terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Mundo de Cristal

Quando a campainha tocou, o menino já estava em pé ao lado da porta, esperando. Passava do meio-dia e o mundo deveria ser entregue naquela manhã. Assinou apressado o recibo dos Correios e girou sobre os calcanhares, dando as costas ao carteiro e correndo apressado para seu quarto. Fechou a porta, colocou a grande caixa sobre a cama e sentou-se do lado. A embalagem de papel pardo tinha uma etiqueta com seu nome, outra com o logotipo do fabricante, e uma terceira com a imagem de uma taça quebrada e a palavra “FRÁGIL” escrita em vermelho. Abriu com todo o cuidado, temendo profundamente ouvir o som de vidro quebrado ou peças soltas, mas quando finalmente removeu a tampa, o mundo estava lá, intacto.

O mundo era uma esfera de vidro transparente com cerca de 50 centímetros de diâmetro com água até um pouco acima da metade e uma grossa camada de matéria orgânica e algas coloridas forrando a base. Algas cinzentas, vermelhas e em vários tons de verde, algumas quase tão altas quanto o nível da água, a maioria das outras variando entre poucos milímetros de comprimento, formando uma paisagem simples, mas que o menino considerou como a coisa mais bonita que já vira na vida. Seus olhos, no entanto, abandonaram as algas e se fixaram, hipnotizados, no pequeno camarãozinho róseo que encontrou escalando uma das folhas maiores. Tinha dez minúsculas patinhas ao longo de um corpo gorducho e rosado de não mais do que um centímetro, e foi o primeiro que o menino avistou entre os oito que lá viviam.

Montou sobre a escrivaninha próxima à janela o suporte que veio na caixa, e sobre ele colocou o mundo. Tinha uma minúscula etiqueta na base da esfera, com o número 4213, e o menino imaginou quantos outros mundos haveriam espalhados por aí.

O mundo tornou-se imediatamente o foco gravitacional das atenções do menino. Frequentava a escola, a natação, as enfadonhas aulas de piano, mas seus pensamentos invariavelmente deslizavam para o mundo, e ao chegar em casa o menino sequer olhava para outros brinquedos, gibis ou jogos. Nem brincar na rua com os outros meninos interessava. Só o mundo interessava. O pequeno e por outro lado infinito Mundo de Cristal, como gostava de pensar. O mundinho de Escalador, Roedor, Covarde, chefe, Ligeiro, Gorducha, Sereia e Namoradeira, nomes com os quais batizara os oito pequenos senhores do Mar de Cristal. Decidira por observação, critério e conta própria que cinco pareciam machos e três fêmeas, e imaginou que essa distribuição cedo ou tarde traria conflitos ao fundo do mar. E durante horas a fio o menino observava silenciosa e atentamente a vida cotidiana dos pequenos crustáceos. O Chefe tinha esse nome porque era o maior deles, e nenhum dos outros parecia querer incomodá-lo por nada. Roedor e Gorducha passavam a maior parte do tempo abraçados em pequenas algas, apreciando ora o sabor das vermelhas, ora das verde-escuras. Sereia e Ligeiro gostavam de nadar, e estavam sempre cruzando despreocupadamente a extensão oceânica do mundo, enquanto Namoradeira nunca ficava longe de um dos cinco machos. Dois, no entanto, atraíam mais sua atenção. Covarde era o segundo de quem o menino mais gostava, ainda que não soubesse explicar exatamente o motivo. Ficava o tempo todo entre as algas com mais de um centímetro, de forma que pudesse se esconder sabe-se lá de quem. De fato, até sua coloração era um pouco mais puxada para o vermelho, e em algumas partes do mundo ele desaparecia totalmente. Logo na primeira semana, o menino notara que Covarde só tinha nove pernas, faltando-lhe uma das duas dianteiras. Teria nascido sem ela e dessa forma se escondia por vergonha de não ser exatamente como os outros? Quem sabe teria perdido aquela pata em uma luta, talvez contra o Chefe, pelo amor de Sereia, Gorducha ou Namoradeira, e desde então não saiu mais da segurança das algas?

Muito diferente de Covarde era o Escalador, seu preferido entre todos. Fora o primeiro que o menino encontrara no dia em que o mundo chegara pelo correio, e parecia gostar muito de escalar as algas mais compridas. Quando chegava ao topo, lá permanecia, às vezes por vários minutos, e então descia flutuando pela água até o chão. Certa vez, o menino agachou perto da escrivaninha em um momento de iluminação oportuna, e notou que de determinados ângulos, era possível ver seu reflexo na superfície da água também pelo lado de dentro. Seria isso que o Escalador tanto buscava? Descobrir quem seriam aqueles oito camarões que viviam no “mundo de cima”? Ou será que o Escalador compreendia estar olhando para o próprio reflexo, e todos os dias subia as maiores algas movido por um instinto completamente narcisista de se admirar mais de perto? Em uma noite, olhando para o mundinho por vários ângulos, encontrou-se pensando sobre como os camarões do aquário o veriam. Um borrão, provavelmente, esférico e com os tons azulados de seus olhos, que perscrutavam exaustivamente toda e qualquer atividade interna durante grande parte do dia. Será que pensavam sobre aquele grande olho azul? Será que olhavam para cima e atribuíam sentido ao que viam?

O menino fechou a janela do quarto. O termômetro interno acusava aumento de temperatura, e o mundinho precisava ser mantido em uma faixa muito estável. Sentia-se responsável por aquelas oito vidas, por seu bem-estar, por sua saúde. Sabia que um dia morreriam, mas não gostava de pensar no assunto. Amava-os como um pai poderia amar seus filhos, como um deus poderia amar sua própria criação, e ainda assim sabia que além de controlar sua temperatura, não podia fazer mais nada por eles. Sentia-se, afinal, um deus muito impotente, e perguntava-se se Deus, Deus mesmo, também não seria assim, um observador distante que amava muito a todos, mas nada podia fazer por seus filhos além de observar. Assistiu, maravilhado, quando o Chefe e a Namoradeira resolveram que estava na hora de fazer algo além de nadar e comer algas, e emocionou-se profundamente ao ver Sereia abandonar os encantos de Roedor para acasalar com o Covarde em seu esconderijo. Nenhuma das fêmeas, porém, jamais dera cria, e isso era algo que incomodava muito o menino-deus. Via as pequeninas bolhas de ar que deixavam as narinas dos habitantes do Mundo de Cristal, e percebendo que as bolhas aumentavam quando dois deles estavam próximos, achou razoável imaginar que era assim que conversavam, e dessa forma passou a imaginar sobre o que conversariam pequenos camarões rosados em um mundo de meio metro. Viu o Escalador falando aos outros do grande olho e do “mundo de cima” que vira no alto das algas, enquanto o Roedor dava mais atenção a uma alga cinzenta que a qualquer outra coisa, e viu Chefe e Ligeiro falando de Gorducha e Namoradeira, que nadavam distraídas de um lado para o outro. E assim o menino passava as manhãs na escola e o restante do dia em seu quarto, assistindo como um deus onisciente à vida cotidiana de seus oito pequenos amigos.

Um dia, procurando pelo Covarde, o menino encontrou o Chefe caído sob uma folha de alga. Foi o primeiro, e naquela noite o menino chorou como nunca antes na vida, de tristeza e impotência, porque a morte do Chefe o fez entender que logo os outros também morreriam e seu pequeno Éden, o Mundo de Cristal onde o menino-deus passava suas tardes e noites, chegava ao fim. Roedor e Ligeiro foram os próximos, na semana seguinte, e dez dias depois foi a Sereia. Nenhuma das fêmeas dera cria ao longo da vida, e o menino não sabia porque, mas também não importava mais. Seus pequenos corpos eram dissolvidos em poucos dias, por bactérias que o menino não via, mas sabia estarem lá. O Escalador foi ao encontro do grande deus-olho nos dias seguintes e, um mês depois da morte do Chefe, Gorducha e Namoradeira morreram, deixando para trás apenas o Covarde, último e irônico sobrevivente do mundo em colapso. E nem mesmo em seu último dia, já sozinho na imensidão do Mar de Cristal, Covarde deixou o conforto seguro de suas algas, morrendo abraçado a uma delas, parecendo mais medroso do que nunca.

O menino chorou apenas pelo Chefe, e chorava agora enquanto se despedia do Covarde e de seu mundo inteiro. Retirou o globo de vidro do suporte onde o colocara um ano antes, e com passos lentos e abatidos, levou-o até seu pai, que saberia o que fazer com ele. Naquela noite, deitado em sua cama, o menino olharia para o suporte vazio sobre a escrivaninha, refletiria sobre a natureza da vida e da morte, e chegaria assim oficialmente ao fim de sua infância.

em memória de Carl Sagan.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

não se fazem leis ao outro mundo

Ele estava sentado ao canto do bar, bem longe do palco, enquanto no palco tocavam um som do Caribe. "Calypso Callaloo", pensou o negro solitário ao canto do bar. "Ê, Calypso, ê!".


A noite era fria e havia u'a neblina descendo do céu. Isso lá fora, claro, porque no Clube a neblina saía da altura dos joelhos do velho Walter, um cheiro adocicado de máquina de fumaça. O negro sozinho no canto fumava sua própria fumaça, bem mais amarga. Quando o jogo de luzes do palco girava um pouco, os raios coloridos iluminavam a careca do sujeito. Ele, pensando "Calypso, ê...", só fumava.

Uma família indiana, passando pela cidade, ouviu falar desse Clube e foi lá pra ver. Sentaram a um canto, no extremo oposto da sala, e eles e o negro sozinho eram os únicos lá, naquela noite. Além de Joshua, da garçonete nova estranha e, é claro, do velho Walter.

A garçonete perguntou ao negro se ele queria algo. A família indiana perguntou à garçonete se eles podiam acender um incenso. O negro queria cachaça. A garçonete disse que, com tanta fumaça, um incenso a mais ou ao menos não daria nada...

A cachaça chegou, enquanto o incenso queimava. O velho Walter do Callaloo continuava a tocar, enquanto as crianças da Índia corriam o salão inteiro. Era noite só de travessuras, pensou o negro isolado em seu canto.

Quando a porta abriu para uma linda mulher de cabelos vermelhos entrar, entrou também uma corrente de ar. O vento gelado rodopiou o incenso indiano e o negro viu, do outro canto, que a fumaça virava uma enorme borboleta.

Quando a ruiva sentou com o negro, ele soprou a fumaça do tabaco. Primeiro em círculos, depois em rodamoinho. "Rodamunho", disse a ruiva. Seu sorriso era felino.

Lá fora passava voando um morcego, a noite escura era fria e o negro, no Clube, coçava a única perna que tinha.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011


Cansaço


Sabe cansaço?

Cansaço mesmo, em estado bruto. Quando você não tem vontade de fazer nada? Quando tudo te entedia, tudo é um saco, tudo enche e você só queria poder se trancar no seu quarto e dormir por uns três, por uns dez anos. Sabe?

É assim que eu tenho me sentido, sempre.
Sem-pre.

Acho que a primeira coisa me faz sentir assim é a idade. A velhice. Já estou perto dos 30... Não é a idade em si que me incomoda - aliás, incômodo não é bem o termo. Insatisfação, talvez seja melhor... Enfim, o problema não é a idade em si, mas o jeito que a sua vida está quando você chega lá. Eu sempre imaginei minha vida com um certo senso de completude aos 30 anos. Senso de completude, olha que bonito isso. Mas assim, eu imaginava já ter feito alguma coisa a essa altura, sabe? Não necessariamente casar, ter filhos, família carro e cachorro, esses sonhos de menininha que assiste Sessão da Tarde. Mas ter feito alguma coisa, sabe? Afinal, tempo pra isso eu tive. Chances também, não dá pra dizer que não. E não fiz porra nenhuma pra poder contar história.

- Oi, tudo bom? Como você chama?

É sempre o mesmo papinho... Sempre a mesma coisa, nunca muda. Sabe cansaço? Tem horas que eu só queria ser um avestruz pra poder enfiar a cabeça na areia.

Mas, pensando bem, avestruzes não enfiam a cabeça na areia de verdade, né?

- Você pode vir aqui um instante, por favor?

Desculpa, eu estou trabalhando agora. É, é isso aqui que eu faço. Uma loucura, né? Ficar lidando com pessoas o tempo todo, com essa obrigação de demonstrar educação e simpatia o tempo todo, tendo que tratar bem até o sujeito mais filho-da-puta-escroto que resolver aparecer aqui. Legal, né? Pelo menos eu vou embora daqui a pouco.

Vou pro meu apartamentinho, comer alguma coisa, tomar um banho e ficar só comigo, na cama vendo TV até dormir. Dormir seria bom se fosse de verdade.

Sabe aquele cansaço que você descansa e não passa?


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Parley

Em cena Tom Quase Sem Dentes, Barba Ruiva e Coro de Piratas.

[Tom Quase Sem Dentes E Barba Ruiva lutam agressivamente enquanto são observados pelo Coro de Piratas]

Tom [fazendo um floreio com a espada]: 
Que nome é este, Barba Ruiva?
Cadê a criatividade?
Eu mesmo já duelei
com vários de seus parentes!
Barba Negra, Barba Azul
hoje basta ser barbado
que o nome lhe é dado!

Barba Ruiva [cofiando a barba com a mão esquerda]: 
Mas a minha barba não é mesmo ruiva?
E alguém chamado Tom Quase Sem Dentes
pode falar dos outros impunemente?

Tom [com o semblante risonho]: 
Não podes dizer que falte
a este nome que me
deram, criatividade.

Barba Ruiva [também risonho]: 
Mas que raios de criatividade?
Se os teus dentes estão pela metade?

Tom [fechando a cara]: 
Parece que nos gracejos
se destaca, mas será
que tem tanta habilidade
no manejo da espada?

Barba Ruiva [com um sorriso irônico]:  
Minhas habilidades com a espada,
sem nenhuma modéstia, são lendárias.
.Se quiseres provar do meu talento,
venha sem exitar, neste momento!

Tom: Pois não, se é o que queres!

[Começam uma briga bem disputada]

Coro de Piratas
Qual será o resultado
dessa batalha cruel,
que afinal decidirá
quem irá nos liderar?

Corifeu [dando um passo à frente]:
 É impossível dizer,
só nos resta esperar.

[Apagam-se as luzes, fecham-se as cortinas e só se ouve o som de espadas] 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Arte de Caminhar Sozinho

Não foi necessário sentar-se de frente para o mar. Ver estrelas brilhando ao longe para concluir que nessa vida estamos sós. Bebendo partículas de solidão. Por isso compreendo os suicidas.

Acordo os dias sem ninguém esperando por mim. Pelas janelas, saboreio o sol. A luz opaca refrata-se fria. Tenho no sol meu parceiro silencioso e solitário. Cercado por um mundo feito de entulhos.

Queria ser capaz de chorar as copiosas lágrimas que vejo nos filmes. Mas de mim sai desespero seco. Não trazem o acalanto que machuca a cabeça, dando vontade de dormir. Alias, se, por ventura, me falta o sono, tomo uma pílula calmante. Se ainda continuar desperto, ingiro outra sem problemas.

Gasto meu dinheiro comigo, com quem mais? Fico em frente a televisão solitária acompanhando programas noturnos. Se tenho alguma epifanía, a faço em voz alta, como se dividisse com o invisível meus pensamentos.

Aquilo que escrevo não é lido por ninguém. Também me incluo na lista. Meros exercícios, deixados em gavetas, para que o tempo passe. Para ver o ponteiro fazer o percurso de uma hora sem tanto esforço.

Há dias uma sensação me invadiu, chegando a corroer o estômago. Não sei ao certo o que é. Apenas tenho. Os móveis continuam ao meu redor, como sempre. Não sei se os amo ou os esqueço em definitivo. Se deixá-los para trás, preservarei minha cama. É a única que me mantém bem na postura, junto com meus travesseiros ortopédicos. Acidente na infância, coluna doente para sempre.

Os tênis machucam meus pés. Unhas longas demais. Escolho os chinelos de tira larga, nada entre os dedos. Abro a porta de casa, eu e o sol na sua solidão sepulcral. Somos o mesmo astro em algum lugar imaginário.

Na esquina de casa, no posto, compro uma água mineral. E caminho. Sempre sozinho.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

MELWIN

Bom dia. Faz alguns meses que resolvi roubar uma idéia e publiquei no meu perfil do Facebook uma chamada para que as pessoas depositassem cada uma uma palavra qualquer nos comentários, de modo que ao fim do período eu reuniria as palavras todas e escreveria um conto onde todas estivessem presentes. Trinta amigos atenderam o chamado e ali estava eu com trinta palavras diversas, algumas esdrúxulas, outras simples, algumas rebuscadas, outras do baixo calão. Foram três meses só para decidir sobre o que escreveria, e a partir daí escrever foi mais um exercício de malabarismo, o que me deixou feliz por ser exatamente o que eu pretendia desde o começo. A escolha por ficção científica (tema sobre o qual já publiquei na semana passada) foi forçosa, uma das palavras presentes não me deixou escolha, e no final fiquei bastante satisfeito com o resultado. Se você é uma das trinta pessoas que participaram da construção desse conto, muito obrigado, espero ter dado um bom lugar à sua palavra. Finalmente, coagido pela natureza do conto, precisei utilizar muitas das palavras sugeridas em sua forma no plural. Espero que me perdoem por isso e que gostem do conto.


MELWIN

As três Leis da Robótica São:

Primeira Lei: Um Robô não pode causar qualquer mal a um ser humano ou,
por omissão, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

Segunda Lei: Um Robô deve obedecer a todas as ordens que lhe sejam
dadas por seres humanos, exceto em caso de conflito com a Primeira
Lei.

Terceira Lei: Um Robô deve proteger sua própria existência, exceto em
caso de conflito com a Primeira e Segunda Leis.

O céu noturno de 441T-A não possuía quaisquer atrativos apreciáveis. O pequeno globo orbitava uma também pequena estrela amarela em um sistema solar de um só astro, um só planeta e nenhum outro corpo celeste maior do que asteróides errantes. Nem mesmo um satélite natural possuía. Para piorar, o sistema solar 441T ficava em um dos extremos mais periféricos da Via Láctea, de forma que sua paisagem celeste não exibia mais do que uma dúzia de estrelas visíveis brilhando perdidas na imensidão escura. 441T e seu único planeta foram encontrados pelas naves e telescópios exploratórios da Federação há um século, e uma nave fora prontamente enviada para iniciar os processos de reconhecimento. Três pilotos, dois co-pilotos, biólogos, químicos, físicos, engenheiros, uma equipe médica completa, e os robôs.

Eram vinte e cinco robôs positrônicos trabalhadores, modelo MW, fabricados pela U.S. Robotics na Terra. Eram, na forma mais objetiva de se dizer, homens de lata, ou mais especificamente titânio e aço-boro. Seu formato e tamanho eram humanos, o que lhes permitia interagir com o mundo dos homens eoperar suas ferramentas, e seus cérebros positrônicos estavam programados com diversos procedimentos rotineiros de trabalho braçal, além é claro das Três Leis, que se encontravam na base mais profunda do sistema de inteligência artificial dos robôs Positrônicos e sem as quais nenhum modelo deixava a única fábrica de homens mecânicos da galáxia. Se a equipe de analistas humanos decidisse que o planeta era, de fato, viável para colonização, aqueles vinte e cinco trabalhadores eletrônicos poderiam construir uma pequena cidade em poucos meses. Até lá, os protocolos de migração teriam sido aprovados e as primeiras dezenas de milhares de pessoas chegariam a 441T-A para começar vida nova, e poderiam então batizar seu novo lar com um nome mais bonito.

Nada disso, no entanto, aconteceu. Um século havia se passado desde a chegada da primeira nave humana de exploração, e naquela noite costumeiramente sem estrelas os únicos olhos que observavam o céu noturno não eram humanos e não procuravam por estrelas. No alto do observatório estelar construído no ponto mais desértico de 441T-A, Melwin olhava, pela 365250ª vez para o infinito do Universo, à procura de qualquer sinal de movimento, à procura de qualquer nave humana que passasse pelo campo de leitura dos dezessete satélites artificiais que rodeavam 441T-A. Melwin não precisava observar o céu durante a noite. Todos os sistemas de escaneamento por satélites e telescópios orbitais estava conectado a seu cérebro positrônico, de forma que ele saberia, não importa onde estivesse, se alguém se aproximasse. Não acontecera nenhuma vez no último século. Ainda assim, todas as noites, Melwin caminhava até o observatório e procurava.

Melwin não era um robô trabalhador simples como os vinte e quatro que chegaram com ele na nave exploratória. A U.S. Robotics o produzira como uma versão superior dos modelos Multitask Worker, instalando em seu cérebro digital positrônico um módulo de aprendizado cognitivo e o maior banco de dados já organizado da ciência e cultura humanas. O modelo MLW - Multitask Learning Worker - a quem os cientistas e funcionários rapidamente passaram a chamar pelo hipocorístico "Melwin", foi então enviado com cento e trinta pessoas e vinte e quatro robôs MW para ajudar na colonização de mais um mundo. Os Robôs positrônicos inteligentes haviam sido inventados milhares de anos atrás, antes mesmo da humanidade explorar as estrelas e colonizar outros planetas. Seu uso, no entanto, era muito restrito, normalmente se limitando ao trabalho braçal em ambientes inóspitos. Nos grandes centros urbanos da Terra, seu uso continuava proibido por lei, um vestígio aparentemente incurável de uma Síndrome de Frankenstein inerente à humanidade. Cada robô era alimentado por micro-reatores de antimatéria virtualmente inesgotáveis, e valiam pequenas fortunas. Seu único fabricante, a U.S. Robotics, não os vendia em hipótese alguma. Eram arrendados, projetados especificamente para suprir as necessidades do cliente em particular e rios de dinheiro eram cobrados todos os anos por seu uso. Ainda assim, considerando-se a capacidade e eficiência de seu trabalho, robôs positrônicos valiam muito a pena para quem pudesse pagar.

Caminhando para fora do Observatório, Melwin perguntou-se novamente por que retornava ao telescópio todas as noites para constatar o que já sabia. Analisando a situação e combinando com seus registros sobre robopsicologia - uma versão exata e computacional da psicologia humana - concluiu que possivelmente experimentava uma sensação similar a uma emoção. Não era a primeira vez que acontecia com uma inteligência artificial. Os avanços na robótica trouxeram efeitos colaterais interessantes e assustadores, muitos deles relatados nos registros da U.S. Robotics. Houveram casos de robôs experimentando sensações análogas às humanas, como ciúmes e vergonha, e até mesmo o conhecido caso de Helvex, o robô que alegava sonhar quando inativo. Trata-se de uma emoção com certeza, pensou Melwin. Mas qual? Nas vinte e quatro horas seguintes, aquele problema ocuparia em seus circuitos todo o poder de processamento que não estivesse investido em sua missão.

Sim, evidentemente Melwin tinha uma missão. Robôs tinham aparência e inteligência humanóides, mas ainda eram equipamentos, aparelhos, ferramentas com finalidade e propósito de existência. Melwin havia sido programado com a diretriz primária de auxiliar no processo de colonização de 441T-A coordenando o trabalho dos MW até que as naves civis chegassem. Era por isso e para isso que existia, e todos os cálculos referentes a missão tinham prioridade máxima de processamento em suas trilhas positrônicas. Para melhor realizar seu propósito, Melwin possuía um gigantesco banco de dados contendo virtualmente toda a cultura dos últimos 10 séculos, da ciência à literatura, o que lhe conferia um entendimento singularmente amplo da natureza humana. Isso, é claro, para um Robô e em nível estritamente teórico.

Os circuitos positrônicos que lhe serviam de memória continham um único registro de contato prático com humanos, e já se encontrava no pequeno planeta na ocasião. Fora ativado às pressas pelo Coronel Joe Messi, líder militar da missão que gritava descontroladamente para que o robô fizesse algo, e a primeira coisa que viu foram muitos humanos correndo e gritando assustados por toda parte. A única frase que pôde compreender, no entanto, foi "Buceta! Caralho! Putaquepariu! O Frombotzer vai explo..." e então um forte clarão, uma forte pressão e um enorme aumento de temperatura. Nada no entanto que pudesse sequer manchar a estrutura reforçada de titânio e aço-boro, desenhada para resistir a ambientes extremos. Melwin e os modelos MW passaram incólumes pela explosão, mas a nave e seus tripulantes humanos foram vaporizados em um breve momento pelo calor liberado. No milissegundo que se passou entre a compreensão dedutiva do que estava acontecendo com o Deteronic Frombotzer – uma estrutura de alta tecnologia que alimentava toda a energia da nave – e a explosão em si, Melwin e todos os vinte e quatro MW ainda tentaram, impelidos pela Primeira Lei da Robótica, adiantar-se para salvar seus mestres, mas a expansão do reator foi mais rápida, e assim os vinte e cinco robôs se tornaram os únicos seres pensantes, ainda que não humanos, em 441T-A.

Sem seus mestres, sem suas ordens, os homens mecânicos passaram a aguardar instruções de Melwin, que estava registrado em seus cérebros positrônicos como instrutor de tarefas. Melwin, por sua vez, não tinha ordens a seguir, mas seu cérebro estava igualmente programado com milhares de protocolos que não necessitavam de apoio humano. E sem nenhum ser humano que pudesse ser de qualquer maneira prejudicado por suas decisões, Melwin passou a exercer sua função de colonizador por conta própria. Tinha um corpo de trabalhadores incansáveis que juntos valiam por algumas centenas de homens fortes, e em uma extrapolação lógica da Primeira Lei, concluiu que humanos que chegassem a 441T-A em naves civis sofreriam grande mal expostos às intempéries da natureza, de forma que os robôs deveriam impedir esse mal civilizando o planeta.

Assim, por um século, Melwin e os MW trabalharam dia e noite ininterruptamente em perfeita harmonia e sinergia, seguindo planos e projetos milimetricamente calculados por cérebros computadorizados.

Passaram os primeiros 22 anos recolhendo, purificando e armazenando matéria-prima do ambiente. Milhares de toneladas de pedra, madeira e material orgânico oriundo das formas de vida locais. Com a matéria-prima, produziram ferramentas rudimentares e, com estas, ferramentas mais complexas. E com ferramentas mais complexas, produziram outras ainda mais complexas. E em 3 anos de dedicação exclusiva ao avanço instrumental, Melwin e os MW finalmente atingiram o estágio mínimo de fissão nuclear necessário para passar à próxima etapa de colonização. Terraplanaram colinas, limparam inúmeros hectares de mata, e moldaram cidades à imagem daquelas que Melwin possuía em seus registros. Construíram ruas e casas, prédios e praças, conduítes e encanamentos, motores e computadores. Naquela noite, enquanto Melwin caminhava pela grande e desértica avenida para se juntar aos vinte e quatro no contínuo e interminável trabalho, 441T-A completava seu 100o. Aniversário desde a chegada da nave de exploração. Era um planeta completo, totalmente civilizado, com grandes cidades mantidas por sistemas robóticos tão complexos que poucas mentes humanas, se vissem, poderiam compreender. Mas não havia nenhuma alma humana em 441T-A. Haviam ruas, túneis e viadutos, e carros sem motoristas ou passageiros. Haviam grandes arranha-céus, escolas, hospitais e shopping centers novos em folha, e também haviam parques e reservas ecológicas, onde pessoas poderiam ver matilhas dos grandes canídeos que constituíam os maiores predadores do pequeno mundo. O Observatório foi o terceiro prédio a ser construído, e os templos religiosos estavam sendo os últimos. Pesquisando as necessidades infra-estruturais de uma cidade, Melwin deparou-se com um conceito que evadia o prático. Um sentimento amplamente registrado na cultura humana mas cujos fundamentos se estabeleciam sobre fatores ilógicos e inverificáveis. Os humanos, no entanto, possuíam uma evidente necessidade de expressar esse sentimento que Melwin encontrou com as palavras "Fé" e "Deus", e assim decidiu que precisavam de representatividade mesmo contrariando seu senso lógico. Construiu, desse modo, 39 templos religiosos, um para cada "Fé em Deus" contida em sua memória, e o último deles estava sendo concluído naquele instante.

Quando Melwin chegou ao canteiro de obras, os MW já estavam terminando o lugar depois de 70 horas de trabalho.. A cidade que estavam terminando era a quadragésima quinta do planeta, que agora poderia abrigar confortavelmente até cinqüenta milhões de pessoas. E cada cidade tinha seu estilo assim como cada casa, todos derivados do banco de dados de Melwin. Algumas casas tinham pianos, outras piscinas, outras salas de jogos. Algumas tinham aquários com peixes, vasos de petúnias, gatos e caixas de areia. Mas nem um único ser que pudesse de fato nadar, ouvir música, admirar os peixes ou brincar com o gato. Mesmo assim, em cada residência, a despensa estava cheia e bem abastecida de água e comida. Grandes plantações produziam constantes safras de alimentos para uma população inexistente. E todos os meses os robôs reuniam as produções agrícolas, chicória e agrião, maçãs e limões, arrozais e pés-de-feijão, quilométricas plantações de esponjas vegetais que pendiam do teto como imensas estalactites de proteína, e devolviam seu conteúdo estragado para a terra, onde aqueles nutrientes sem função se tornavam compostagem para o próximo plantio. Havia portos, e em cada um deles barcos, navios, submarinos, escafandros e guindastes. Haviam sorveterias, e nelas haviam máquinas que produziam Milk-shakes de chocolate com amêndoas e outros sabores, e em cada mesa, haviam lenços de papel para limpar a boca e as mãos. Mas não havia em 441T-A nenhuma boca ou mão humana que pudesse usufruir de nada daquilo. Quimicamente, os Milk-shakes eram idênticos às descrições nos circuitos de Melwin, mas ele próprio não seria capaz de dizer se sequer eram saborosos. Os robôs se reuniram diante de Melwin, e transmitiram por rádio o sinal de que haviam concluído a última tarefa para aquela cidade.

Ficaria registrada como 441T-A45, pois batizar as coisas e lugares era uma prerrogativa da qual os humanos gostavam muito, de forma que os robôs não deviam fazê-lo. Enquanto os MW recolhiam os utensílios de trabalho e carregavam o veículo de transporte, o cérebro de Melwin calculava o ponto em que seria fundada a próxima cidade, 441T-A46. Esta havia demorado quatro meses para ser erguida, trabalho que mil homens demorariam no mínimo dois anos para realizar em condições ideais. Todo aquele trabalho braçal, no entanto, não ocupava mais do que 5% da capacidade de processamento de Melwin, de forma que seus pensamentos voltavam-se constantemente para os registros culturais em seu banco de dados. Ouvia música, analisava quadros, lia e relia diariamente dezenas de milhares de páginas acerca de todos os assuntos sobre os quais o homem se debruçara. Tinha, no entanto, uma atração particular pelo estudo da psicologia humana, ciência que juntamente com a matemática originara, dezenas de milênios atrás, a Robopsicologia e a Robótica como campo da ciência. Intrigavam-lhe pontualmente as emoções, processos mentais que geralmente tinham função evolutiva, mas que não podiam ser apreendidos com perfeição por modelos matemáticos. Construído à imagem e semelhança de seus criadores, Melwin entregou-se ao mistério e, assim, passava e repassava todos os dias os trilhões de páginas em seus circuitos, à procura de modelos capazes de definir determinada palavra como "esperança", "rancor", "perdão", "hipocrisia" ou "humildade". Outros termos pareciam estranhos à primeira leitura, mas uma rápida pesquisa nas bases de dados logo trazia uma explicação, como quando deparou-se com o termo "engasopado" em um diálogo, palavra que logo descobriu referir-se a uma forma de combustível antiquado e fora de uso há mais de vinte mil anos.

E foi naquele exato momento, enquanto os MW carregavam o veículo e o aguardavam para deixar a cidade recém-construída, que Melwin olhou novamente para os céus, agora sem o telescópio do Observatório, e compreendeu a emoção que sentira horas antes no Observatório. O sentimento que nascera de seu contato ininterrupto com a produção intelectual humana, que o impelia a continuar trabalhando todos os dias e que ao fim de cada tarde o levava até o Observatório para procurar. O anseio, a constante equação mental que seus sistemas interpretavam como "desassossego" e que nenhum dos trabalhadores MW comuns pareciam sentir. Naquele milissegundo, olhando para o infinito escuro do Universo e situando-se em um mundo deserto, com cidades, ruas e casas vazias, tão distante da humanidade para que constituía sua razão de ser, Melwin compreendeu que se sentia solitário.

em memória de Isaac Asimov

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

é cedo

- Por favor!, e estendo a mão.

A garçonete não parece se lembrar de mim. Se bem que, olhando melhor, também não me lembro dela. Não é a Joana, disso estou certo. Mas era o horário dela, não era? Devia estar aqui, a menina.

Faz tempo que não nos falamos, desde que saí de viagem e o bar, ao que me parece, entrou em reformas. "Para melhor atendê-lo", dizia o Joshua. Todo bronzeado, deve ter fechado um mês e passado o verão na Europa. Ou na Somália, porque também está magro.

A garçonete me atende, afinal. Não é Joana, de fato, um crachá idiota na blusa diz que se chama Marta. Pois bem, Marta, que seja

- Uma cerveja. Meus amigos também logo chegam...