sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O Cavaleiro e o Troll (1)

“Segure com mãos firmes”, Deluc comandou. “Ou usarei suas orelhas num colar.”
“Mais firmes do que quando estou segurando tetas”, o camponês prometeu e cuspiu no chão, uma saliva viscosa e escurecida. “Pelos diabos, eu mesmo usarei minhas orelhas em um colar, se deixar um cavalo bonito destes escapar dos meus dedos. Por todos os diabos juntos, eu usaria minhas próprias bolas. As duas.”
“Eu não quero suas bolas, sequer suas orelhas. Quero apenas que fiquem de olho no Ezequiel. Ele custou metade das terras de meu pai." O cavaleiro desceu da exuberante montaria e caiu pesado no chão espanhol, chocando as várias placas da armadura que vestia em um baque metálico que deixou um incômodo zunido nos tímpanos. Maldição de peso, ele pensou, usando o cavalo como apoio. A armadura limitava seus movimentos e o deixava lento, mas protegia contra a lâmina que procurava rasgar a pele e quebrar os ossos. Jean Deluc olhou para os dois camponeses e descobriu que já esquecera os respectivos nomes. Não que fosse importante, afinal eram dois moradores daquela pequena vila abandonada por Deus; duas almas atoladas em pecados e ignorância, que viviam sem ter como aprender sobre as Escrituras e sobre o tormento eterno que os aguardava. Mas posso ajudá-los com isso, Deluc pensou, inflando o ego adquirido junto do cavalo e da armadura. Jean havia deixado para trás uma vida que deixaria seu dorso imprestável aos vinte e cinco anos, as mãos calejadas por causa dos trabalhos na terra e a obrigação de sustentar Mariè Delamoure, gorda e peluda, mais qualquer prole que ela pudesse gerar com sua semente. Pequenos monstros, Deluc tinha certeza; todos eles, pequenos monstros. Um arrepio escalou sua espinha e ele pensou que estava melhor naquele lugar horrível, árido, onde as pessoas falavam na língua estranha. “Onde vocês aprenderam latim, afinal?”
“Os anjos me visitaram em sonhos e assim eu aprendi a falar com eles.” O homem barrigudo enfiou um dedo no ouvido e tirou uma bola amarelada de sebo e fios de cabelo e, em seguida, engoliu tudo. Deluc sentiu uma revolta no estômago, mas a controlou facilmente. Não era o seu papel julgar as mentiras de homens baixos. Se ele podia conviver com aquela mentira nas terras de Torquemada, estava tudo bem. Estava ali para matar o Troll e nada mais. Seguiria para Portugal naquele dia, quem sabe. Lá poderia procurar por mais serviços em nome do Senhor. E em busca de fama e fortuna, é claro. “Ele não”, apontou para o outro camponês, um homem de cabelos revoltosos e sujos. “Os anjos me escolheram, mas Deus quis que ele fosse mudo. Nenhuma palavra, juro. Se alguém o colocar de joelhos e enfiar tudo no rabo, não fará um som sequer”, ele colocou um dos dedos no buraco que tinha no meio do queixo gordo, “mas acho que é porque ele gosta, não porque é mudo.”
O mudo arremessou uma pedra que tinha nas mãos e acertou o exato centro da testa do gordo, que se desequilibrou e caiu, formando ondas de gordura por todo o corpo. “Ei”, protestou do chão, “você precisa trabalhar seu senso de humor. Diabos.” Passou a mão pela testa e verificou se estava sangrando.
Jean Deluc revirou os olhos e respirou fundo. “É mesmo um Troll, vocês têm certeza?”
“Absoluta, ou corto minhas bolas-”
“Sim, sim, coloca ao redor do pescoço”, Deluc o interrompeu, já sem paciência. “Vocês estão com o pagamento?”
Levantando um saco de pano, o homem mudo mexeu as vinte moedas de ouro.
“Eu pensava que Trolls existissem apenas nas terras do norte”, Jean falou, observando as paredes em ruína.
“Eles são como fogo”, ainda procurava por sangue na testa, fechando o rosto cada vez que encostava na bola roxa que já começava a surgir.
“Como fogo?”
O rosto rechonchudo se iluminou, como se estivesse esperando há anos para soltar alguma frase inteligente: “Dizem que onde há fumaça, há fogo. Mas é claro que há fogo onde a Divina Providência o quer, como quer e quando quer, isto é, sempre que Deus deseja chamas, haverá chamas. Nunca antes. Nunca depois. Mas no exato momento em que Ele o quiser. Como as chamas são instrumentos de limpeza da al-”, ele parou a verborragia quando o mudo cotovelou a barriga flácida. “Resumindo, onde há ponte, há Troll.” Apontou dois dedos, gordos como cabeças de galinhas, para o norte. “É uma regra.”
Deluc girou os ombros e olhou a antiga ponte de pedras. De alguma forma, ela parecia ainda mais antiga que a igreja. A igreja em si estava em ruínas. Dela, apenas as estruturas das portas e das naves permitiam identificar a antiga Casa de Deus. O resto estava coberto por trapadeiras e pequenos animais a procura de comida. Um dia, perdido no passado, aquela fora uma igreja grandiosa e Jean quase podia sentir a onda de fé e paz que o antigo terreno abrigava. No entanto, a última pessoa presente em uma missa naquele lugar, estava de volta ao pó há anos. O cavaleiro suspirou por baixo da armadura, sacou da espada e começou a caminhar lentamente para dentro da ruína.
“Ei, vá com cuidado! Trolls gostam de ficar na sombra.”
As palavras do gordo ecoaram em sua cabeça e ele se preparou, caso o absurdo no qual estava envolvido fosse verdade. O interior da antiga igreja estava no mais puro caos. Restos de cachorros apodreciam em quase todos os cantos, ratos gigantescos corriam sobre os pedestais velhos e pombas voavam, vez ou outra. As plantas também invadiam o lugar e reconquistavam a pedra, engolindo alguns bancos e praticamente toda a ala oeste. Maldita, maldição de porcaria de armadura. Enquanto escutava seus passos se espalhando pelo lugar. Não havia abordagem sutil, ele descobriu demasiadamente tarde, quando se está dentro de vinte e cinco quilos de aço. Talvez seja melhor voltar.
Deu mais alguns passos, o som metálico parecia mais alto, conforme avançava para o centro da igreja. De repente, um barulho explodiu ao seu lado e ele cortou com a espada recém-forjada, e soltou um pequeno, porém agudo, grito. Uma pomba caiu morta, com o pescoço quebrado. Merda! Chega, estou voltando agora mesmo, Mariè Delamoure, abra suas pernas gordas e se prepare: estou voltando. Girou e começou, com passos apressados, a avançar para fora. A imagem de seu pai trocando a preciosa terra que haviam conquistado com muito suor pelo cavalo, armadura e espada, além do pequeno saco de moedas de ouro para pagar sua peregrinação, invadiu sua mente, vívida e detalhada. Podia ver o misto de tristeza e esperança no rosto de seu pai, podia sentir a saudade de sua mãe no exato momento em que virou as costas para sua antiga casa e cavalgou, talvez para sempre. No íntimo, sonhava com uma volta triunfante para o interior da França, onde tomaria o controle da cidade e seria justo para todos os franceses. Ele faria fama e fortuna, lutaria em nome do bem e de Deus, seria reconhecido por todo o mundo cristão como o mais bravo cavaleiro. Não poderia correr como uma garotinha medrosa apenas por causa de um pássaro. Um pássaro! Jean Deluc firmou o aperto na empunhadura e entrou ainda mais na ruína. Sua história começava naquela igreja. Fama e fortuna.
Seu pensamento mudou no exato momento em que viu o Troll, protegido pelas sombras da igreja.

Continua: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/08/o-cavaleiro-e-o-troll-final.html

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