sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Valquírias


O Templário fincou a espada bastarda fundo na terra molhada e estudou as hordas de mouros que cortavam a península, tomando terras da cristandade em velocidade alarmante. Eles eram muitos, de proporções bíblicas e não havia defesa cristã organizada para enfrentar a tempestade que se aproximava. Precisavam de cada homem, cada menino capaz de portar uma lâmina afiada contra a garganta suja dos invasores. Vê-los caminhando, marchando, contra as montanhas e planícies ibéricas revoltava as entranhas do velho templário.
Como Leônidas, os templários iriam barrar os infiéis até que novas forças chegassem da França e do Sacro Império Romano, prontos para servir como sacrifício em nome de um bem maior. A bondade intrínseca dos homens seria suficiente para vencer, no final das contas.
Puxou a arma de volta e limpou a terra suja da lâmina. O templário estava pronto para a batalha. Seu coração estava calmo como um lago no Éden; os músculos, sedentos por justiça e sua fúria, afiada pela próprias convicções. O templário liderou as colunas dos Cavaleiros de Cristo contra as paredes mouras, correndo na grama que logo estaria tingida pelo vermelho, cortando a pele marrom do inimigo invasor.
O corte de sua espada era certeiro e o Templário se mostrou uma perfeita máquina de guerra. O arco que formava com a lâmina larga derrubava dois, três inimigos por vez; a armadura completa concedia a proteção que precisava. Os inimigos ameaçavam uma retirada. Ele não os deixaria escapar: mouros tinham a péssima tática de recuar e reagrupar: os homens que fugissem daquele campo de batalha incorporariam outros exércitos e mais sangue cristão seria derramado naquela terra abençoada. Não, a península seria novamente dos homens de bem, nenhum homem escaparia do Juízo.
“Flaquear!”, gritou com a voz profunda. O porta-bandeira deu o sinal para a manobra e ele viu parte da cavalaria se movimentar para a esquerda, formando um largo círculo para esmagar os infiéis. Com a ajuda preciosa dos cavalos os templários rapidamente cercaram os inimigos e minaram suas forças, atacando em ambos os lados. Ele formava ataques em crescente frenesi, decapitando mouros, decepando mão, braços e pernas. Sua fúria estava canalizada pela Fé e o aço mordia fundo, sem piedade. Dez, vinte, trinta homens caíram por sua espada e a ainda a força se negava escapar dos braços musculosos. A fadiga não encontrava espaço em seu espírito. O templário fazia seu trabalho.
De repente, como o trovão que anuncia a turbulência da tempestade, a corneta tocou, aguda e rouca, desesperada. O velho Templário derrubou mais um infiel e olhou ao redor. Homens se abraçavam em embate voraz por todos os lados e além, além do mar de carne que se despedaçava em uma guerra sem sentido - guiada por crenças distintas e incompatíveis, moldada pela intolerância e pela busca por terras férteis – a terra tremia com a corrida de milhares de mouros. Em poucos minutos eles estava cercados por centenas de cimitarras e flechas que percorriam os céus em um arco ameaçador.
Três anéis se formaram no campo de batalha e os templários se tornaram flanqueados.
Buscando cegamente por um ponto fraco na defesa do velho Templário, uma flecha rasgou a cota de malha em seu ponto mais vulnerável e se fincou na omoplata tensa. Cada movimento causava uma onda de dor, cada descer da espada bastarda se tornava mais pesado. O peso da batalha mudava de lado; tão rápido quanto pareciam cavalgar para a vitória, o espírito templário foi quebrado pelo fio de cimitarras. Os homens de Cristo caíam ou, pior, fugiam em um ato de covardia condenatória. Não ele. Morreria na glória do combate. Templários, os primeiros a entrar no campo de batalha; últimos a se retirar. Aqueles que morriam pelo nome do Senhor estariam em Sua divina graça, bem sabia. Ele teria seu lugar no Paraíso, ao lado do Senhor e de todos os santos.
Um, dois, três golpes, três mouros mortos. Um, dois, três golpes, cada vez mais pesado; um, dois, três, os ossos não eram mais quebrados com a força de seus golpes, a carne não mais rompia diante o fio da espada agora cega; uma, duas, três vezes ele sentiu a lâmina fria dos infiéis em seu corpo. Uma rápida explosão em seu pescoço e o mundo girou, até que nada mais existia.
Apenas a escuridão.
O velho flutuava nos mistérios que tinham lugar além da linha da vida.
Seguia o nada, suas mãos buscando apenas o vazio, o nada... o nada... até sentir a pele macia de um carneiro. Um cheiro invadiu suas narinas e ele pensou se a cabeça estava presa ao resto do corpo. Um odor doce, acre e penetrante. Uma sensação macia e sedosa no corpo nu. Dedos, mãos.
O velho forçou um dos olhos e o abriu. Uma explosão de cor, como jamais havia visto, pintou o cenário de onde estava.
Uma tenda. Risos. O perfume de cabelos bem lavados.
Olhou ao redor e viu que estava deitado na pele de seis carneiros, uma mesa com as frutas mais belas que poderiam existir dividia espaço com diversos incensos que queimavam pacificamente. Estava cercado por mulheres, todas de uma beleza digna dos melhores poemas e das mais lindas canções, seios fartos e largos quadris, o doce cheiro que exalava de suas peles o lembrava de pêssegos e canela; mãos apertavam a carne cansada e calejada, procurando por seus braços e pernas, buscando por sua intimidade sedenta pelo toque.
“On – onde estou?”, perguntou.
“Na terra prometida, bravo guerreiro. Em seu lugar conquistado pela bravura indômita, no Oásis do Único e Verdadeiro Deus”, uma delas respondeu, roçando os seios em suas pernas.
Olhou, ainda mais confuso para as setenta virgens. “Mas eu morri em combate contra o... o inimigo! O Paraíso é meu direito!”
A mulher, de estonteante beleza, massageava as pernas do velho enquanto falava. “Eis o seu paraíso”, ela respondeu, “sua tenda no Oásis divino, as setenta mulheres criadas apenas para você e a eternidade para usufruir de todos os prazeres que existem.”
“Não!”, gritou e se levantou, jogando duas mulheres para longe. “Eu quero o verdadeiro Paraíso, aquilo que me prometeram toda minha vida!”
“Ah”, ela disse em entendimento do que ele falava, “você busca a dignidade dos guerreiros. Muitos preferem este outro lugar renegando os prazeres da luxúria, humano. Vá, vá para seu povo e para seu destino, esqueça nosso lugar, renegue nosso toque”, apontava para o único rasgo na enorme tenda.
O templário andou, nú, até a o rasgo e se virou uma última vez, estudando a beleza imensurável das setenta mulheres, reprimindo a luxúria que tentava tomar conta de sua resiliente vontade. Algumas pessoas seriam capazes de matar pelas frutas na mesa.
Atravessou a entrada, renegou definitivamente os prazeres da carne e se dirigiu para o Paraíso prometido pela mulher.
Apenas um passo e a tenda, juntamente com as frutas, as peles de carneiros e as virgens desapareceram, abrindo espaço para centenas de gargalhadas e arrotos.
Subitamente, vestia uma armadura de batalha, endornada por peles de carneiro, portava um machado feito com ossos e metal. Milhares de homens banqueteavam-se da carne vermelha e vinho.
O templário virou-se, procurando pela entrada para a tenda, mas encontrou apenas ar.
Uma enorme caneca de vinho caiu sobre suas mãos.
“Bem vindo ao Valhalla, guerreiro!”, duas mulheres, gordas, gigantescas, cantaram.

Um comentário:

  1. Adorei Mauricio. Visualizei as cenas, quase senti os odores e os sabores. Uma vez mais entrei no conto e estive lado a lado com o templario (como vc sabe eu curto muito). Obrigada pelos momentos de fantasia. Ana Eliza.

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