quarta-feira, 7 de abril de 2010

Como Se Não Houvesse Amanhã

inspirado por Pais e Filhos

Agradeço a gênese de minha família, quase todos os dias. Tenho trinta, mas é difícil notar as falhas no rosto. As pequenas trilhas que nascem com o peso, na pele, por causa dos verões. Sinais de que já não somos nem muito mais crianças, nem tão velhos. No transito entre pais e filhos, onde uns já perderam seus criadores e outros planejam a geração futura.

Foi nesse período que tive meu último encontro com Juliana. Na praça que caminho todos os dias na rota de meu trabalho. A cada passo, seus traços foram ficando mais delineados. Primeiro a curva dos cabelos, depois os grandiosos óculos de sol que usara desde que a conheci, e, por fim, o rosto infantil que imaginei também resistir ao tempo, graça a gênese de sua família.

Sua roupas eram comuns, de quem arrisca um passeio leve em um dia da semana. Minha aproximação, como imaginei, trouxe surpresa ao seu semblante. Primeiro sorri, depois tirei meus óculos de sol, e a após poucos segundos ela pode retribuir o sorriso e me reconhecer. Nos abraçamos.

Antes disso, a última vez que a vira fora em sua adolescência, enquanto cursava medicina na cidade em que morei desde que nasci. Nessa época, nossa relação, se posso chamar assim, estava tão destruída como após o incêndio que Nero ateou em Roma. Mesmo assim, mantínhamos as cordialidades. Trocava-mos acenos se nos víssemos de longe, palavras vazias de quem não está curioso, apenas para passar o tempo. Estranhos comunicáveis.

Nada fora diferente dessa vez. Seu rosto, única imagem que eu poderia comparar com aquela juvenil, parecia quase o mesmo. Exceto por um retrocesso nos cabelos, e alguns vincos extras que, agora de perto, pude perceber.

Parecia que estávamos lado a lado por obrigação, e conversamos por alguns minutos. Falamos do rumo de nossas vidas, do que eu fazia naquela praça, caminhando para o meu trabalho, sem problemas de chegar atrasado, e que ela esperava a filha, que sairia da pequena escola em frente a praça.

Suspirei, e disse a ela, por um impulso, que ela não tinha mudado. Ela me deu um sorriso metade verdadeiro, metade falso, respondido por um “você acha?” enquanto dava uma volta inteira para meu olhar.

Notei nas costas uma inscrição e lhe perguntei o que era. “Uma frase que levo na vida”, e retirou o cabelo da frente para que eu pudesse ler: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Minha leitura fora de um modo tão profunda que, sem querer, toquei na marca da tatuagem. Ela protestou automaticamente, dizendo fazer cócegas.

Eu ainda podia lembrar de nossa juventude. Das palavras que ela me dissera verões passados, e essa mesma inscrição, estampada para sempre em suas costas me deu um embrulho no estômago. Por mim, eu voltaria para casa e não iria mais ao trabalho.

Fora como se pedaços de minha memória se espatifassem pelo chão, trazendo a tona tanto do passado que quase me nauseei. Tentei conter tudo que veio ao meus olhos, mas não sei se fui capaz.

As crianças saiam do colégio e, olhando-as, passei a imaginar Juliana como mãe. Filha mais velha de três irmãs, cuidando-as dela desde sempre, como se sairia sendo mãe oficial? Me recusei a perguntar sobre o pai, aquele homem que ela disse ter amado tanto, ter feito sofrê-la tanto e que, por fim, a abandonou.

“Deixe-me adivinhar”, disse. “É a pequenina de cabelos levemente ondulados, de roupa vermelha, carregando um desenho que parece uma flor”. E ela assentiu com a cabeça. “Parece com suas fotos de criança. Você está nela como ela está em você”.

Juliana abaixou-se e a filha veio correndo em sua direção. Trocaram um abraço e beijos, e a pergunta curiosa veio da filha, perguntando quem era o moço que a acompanhava. “Um velho amigo”, respondeu.

A mãe, com a filha no colo, me deu um beijo seco, dizendo como foi bom ter me visto e que, caso nos víssemos de novo, nessa mesma praça, poderíamos conversar. E acompanhei o passo lento de Juliana saindo na praça, com a blusa aberta nas costas com os dizeres cobertos pelo cabelo espesso.

Voltei a sentar-me, levei a mão aos olhos e, olhando no relógio, constatei vinte minutos de atraso. Passei o resto do trajeto com a memória em Juliana.

"Um amigo", ela respondeu. Juliana. Durante toda sua vida lutou para ser aquele tipo de mulher inesquecível, que não sabia ser amada até encontrar quem a amasse. Tentou, diversas vezes, seguir aquilo que achava ser honesto e verdadeiro. Deixou tantas coisas para trás que o choque daquelas palavras em suas costas me surpreendeu. Não pude me lembrar de quem ela amou sem amanhã. Enquanto ela abraçava a filha, procurei em seus olhos amargura. Mas tudo que vi foi um vazio e amor pela filha que estava ao seu lado.

Era irônico e eu podia notar. Todo seu desejo, toda sua força em preservar o amor de nada valeu porque dentro de si, dentro daquele peito que eu conheci outrora, de maneira febril e jovem, sua vida tinha sido construída como base de máguas e rugas. Pedras no caminho do que amores sem espaços temporais.

A inscrição em suas costas me entristecia. Muito mais ao saber que ela, quanto eu, envelhecemos e continuávamos ali, em caminhos mortos, carregando palavras que só alimentavam nossos moinhos de vento, ilusões tristes e juvenis.

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