter de esconder a não-verdade de sua não-sexualidade. Eu parecia um desses rappers americanos que ficam repetindo a mesma palavra. Fuck. Fuck. Fuck. Fuck. Fuck. E mudavam de tom para bitch, bitch, bitch, bitch.

Quis mandar o não-editor tomar em sua não-bunda. Mas não saberia o que fazer se não ganhasse a grana por este texto. Passaria os últimos doze dias deste mês sem nenhum puto. Alias, mandá-lo tomar na bunda revelava um dos dilemas da necessidade do dinheiro. O papel higiênico acabou ontem, de modo que, ou eu limpo a bunda no chuveiro ou passo no mercado e, com a grana desse texto-encomenda, compro uma quantidade mínima de mantimentos e um papel higiênico que restaure – parcialmente, diga-se – a minha dignidade. Não que não possa ser digno penetrar a mão no próprio rabo, eu só não gosto disso até agora – posso mudar de opinião na crise dos quarenta, ficaremos atentos.

Não estou dizendo que faço apenas pelo dinheiro. É pelo prestígio, pelas mulheres... é pelo dinheiro sim. Estou sem açúcar e tomo meu café com cinco colheres. E o pão de forma - calculei anteriormente - a seis fatias por dia com uma camada margarina, se tornará extinto na sexta – feira. Então, preciso escrever e não mandar o não-editor tomar na bunda.

O cursor piscando me retornou à cena. Maurício e eu levando um malho metafórico do editor.

- Vocês tem de melhorar o estilo, eu quero estilo, esqueça a narrativa – ele joga, nesta hora, um calhamaço de papeis no chão. Pergunto-me quem vai pegá-los depois. Ele é um pouco cênico e isso, as vezes, me incomoda, as vezes me faz rir. Sempre imagino-o em cenas clássicas de filmes famosos. Como ele se sairia sendo o Jack do Titanic? Brandon em Sindicato dos Ladrões? Clark Gable falando honestamente, querida, eu não dou a mínima em E O Vento Levou...?

Liguei para o Maurício.

- Escuta, o que você vai fazer?

- Com o que?

- Com a não-narrativa?

- Já fiz.

- Como assim?

- Tá feita.

- Mas ele falou conosco ontem.

- Eu sei.

- E já fez?

- Sim

- E como fez?

- Evitei narrar que eu costumo narrar.

- Huuuuuuuuuuum – eu me segurei para não dizer nada além disso.

- Não foi difícil .

Filho da puta. Filho-da-eu-consigo-escrever-sobre-tudo-que-o-editor-pede-da-puta.

Eu não sei, eu sou monotemático, entende? Eu pego uma ideia e sigo em frente. Vou fazendo-a, fazendo-a, fazendo-a, até não conseguir mais. Chego a ir pra cama com a ideia. Quem foi aquele pintor que fez o mesmo quadro a vida inteira? Sempre querendo deixar aquele quadro perfeito?

Meu quadro é a destruição das relações. Imagino uma história e vou desconstruindo-a. Fiz um milhão de vezes está narrativa. Casais que vão embora no meio da noite abandonando tudo e a todos, deixando para trás filhos, animais, a si próprios. Sou obcecado pela minha obsessão. Não consigo fugir.

Quando o editor me pede uma história sobre filhos, falo sobre pai e filho que se perderam. Quando quer algo sobre a natureza, simbolizo a natureza morta como um câncer que corroeu a relação. Tudo para mim é destruição. Sou o Michael Bay da escrita. Explosões, explosões, explosões. Bum. Bum. Bum.

Fico me masturbando metaforicamente a cada narrativa. Vou cavocando lá em meados de mil novecentos e pouco quando meu primeiro grande amigo me deixou para trás e crio um personagem como ele. Massacro-o, deixo-o maluco. E, quando finalizo o texto, estou rindo. Ha. Ha. Ha. Sou deus. Você me magoou quando perdemos a amizade e eu estou aqui dominando você. Maltratando você. Enfiando uma banana no seu rabo e você, e você, ainda gosta disso.

Uau.

Não sei  o que seria de mim sem o massacre. Sem ir embora em todas as relações com a sensação infantil de que ganhei. Foi assim desde sempre. Roubando a bola antes do final do jogo. Cuspindo nos outros. Eu não sei ser eu mesmo além disso, além de corroer tudo feito um ratinho. Nhoc. Nhoc. Nhoc.

O editor diz olhe a vida, escrever é observação. Mas eu tenho fome. Quero comer um doce, estou compulsivo por doces, quero fazer sexo com doces e ver minha barriga aumentando a cada estocada. E, francamente, como posso olhar a vida se me falta papel para limpar a bunda? Deveria eu deixar a merda escorrer literalmente como uma maneira nova de observar a vida? Acho que ainda não estou disposto a tentar.

Assim escrevi um texto metafórico de um adolescente que no dia de seu aniversário quer se matar – destruição, destruição – e ele concordou que era uma boa não-narrativa. Mas eu estava contando uma história de qualquer modo, assim assenti com seu comentário e esperei o dinheiro das notinhas caindo em meu bolso.

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