sexta-feira, 10 de agosto de 2012

London Noir 2 - A Dama e o Tempo


Einstein dizia que o tempo é relativo. O mundo da física, quando pensado em modelos micro ou macroscósmicos, onde as massas atingem proporções ridiculamente grandes, altera algumas de suas regras, tão certas e confiáveis em nosso pequeno planeta rochoso. O que o cientista simpática de língua para fora argumentava é que a força gravitacional dessas massas na escala macro tinham uma... bem, força suficiente para alterar o próprio tempo. Pense nisso. Eu espero. Pronto? Fantástico, não é? A gravidade altera o tempo, isso tem de fazer seu cérebro explodir, Estranho. O tempo está passível aos campos gravitacionais e sua passagem é, portanto, relativa. E é nessa palavrinha que eu quero me centrar agora: relativo. O tempo é relativo. Por exemplo, quando aquela puta ergueu a garrafa de Jack e desferiu um golpe em meu crânio, por sorte sem causar hemorragias ou concussões, o tempo praticamente parou. Como nos filmes que passam na TV durante as tardes, quando a personagem principal está no meio da rua e dois faróis aparecem virando a esquina, em alta velocidade. Você, sentado no conforto de seu sofá, gritando em desespero: O carro está vindo, imbecil, saia da frente! Mas o seu protagonista está paralizado pelo medo. É estúpido, não é? No entanto, acontece desta forma. Não desviei do carro, não estiquei as pernas e dei o passo ao lado para não ser alegoricamente atropelado. Não. Eu fiquei olhando, para os seios da mulher enquanto a garrafa era registrada pela parte inteligente de meu cérebro. Duas coisas me chocaram naquele momento e nenhuma delas fora a garrafa. O pênis de Bob, ou melhor, Bret perto de meu rosto, ha uma distância incômoda, e a beleza do corpo daquela mulher. Havia algo de errado, como já disse antes, Estranho. Uma espécie de aura cobria a mulher, algo que... eu não sei, algo errado. Todas as preocupações foram esquecidas quando a garrafa impactou sobre minha cabeça. Acho que nessas condições as nossas preocupações também são relativas.
Quando voltei ao mundo, emergindo das trevas profundas, encontrei-me amarrado a uma cadeira em um quarto escuro, cujo ar carregado de horas e mais horas de sexo, suor, vômito e abuso de drogas intercalava-se em alguns minutos de limpeza artificial. Sentia o calor de meu próprio sangue escorrendo e secando ao longo de meu pescoço e torso, mas não havia nada que podia fazer para remediar o machucado, não enquanto estivesse amarrado daquele jeito. Minha cabeça explodia em ondas constantes de dor e precisava manter um esforço contínuo para não apagar novamente. Abri os olhos aos poucos, vencendo um milímetro por vez. A pouca claridade do quarto era o suficiente para me fazer desejar estar na escuridão profunda. Que dia interminável, pensei miseravelmente.
Os raios de sol que conseguiram atravessar as cortinas imundas do Dama da Noite iluminaram as pernas da mulher, sentada no canto perpendicular ao meu. As pernas compridas acabavam no nada, em um corpo obscurecido pelas sombras; apenas os olhos e a ponta de um cigarro acesso eram visíveis: três pontos vermelhos na escuridão, brilhantes e carregados de perigos camuflados. “Não tente falar”, ela me alertou. “Sua garganta está seca e a dor de cabeça apenas ficará pior. Fique quieto, senhor Humphring”, maldição ela sabe meu nome, “e tudo estará bem.” Como uma cobra, aquela boca destilava veneno. A luxúria era algo natural para ela, jogos de sedução e manipulação sua segunda natureza. Eu estava muito além de minha linha de conforto.
Minha carteira, percebi, estava aberta na pequena mesa ao lado da porta do banheiro e seu conteúdo espalhado, revirado e analisado com certeza. Preciso parar de carregar meus documentos. A iluminação súbta, no entanto, estava atrasada. Eles sabiam quem eu era.
Três batidas ocas na porta. Três explosões nucleares em minha têmporas. A mulher levantou suavemente e andou até a porta, atravessando a coluna iluminada, revelando o corpo semi-nu, coberto apenas por uma lingerie vermelha como seus olhos, provocante... apenas como ela, falta-me comparação mais precisa. Novamente senti que havia algo de errado na simples existência daquela mulher, como se sua presença fosse um paradoxo que danificava os tecidos da realidade que nos cercam. Outra explosão tomou conta de meus olhos quando a porta foi aberta e o sol invadiu o cômodo, deixando-me parcialmente cego por alguns segundos. “Ele acordou?”, escutei a voz de Bret. Ou de Bob. Ainda com os olhos fechados, senti o peso dele apoiado na cadeira, o cheiro de cigarro e whisky exalava da pele do homem, como se ele transpirasse partículas de tabaco e álcool. Ao menos ele estava vestido. “Oi! Chandler está aí?”, o ar se movimentou instantes antes da costas da mão gorda atingir minha bochecha. Mais sangue escorreu de um novo talho feito pelo anel que ele usava.
“Assim ele vai apagar de novo”, ela disse, há um milhão de anos-luz.
“Eu não tenho o tempo, ou a paciência, chapa. Responda de uma vez, quem te mandou?” Ele dizia a verdade e eu não tinha pretenções de apanhar mais naquele momento. Apanhar estava fora da lista de coisas favoritas, eu estava descobrindo. Que porra de dia longo.
Eu abri a boca e as palavras me falharam. Como ela havia alertado, minha garganta estava desidratada como um deserto. Um novo tapa, um novo corte, a mesma dor em minha cabeça. “Ele ia falar, Cristo!”, ela disse, andando até o banheiro. Escutei a torneira rangendo e o barulho de água caindo. Ela trouxe um copo e eu bebi, sentindo um misto de alívio e náusea pela água gelada, mas com o gosto metálico de ferrugem.
“Quem te mandou para me vigiar?”, ele perguntou novamente.
“E...”, eu disse com as palavras que voltavam para minha garganta, “a mulher.”
“A próxima será em seu nariz com meu punho fechado. Que mulher?”
Ele não irá acreditar em mim. “E... ela”, eu disse com dificuldade, olhando na direção da mulher de lingerie. “Outros... olhos, outra... cor. Bob. Amante.” Foi tudo que consegui dizer. Esperei pela promessa de um nariz quebrado, mas Bob estava em silêncio, olhos assustados. Ela andava freneticamente no quarto, do ponto A para o B e, novamente para o A. Eles se trancaram no banheiro, tentei escutar o que conversavam, sem compreender qualquer palavra.
Quando voltaram, ele tinha um canivete nas mãos e rapidamente, antes que eu pudesse pensar em qualquer perigo, usou-o para me libertar das cordas. “Desculpe por tudo isso, chapa. Eu surtei quando vi as minhas fotos, você é um excremento por estar nesse mundo.” Eu não soube o que responder. Ela ainda estava no banheiro, a porta fechada. “Escute, quanto ela te pagou? Vou compensar pelos seus... pelas suas dificuldades.” Ele colocou uma mala negra na cama e a abriu, dois sonoros clicks ecoaram pelo quarto. Na mala havia duas pistolas automáticas e uma minimetralhadora, além de dezenas de pequenos blocos de dinheiros amarrados por elásticos grossos. “Eu vou pagar por sua máquina também, claro.”
“Doze. Doze mil libras.”
Ele recolheu o dinheiro da mala, deixando mais que oito décimos do que havia originalmente. “Vinte e cinco mil. Isso deve recompensar pelos problemas que nós causamos.” Acenei com a cabeça.
“Quem é ela?”, perguntei, “A irmã gêmea?” Ah, Londres, doce Londres carregadas de pessoas doentes.
Bob desabou na cama, fazendo a madeira ranger sob o peso de seu corpo. “Não, não. Nada disso”, ele sorriu. “É mais complicado, antes fosse simples assim. Darla tem dupla personalidade. Na maioria dos dias ela está bem, cuida da própria vida, pinta alguns quadros e brinca com os cachorros, mas quando ela acorda e coloca as lentes azuis, o dia está perdido. Darla, nos dia da loira de olhos azuis, lentes de contato coloridas, se transforma em uma puta mesquinha e manipuladora, que só existe para foder com minha vida. Sinto muito que você foi para no meio do furacão, Chandler.” Meu nome na boca de Bob, que ocasião perturbadora.
O que vocês estão fazendo em um lugar como esse? Porque têm tantas armas e dinheiro? Eu queria perguntar, tinha muitas dúvidas, mas limitei-me a pegar a sacola com o dinheiro e andar até meu carro, sentindo que ainda estava em um sonho. Minha cabeça ainda girava com dor, sangue seco e duplas personalidades. Que dia longo, longo dia horrível. O Dama da Noite ainda era um lugar nojento e o homem sujo da recepção ainda tinha sangue seco na camisa. Ele me olhou com certa satisfação ao notar o sangue empoçado na gola de minha camisa. Por sorte, o Fedora e o sobretudo estavam em minhas mãos. Dirigi por quase uma hora e cheguei em meu escritório quando o sol já estava baixo e algumas núvens carregadas se acumulavam em todas as direções, como quase todos os dias nessa ilha. Ainda hoje não sei como dirigi, não tenho nenhuma memória do que aconteceu no caminho.
Atravessei o corredor apertado rapidamente, o maior ânus de Londres segundo o que diziam meus clientes, e me arrastei pela escadaria, até chegar na pequena sala. Sentei na cadeira do meu lado da mesa e dormi quase antes de meu corpo terminar a descida. Por dez horas estive fora do mundo.
Despertei com o sol de um outro dia. Minha cabeça ainda letajava e dois corte horríveis tomavam conta de meu rosto e nuca. Entrei no pequeno banheiro anexo à minha sala e lavei o rosto o melhor que pude. No armário da pia havia uma maleta para primeiro socorros e fiz dois delicados curativos. Os cortes não foram profundos, mas deixariam duas cicatrizes claras. Troquei de roupa e desci para comer algo, meu estômago roncava. Atravessei a rua com o vento tentando retirar o Fedora da minha cabeça e entrei em um pub, o Estábulo Real. Viver Candem Town por mais de quinze anos provoca uma rejeição eqüina nas pessoas, aparentemente. O Estábulo era um lugar decente, cuja comida tinha um sabor forte e a cerveja bem acentuada descia prazerosa até meu estômago. Um pouco escuro, talvez, mas qual pub londrino não é assim? Hey, pelo menos não estava indo comer peixe frito com batatas.
Procurei a mesa que ocupava normalmente, perto da vitrine, de onde poderia assisir o movimento apressado na rua e vigiar a porta vermelha, esperando por novos clientes e passei meus olhos no lugar. Dois casais trocavam palavras e carinhos nas mesas ao redor e no balcão, dois policiais comiam torradas. Não tinha certeza se estava pronto para um novo trabalho, mas era melhor do que ficar remoendo a complexa mistura de ódio, culpa e dor que eu sentia. Dupla personalidade, minha cabeça recuperou as palavras de Bob. Inventei uma desculpa para meu rosto quando a garçonete de costume me atendeu e pedi um café da manhã completo e uma cerveja preta. Sem uma refeição completa por quase dois dias, meu corpo anciava pelos ovos, bacon, feijão e salsichas que chegaram e foram quase completamente devoradas em poucos minutos. A cerveja assentou a comida e a energia começou a voltar com a digestão iniciada.
Encostei-me no banco acolchoado do pub e respirei, aliviado. O que eu poderia fazer? Pegar meu revólver de seis tiros, minhas dezoito balas e procurar por vingança contra Bob e suas três armas, sendo Darla ainda mais perigosa que uma uzi? Não. Não Chandler. Deixe-me contar um segredo, Estranho, Chandler iria engolir o orgulho e aproveitar aquelas vinte e cinco mil libras, sim senhor.
Mas o tempo, caro Estranho, é relativo, lembra? Pensando nesses dias estranhos, percebo que tudo aconteceu rápido demais, sem me deixar muito espaço para raciocinar e planejar uma reação.
A garçonete, uma garota de vinte e dois anos, com um filho de um e outro na barriga, aumentou o volume da televisão pendurada atrás do balcão. “...morto em um bizarro crime passional. Bob Maltese foi morto por cinco tiros à queima-roupa. Henry Gregory, dono do hotel disse à policia que foi agredido pelo principal suspeito do crime...”, oh, merda, tive tempo de pensar. A televisão mostrava uma imagem estática do Dama da Noite de um lado e a foto de Bob do outro enquanto minha própria imagem crescia no centro da tela. Uma foto antiga, ainda de quando cabelos longos e selvagens desciam de meu ombro e o Led Zeppelin estampava minha camiseta, longe do homem com duas bandagens no rosto e um chapéu na mão; um detetive particular raramente deixa fotos suas circulando na internet. A repórter continuou, indicando meu nome com um erro comum: “... Chandler D Homphrenger foi identificado como amante de Darla Maltese e culpado pelo homicídio. A polícia emite um aviso de procurado e pede para que a população entre em contato por esse número para qualquer informação sobre o suspeito. Ele está armado e é considerado perigoso.”
Em menos de um segundo estava me dirigindo à saída do Estábulo Real, colocando o chapéu na cabeça e evitando olhar para trás. Para minha surpresa, Darla estava entrando pela porta vermelha, com as mesmas pernas longas e sedosas. Olhei para trás e vi a jovem garçonete apontando em minha direção enquanto um dos policiais falava com a central. Maldita garota!
Meu nome é Jonhatan Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô, com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que sempre quis. Meu nome não é Jonhatan Raymond e o tempo, caro Estranho, é relativo.

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