sexta-feira, 24 de agosto de 2012

London Noir 3 - Paradoxo


A porta vermelha atrás de mim estava trancada, eu podia ouvir os dois policiais tentando derrubá-la e, por algum milagre, ela superou seus esforços. À minha frente, o corredor escuro e fétido prolongáva-se até a escada. Cruzei a distância até minha sala em passos largos. Quando entrei pela porta de vidro com meu nome colado, ela estava sentada no meu lado da mesa, um largo chapéu cobrindo os cabelos dourados e o mais profundo dos decotes em um vestido azul. Meu coração parou por um segundo. Novamente, tive a sensação de que havia algo de errado com a mulher de Bob - Darla é esse o seu nome? – tentei dizer algo, mas o ar escapou de minha garganta apenas com um som gutural, quase primata. Malditas mulheres.
Ela portava a foto que ficava sobre a mesa. “As pessoas aceitam um porta-retratos como um lugar seguro para guardar pequenos segredos”, disse enquanto liberava as travas na parte traseira do retrato. “Dinheiro, números de telefones suspeitos, endereços, drogas, senhas, escutas... as possibilidades são muitas para listar nesse momento. E uma foto dessas tem duas possibilidades”, ela levantou a fotografia para minha direção. Olhei, com um aperto em meu coração, o sorriso da criança no balanço, as pernas esticadas e duas tranças soltas pelo movimento pendular; a mulher que a empurrava também sorria e olhos verdes encaravam com ternura para a máquina. Ao fundo, uma praia francesa compunha um cenário bucólico e ao lado de uma cesta de vime recheada de tortas e lanches, a torta de maçã mais doce que já experimentei, uma sombra denunciava-me enquanto fotógrafo. Aquela era a última memória confortável que eu tinha, um lugar aquecido pelo sol que começava a descer no horizonte, o cheiro da grama recém cortada e a risada de minha filha, o som mais doce que já existiu, era o lugar para onde ia quando precisava de conforto e amor. Um outro mundo, uma outra vida. “Primeiro”, ela disse, quebrando o encanto que havia tomado conta de minha mente, “você pode ter encontrado uma foto aleatória na internet para completar o cenário falso que foi construído nessa sala. Afinal, essa é sua vida: mentiras e falsidades; traições, planos e conspirações sussurradas sobre xícaras de café em lanchonetes perdidas no coração da cidade. A foto é perfeita, uma peça quase esperada em uma mesa como essa, um clichê do qual você se utiliza para completar o disfarce de uma vida vazia e sem sentido. Mas há outra possibilidade”, ela girava a cadeira, as pernas à mostra, “um clichê ainda maior para um detetive particular. Uma vida esquecida, soterrada por inúmeras doses de whiskey, estou certa?” Ela leu minhas expressões com precisão fatal. “Bingo.” Os dedos ágeis retiraram o papelão duro que suportava a foto e segurou o pedaço de jornal na frente de seus olhos, lendo rapidamente uma curta reportagem.
Em resumo, uma noite chuvosa e pneus carecas levaram minha família para sempre. Essa é a triste história de Chandler D. Humphring, obrigado por me escutar.
Darla ergueu os olhos do jornal recortado e montou novamente o porta-retratos, guardando a notícia onde ela se encontrava. “Vamos”, ela disse, “eles devem estar perto de entrar no prédio. Pegue o que é essencial e me siga”, ela estava de pé quando terminou a frase, retirando os saltos altos dos pés. Esticou uma mão e entregou-me a foto. Nossos dedos encostaram por um breve segundo e eu senti a realidado ao me redor se desmanchar como os vilões de filmes antigos, quando tinham o rosto derretido por algum raio da morte. A força fugiu de minhas pernas e eu me apoiei na mesa para não cair no chão, quase derrubando o porta-retratos. Darla percebeu o contato e recuou rispidamente o braço. “Desculpe por isso... Sei que não é agradável.”
Escutei vozes e passos apressados no corredor abaixo. Era hora de ir. Peguei a arma que estava na gaveta trancada e a foto, o resto não importava. Pensei em ficar e lugar, esmigalhar a cabeça de um deles com o meu cinzeiro pesado, mas não valia a pena. Acho que são poucas as coisas que justificam tirar a vida de alguém. Darla abriu a janela e começou a descer pela escada de incêndio com pés ágeis e decididos, eu a segui com certa dificuldade, com a fotos e a garrafa presas em uma mão, enquanto segurava o Fedora em minha cabeça com a outra. Ganhamos tempo quando ela puxou um largo vaso até obstruir a passagem. Os dois policiais estavam gritando em nossa direção, iniciando uma alucinada descida. Quando chegamos na calçada, algumas pessoas estavam para fora do Estábulo, olhando para nós, apontando e dizendo palavras que morriam antes de chegar até nossos ouvidos. Foi nesse momento que percebi o destino quase certo que me esperava, respondendo a um homicídio da autoria de um terceiro e resistência, além de fuga e porte ilegal de arma. Darla, no entanto, parecia calma e consciente do próximo passo. Ela me puxou até uma das ruas que cortavam Camden Town e entramos em um carro, um Porsche cinza, modelo 68.
Darla acelerou e o carro cruzou rapidamente as ruas de Londres, despistando qualquer rastro que poderíamos ter deixado. No banco traseiro vi a mala com dinheiro e armas. Olhei para ela, desconfiado. “Você o matou?”, perguntei subitamente.
“Não... Sim.” Ela continuou a olhar para a frente, costurando o tráfego com destreza e precisão. “A mulher de olhos azuis disparou. Não espero que você acredite em mim, mas é a verdade, não fui eu, mas a mulher de olhos azuis... ela surgiu do nada, disse qualquer coisa sobre você e atirou duas vezes. Eu estaria morta também, não fosse por uma Anomalia.”
“Anomalia?”, ela não fazia sentido. Por um breve momento, estudei o rosto de Darla. Seus lábios estavam cerrados em um aperto firme e os olhos grudados no asfalto, livre das sombras que marcam os olhares lunáticos, quem sabe as mesmas sombras que atormentam a alma atormentada dos loucos. São janelas para a alma, não é isso que dizem sobre os olhos? “Anomalia como em paradoxo?”
“Exato, como em paradoxo. Coisas acontecem ao meu redor, Chandler, reações que não deveriam acontecer não raro interagem com a minha realidade. Copos algumas vezes ignoram a gravidade e se estilhaçam no teto; projéteis traçam um caminho irregular ou o disparo sai pela direção errada, atingindo quem apertou o gatilho; estática nas televisões, vozes do passado no rádio e, pelo uma vez, uma transmissão de futebol do futuro... quer saber quem ganha a Copa de 2014? Como eu disse, anomalias. Nós chamamos de Anomalia os eventos que desafiam as regras básicas da física e da química, Chandler. Ou você acha que aquela porta iria segurar o peso de dois policiais treinados?”
“Nós? No que a mulher de olhos azuis me enfiou, Darla?”
“Meu nome não é Darla. É Darla, você poderia afirmar e estaria correto, mas não plenamente. Aqui eu sou a Darla, mas não de onde vim. Pode me chamar de Marvin.”
“Marvin?”
Ela me olhou e sorriu. “Marvin, como o marciano. Nós somos os Passageiros, Chandler.”
Abri a minha boca, indeciso sobre o que perguntar. Dezenas, centenas de indagações eram formadas por segundo e minhas conclusões eram demasiado fantasiosas para sequer serem consideradas seriamente. A porta, pensei, realmente não tinha capacidade para segurar a investida de uma criança, estávamos falando de dois adultos sadios e treinados na arte dos aríetes e em chutar a bunda de pessoas como eu e você. Mas, de alguma forma, eles foram barrados por quase cinco minutos e nunca pensaram em usar outra entrada ou a escada de emergências que os viciados que circulavam aquela área sempre deixavam abaixada. Antes, entretanto, de conseguir fazer pergunta qualquer, o retrovisor do meu lado explodiu em um milhão de pedaços. O som do disparo chegou uma fração de segundo depois. Olhei para trás e vi um largo carro preto, um veículo que nunca havia visto antes. A frente, quase triangular, ganhava a distância em nossa direção com facilidade, apesar da velocidade mantida por Darla. Por Marvin, minha cabeça está um pouco confusa ainda, Estranho. Ela realizou uma brusca curva para a direita e acelerou ainda mais, forçando a capacidade do carro quaso ao seu limite.
“A mala está destravada”, ela disse, tirando cabelo de dentro da boca, “ganhe tempo.” Olhei para ela, incrédulo. “Vamos! Nessa velocidade vamos ser executados com certeza. Apenas não acerte as pessoas, ok?”
Destravei o cinto de segurança e me virei no banco, mantendo a caeça baixa. Quando abri a mala, algumas cédulas voaram e peguei a arma o mais rápido que consegui. A uzi parecia assustadoramente grande em minhas mãos. “Porra, porra, porra...”, repetia como um mantra. Apontei a arma na direção do carro estranho que nos perseguia e apertei o gatilho, despreparado para o recuo que seguiu. Meus braços ergueram repentinhamente e tracei um arco de projéteis. Uma das balas atingiu o capô do carro, sem causar grandes danos, enquanto as outras viajaram livres por Londres. Escutamos o barulho de vidro quebrado e puder ver com o canto dos meus olhos a chuva de cacos que caiu sobre algumas pessoas.
“Cuidado!”, Marvin gritou sem paciência. “Sem vítimas!”
 “Porra, porra, porra...”, continuei. Você pode achar que está preparado para enfrentar esse tipo de situação, vivendo o cotidiano da minha profissão, mas quando as balas começam a voar, como besouros metálicos cortando o ar, suas pernas tremem e o seu cérebro encontra dificuldades em somar dois e dois. Três mãos estavam para fora das janelas do carro, disparando contra nós. Ao menos uma criança de bicileta caiu quando o ombro esquerdo explodiu em sangue. Marvin xingou e me mandou atirar de uma vez. Segurei o cabo negro da arma com firmeza e mirei com segurança. Um breve aperto no gatilho e todo meu corpo tremeu, mas minhas mãos permaneceram no ângulo certo. Uma rajada atingiu o carro, percorrendo toda sua frente e o carro parou com um forte tranco.
Meu alívio, no entanto, durou pouco. Segundos depois, o carro continuava em perseguição e outro veículo apareceu à nossa frente. Marvin parou o carro com suavidade e tomou a metralhadora de minhas mãos. “Anomalias”, ela disse e ficou de pé sobre o couro do banco, o vestido balançando ao veto gelado da cidade, os cabelos formando ondas douradas em sua cabeça. Foi então que o paradoxo nos atingiu. Não foi um golpe sutil como asas de borboletas que causa furacões em outro continente. O paradoxo não se sentia discreto naquele dia, meu amigo, ele nos atingiu como um tapa sonoro, um baterista ensaiando em um apartamento de paredes finas.
Um único tiro no carro que fechava o nosso caminho e ele explodiu, com estrondo e claridade, caindo na faixa ao lado. A onda de calor e energia nos atingiu e Marvin quase caiu, mas ela conseguiu manter o equilíbrio e girou o corpo em 180º, colocando em sua mira os outros persguidores. O primeiro tiro fora impossível, ela acertou uma das rodas e por algum motivo a explosão surgiu. Ela abaixou os braços e disparou novamente. Como mágica, um bueiro ergueu e ascendeu no meio da rua e, na descida, atingiu o motor do carro escuro, causando um arco que o deixou virado na rua. Três homens começaram a se arrastar pelas aberturas dos vidros quebrados e um deles tinha um braço quebrado, o osso pontiagudo para fora da pele, jorrando sangue. Marvin jogou a arma nas minhas mãos e acelerou, deixando para trás um cenário de guerra.
“Aprenda a usar o paradoxo a seu favor”, ela disse depois de algumas quadras. “Se eles tivessem sucedido, estaríamos com uma ou duas balas em nossos cérebros”, afirmou. Não havia razão para duvidar da mulher. Antes eles do que eu, certo?
“Há mais pessoas como você, mais Passageiros?”
“Sim, muitos. E eles existem para nos parar, dizem que somo prejudiciais para a existência. Não têm piedade, Chandler, quando eles chegarem, é matar ou morrer.”
O Porsche contiuou em alta velocidade e a periferia de Londres crescia no horizonte. Era impossível identificar uma casa específica onde todas as construções se pareciam e, em poucos minutos, eu estava completamente perdido. “Para onde vamos?”, perguntei com a voz cansada. Meu café da manhã lutava para escalar minha garganta.
“Para uma nova chance”, ela disse antes de ganhar mais velocidade. “Se você aceitar o preço, toda chance vem com um preço, Chandler.”
Essa foi a última vez que me chamaram por esse nome. Sei que é uma longa história e que a hora corre longa nessa noite fria, mas leia mais um pouco de minhas páginas, pois já estamos no fim e saiba que aceitei o preço. Paguei com minha sanidade.

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