sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Acúmulo Crítico


Parecia um clube como aqueles que ele via nos filmes ambientados no começo do século passado. Móveis finamente trabalhados espalhavam-se pelos cantos do lugar, dando espaço para seus assíduos frequentadores. Permanecer onde estava, na sala bem iluminada mas, em contradição, estranhamente escura era como ver o mundo através de tons pastéis, um cenário que poderia ser igualmente de um quadro renascentista.
Todos vestiam terno – a primeira regra para os associados, logo aprenderia – e sentavam, quietos, nos sofás caros, bebendo café, whisky e vinho branco, lendo Tolstói, Cervantes e Shakespeare. Silêncio, com o peso de uma bigorna, imperava. Ele contou, movendo os lábios, dezenove homens, todos com o olhar vago e rosto sem qualquer expressão.
“Está ná hora”, disse um deles. O homem segurava um copo suado pelo líquido âmbar, pedras de gelo flutuavam no whisky. “Temos um membro novo”, todos olharam para ele, uma sensação terrível, antes de continuar, o homem de um longo gole de seu copo, “vou repassar as regras. Elas são poucas, não se preocupe. Primeiro, linha. Mantenha-se bem vestido quando estiver entre estas paredes”, ele abriu os braços e as indicou. “Vozes altas, baderna e vagabudangem de qualquer estirpe não serão toleradas e seu término será imediato. Segundo: discrição. Seja discreto sobre nossas reuniões ou não seremos discretos com o que você disser. E por último, seu primeiro dia, sua hora de falar.”
Um copo quadrado foi parar em suas mãos sem que ele percebesse. Olhou, confuso, para o copo em suas mãos e deu um pequeno gole, sentindo o bourbon descendo e queimando, um rio de lava, por onde passava. “É como Hemingway”, disse por fim, com um sorriso no canto da boca.
Os homens permaneceram calados, impassíveis diante o gracejo. “Como Hemingway?”, perguntou um velho sentado no fundo da enorme sala. Usava uma boina verde desbotada e tinha uma garrafa aberta ao lado.
“Sim... a bebida. Como em qualquer conversa importante nos livros dele, sempre tem a bebida.” Nenhuma palavra em retorno. Público difícil, pensou. “Não... eu não sei o que falar. Para dizer a verdade, eu não sei o que dizer, sequer sobre o que é esse clube!”
“O senhor não tem idéia sobre nossa tarefa?”, perguntou o velho.
“Tarefa? Como em ‘missão’? Isso é algum tipo de culto?”
O homem que falou em primeiro lugar deu uma risada, grave e profunda. “Culto? Não, meu jovem. Somos... Acumuladores. Você recebeu o cartão?”
Perguntas empilhavam em sua mente. “Sim, recebi o cartão e tirei o pó da minha melhor roupa e apareci na data indicada.”
“Então conte suas tristezas, jovem. Você provavelmente foi apontado por alguém que conheceu sua solidão ou tristeza ou pesar ou qualquer sentimento negativo que você possa ter. Por isso está aqui, para contar suas mazelas.”
“Contar minhas mazelas?”
“Pare de agir como um gravador. Você deve contar sua maior tristeza, aquilo que mais pesa em seu coração. Para isso estamos aqui.”
Ele considerou por alguns momentos. “Acho que não...”
“Senhor...”, o homem respondeu em um tom alterado. Parou e respirou profundamente antes de beber quase duas doses do whisky que tinha em suas mãos. “Estamos aqui para acumular os pesares que assolam os homens. Buda ensinou seus seguidores que viver é estar em constante sofrimento. Para isso estamos nesse lugar, meu caro. Dividir e compartilhar as feridas escondidas em sua alma. Acumular. Harry aqui”, apontou para o velho, “expulsou o filho de casa depois de uma briga. Eles tiveram uma discussão por causa dos hábitos... etílicos de-”
“Besteira!”, o velho interrompeu. “Eu sou um bêbado inútil, jovem. Meu filho me confrontou e perdeu, simples. Ele queria que eu parasse de beber, eu queria que ele sumisse da minha frente. Abri a porta de casa e apontei meu dedo para a rua. Assisti, com uma ponta de satisfação, enquanto ele, meu próprio filho, fazia as malas e saía de casa.” O velho parou e bebeu profundamente. Lágrimas caíam livremente de seus olhos. “Foi a última vez que o vi. Ele estava dirigindo, procurando um quarto de hotel para ficar por alguns dias quando um caminhão passou por cima do pequeno fusca. Dizem que um dos braços foi parar em outro quarteirão.” Ele se levantou e olhou para o novo membro dos Acumuladores. “O mais engraçado? O motorista do caminhão estava bêbado. Tão bêbado quanto um gambá, como diria a sabedoria popular. Karma, essa prostituta barata.”
O homem, o líder ele começava a acreditar, ergueu o copo. “Para Harry”, disse e bebeu novamente. Todos os outros ergueram seus respectivos copos e beberam; o bourbon desceu mais suave desta vez. No final, tudo se torna um pouco mais suportável, contemplou. Talvez fosse a atmosfera do lugar, talvez o olhar triste dos dezenove homens espalhados pelo clube. Havia, ele não podia negar, uma força misteriosa no coletivo que ajudava a tornar o que sentia em algo suportável. Não mais sentia a pressão sobre o peito, a dor angustiante que cercava suas memórias, conturbadas e confusas; a azia em seu estômago estava calma, apesar da bebida. Ele bebeu novamente. Tavez seja o álcool, tentou enganar-se.
“Minha esposa me deixou”, disse um homem, perto da árvore de natal. “Ela me traiu constantemente e eu sempre a perdoei. Ela chegava com aquele rosto de falso arrependimento e contava o que havia feito. De novo e de novo e de novo. Cada vez era uma ferida, uma ferida profunda, que sangrava em silêncio, em resiliente insistência. Com o passar do tempo eu me fechei em um casulo, cerquei-me dos livros e entrei nesse labirinto de palavras, correndo da memória, correndo de minha covardia e dos seus atos horríveis, escondido em outros mundos do meu passado.” Ele notou que o homem carregava um livro surrado nas mãos. “Aos poucos perdi minha humanidade, esse foi o ponto em que cheguei, tornei-me frio e distante. Um dia ela olhou, com o mesmo olhar que usava quando tinha que me contar uma de suas aventuras sexuais. ‘Estou te deixando’, ela disse sem qualquer cerimônia. ‘Você é a porra de um fantasma agora, uma casca do que era. Não vejo mais o homem que amei. Até o natal você está matando!’ Era meu papel ter gritado de volta, sei disso. Berrar com todo meu fôlego, apontar meu dedo para aqueles olhos negros, aqueles abismos que sugavam minha energia. Um fantasma eu virei. Uma casca. Simulacro do homem que um dia fui. Um acumulador.”
Um novo brinde. O bourbon vinha suave e rasgava sua tristeza em mil pedaços. Ah, ele acumulava há tempos, tinha sua parcela de contribuição para o clube, mais do que todos aqueles homens somados, acreditava. De repente, um manto de tristeza caiu sobre ele e ficar naquele lugar era quase insuportável. Foi uma virada repentina, completa e quase irreversível. Ele olhou para a árvore de natal – um galho seco e pintado de verde, com uma única bola vermelha pendurada com a ajuda de um barbante – e deixou o álcool abrir o caminho até suas memórias.
“...escutando?”
Olhou para o homem que falava com ele. “Desculpe, eu me perdi por um momento.”
“Estava explicando sobre nosso objetivo.”
“Ajudar a superar?”, ele perguntou, já sabendo a resposta.
“Não. Pelo contrário. Queremos estimular sua depressão, abrir as feridas que estiverem fechadas; alguns dizens que temos demônios presos em nossas cabeças e estão parcialmente certos: há demônios em nós, mas não estão preso, dançamos com eles. Estamos aqui reunídos para alcançar a Massa Crítica.”
“Massa crítica? A Massa crítica da física ou da socio-”
“Sim, uma Massa Crítica para a dor solitária. Buscamos o acúmulo máximo de sofrimento. Cada um dos homens nessa sala perdeu alguém ou foi traído ou perdeu todas as conquistas em um jogo de cartas. Alguns mais de um ítem da lista, mais de uma vez. Atropelou um mendigo e queimou o corpo? Jorge, que está servindo bebidas.” Um homem alto acenou. “Bolsa de valores? Aponte qualquer um e você terá grandes chances de acerto. Acumulamos dores até chegar ao ponto em que ela será auto-sustentável. Uma sociedade calcada em nossos piores sentimentos. Queremos ultrapassar a Massa Crítica e devolver para o mundo parte de nosso pesar, fazer do mundo um lugar, você sabe, pior ao menos uma vez, para variar.”
Ele podia sentir a bolha que envolvia o clube. Quase um ser vivo, uma consciência pulsante, sedenta por mais, gulosa por alimento. Uma hora aquela bolha iria explodir e o mundo seria consideravelmente pior, para a satisfação das dezenove pessoas, um ato de pura vilania e egoísmo; vingança cega, se assim quiser, caro leitor.
Mas ele também viu seu lugar entre eles, tão claro como as lembranças que o acordavam todas as noites, coberto de suor e lágrimas. Ele já fora bonito, hoje não passava de um homem pálido e magro, a pele quebradiça, os olhos sem vida e o pior, o espírito quebrado. O bourbon cantava em sua mente e a voz da sereia não é uma voz a ser ignorada.
“Eu estava certo”, disse depois de alguns minutos de reflexão, “é como no Hemingway. Tudo está conectado, todos somos parte de uma mesma realidade e nos encontramos presos à uma rede inacreditável de ação e reação. Cada homem faz a diferença, cada um de nós será uma ausência notada pela humanidade. O sino dobra por cada um de nós. Podemos influenciar os outros... mesmo que para o pior.”
Vinte, ele pensou, somo vinte.
Abriu a boca e acumulou.

3 comentários:

  1. Muuuuuuuuuito bom. Adorei. Texto bastante criativo. Parabéns. Ana Eliza.

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  2. Tb gostei bastante, Mau.
    :)

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  3. Como em Hemingway, muito lindo! Andrezza

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