sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Chove

O Legista parou o carro e desceu, já com a proteção branca ao redor dos sapatos. Olhou para o céu e franziu a testa: nuvens pesadas rolavam acima da sua cabeça ameaçando destruir todas as provas. Aquele poderia ser mais um trabalho do Destino, depois de tantos anos de caçada, ele podia farejá-lo no ar, sentia sua presença, como se estivesse assistindo ao seu trabalho. Tinha de pegá-lo, não havia alternativa. Ou sua própria cabeça iria rolar. Começou a agir rapidamente, gritando ordens, berrando advertências e cuidados para a novata, tirando fotos e procurando montar na cabeça a linha cronológica do assassinato. Destino era um inimigo escorregadio, sabia muito bem o Legista. A verdade era que ninguém tinha um número seguro para suas vítimas, como ele deveria provar as ações de um assassino que criava em perfeição cenários que pareciam acidentais? Fios antigos em curto, provocando um incêndio alguns anos antes; semáforos defeituosos; escadas de madeira roídas por cupins. A lista rolava indefinidamente. A cada acidente, em todas as calamidades que atingiam Porto de Amy, o Legista usava o olhar clínico, treinado e afiado, para encontrar seu nêmesis. Destino, era a alcunha auto-nomeada. Ele acontecia, nada poderia pará-lo, nem o próprio tempo. Mas como, o Legista se perguntava novamente, provar a existência do Destino? Estudava a cena horrível, pensando se o braço - pendurado no corpo feminino apenas por uma pele esticada - estava na posição correta para provar se o esmagamento pela caçamba fora acidental. Olhou com cuidado, procurando vestígios, indícios… um trovão explodiu no céu e ressoou por quilômetros e quilômetros. O Legista tinha pouco tempo. A caçamba de metal - azul, manchada de ferrugem, ele notou - havia deslizado junto com a terra molhada, caindo pelo barranco e esmagando a mulher contra um muro, deixando pelo caminho rastros azuis e carros amassados.
“Já temos uma idade?”, ele perguntou para uma jovem de máscara branca. Ela era bonita, tinha cabelos vermelhos e uma tatuagem triforce na nuca.
Ela bateu alguma fotos, segurando uma régua ao lado do membro quase decepado e cortou a pele com um bisturi, traçando um corte limpo e preciso. Ela segurou o braço na altura dos olhos e o girou, procurando por sinais que indicavam idade. “Entre quarenta e 45 anos. Provavelmente”, respondeu, entoando fortemente a essa palavra. “É difícil dizer qualquer coisa com certeza. Pobre mulher.”
A novata tem razão, pensou o Legista: a cena deixava poucas evidências e aquilo que colhiam indicavam uma infelicidade. A caçamba cheia de entulhos fora cuidadosamente colocada em lugar permitido e seguro, apenas a chuva forte da noite anterior poderia ter causado o deslizamento e a péssima sincronia que acabou por matar a mulher incógnita. Merda, ele pensou. Sentia o turbilhão de perguntas invadindo a sua mente, corroendo a sanidade como um parasita ácido, desenvolvido para deixá-lo louco e obcecado. Como vou para o Destino?
Como uma resposta do… bem, do próprio destino, uma folha voou contra o metal gelado e revelou um pequeno ponto vermelho sobre o metal. O Legista largou a câmera no chão e correu para a caixa de metal puro. As primeiras gotas começavam a cair.
“Rápido”, ele gritou para ela. Quando não a encontrou, correu para a caixa que levava sempre para as cenas de crime e agarrou o material. Merdamerdamerdamerdamerda
A chuva começou a cair em gotas pesadas.
O perito pescou a película com mãos trêmulas na terceira tentativa, precisava daquela digital embebida no sangue da mulher. A evidência estava num ponto onde ela não conseguiria alcançar, era a chave para pegar Destino.
A chuva, no entanto, lavou a mancha vermelha. O Legista assistiu, incrédulo, o Destino escapando de seus dedos.
Sua mente não registrou o pneu queimando contra o asfalto e os grito que se seguiu.
Ele apenas assistiu o fio vermelho escorrendo com a chuva, lavando a identidade de sua obsessão.

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Mário dirigia com pressa. Furava sinais vermelhos, fazia curvas fechadas e costurava os outros carros que também tentavam chegar ao trabalho. Quando o trânsito desta maldita cidade ficou tão caótico?, perguntou-se pouco antes de travas a direção na direita, evitando bater em duas motos que esperavam sua vez de prosseguir. Uma buzina de carro disparou contra ele pouco antes do motor bombear energia e o carro disparar rua acima. Mário dirigia com pressa, muita, muita pressa. Quando chegou na avenida principal de Porto de Amy, encontrou o trânsito fluindo com mais agilidade e coordenação, achando que poderia acelerar um pouco mais. Seu celular vibrou no bolso e ele ergueu o corpo alcançar o aparelho.
“O que é?”, atendeu num tom irritado, o único que tinha para sua ex-mulher.
Ela balbuciou alguma coisa sobre a pensão alimentícia atrasada e começou a xingá-lo, sutil como sempre. Mário dirigiu, admirando mais a paisagem oceânica de Porto de Amy do que o trânsito que enfrentava, incólume por algum milagre. “Filho da puta!”, escutou alguém gritando e enfiando a mão na buzina. Limitou-se a mostrar o dedo do meio. Dirigiu por quatro minuto até que ela ficasse sem vocabulário ofensivo e abriu a boca para falar. “Eu faço a porra do depósito hoje. Mais alguma coisa?” Um trovão ecoou, grave e denso.
A mulher continuou a gritar, mas ele jogou o celular entre as pernas e continuou a dirigir, checando a hora no relógio de pulso. Filhodeumaputaatrasadacaralhoporra!, pensou, pisando ainda mais no acelerador. O carro voou pela avenida de Porto de Amy. No céu, nuvens carregadas ameaçavam derramar o segundo dilúvio em instantes e um fio percorreu a espinha do motorista. A cidade sediava chuvas torrenciais que deixavam os moradores apreensivos e muitas casas pararam no mar durante os anos anteriores. Na noite passada, a chuva causara deslizamento e afogamentos. Os cidadãos de Porto de Amy queriam uma folga da chuva desgraçada que caía sobre eles. Mas não era o caso. E Mário planejava estar seguro, dentro do escritório e com o carro na garagem coberta do prédio quando a chuva começasse a cair sobre eles.
Quando virou para uma das ruas de intersecção, Mário diminuiu a velocidade levemente, continuando muito acima do permitido, e escutou o telefone tocando. Depois, tudo aconteceu muito rápido.
A chuva começou a cair em gotas pesadas.
Primeiro, Mário viu a faixa amarela cercando o corpo esmagado por uma caçamba. Era uma cena feia e dois legistas faziam seu trabalho. Mário registrou, com a visão periférica, um braço ensacado e algumas poças de sangue. Ele também notou que um dos Legistas corria para a caçamba com um plástico retangular em umas das mãos, mas as primeiras gotas de chuva caíam sobre as evidências. Lá se vai um caso, ele pensou, juntando todo o conhecimento adquirido em CSI.
Em seguida, seu celular voltou a tocar. Com uma mão, Mário pescou o aparelho dentre as pernas e olhou rapidamente para o número: Restrito, piscava a tela. Apertou o botão verde e levou o celular ao ouvido. “A-alô?”
Nada. Podia ouvir a respiração pesada do outro lado da linha.
“Alô?”, tentou novamente, desta vez mais alto. Em resposta, escutou três palavras, todas fatais. Cada uma entrou em cérebro como minúsculas facas, traduzidas em sinais elétricos, que destruíram tudo em seu caminho. Mário largou o telefone e sentiu o mundo perder o foco. Quando viu o vulto, já era tarde demais e o pneu do carro queimou contra o asfalto numa tentativa vã de freiar. O asfalto molhado não permitia tanto atrito quanto ele gostaria e o carro em alta velocidade atingiu o corpo.
Mário viu pelo retrovisor a massa vermelha e branca pelo retrovisor.
No seu colo, o celular dizia que a ligação estava cortada.

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Link chegou atrasada para o trabalho. Colocou a máscara e calçou a proteção para os tênis. Ela gostava do All Star que usava e mesmo depois de assumir um cargo de grande responsabilidades, descobriu que simplesmente faltava-lhe a coragem para se separar deles. Usava o jaleco branco, as luvas de látex e todo o resto do uniforme padrão para um legista médico, somando o All Star. Link gostava de personalizar todos os aspectos de seu cotidiano e não era sempre que as pessoas podiam ver uma ‘cientista’ de cabelos vermelhos e com três triângulos amarelos tatuados na nuca. Era uma piada interna, o seu nome. Seus pais começaram o relacionamento - no que ela acreditava ter sido a mais tórrida noite de sexo, suor e arrependimento mútuo - depois de discutir como são idiotas as pessoas que chamam Link de Zelda. Zelda, ela sabia, era a princesa e não o corajoso elfo que parte em seu resgate e ter nome do verdadeiro herói e não da princesa-fresca-sempre-em-perigo era o maior agradecimento que ela tinha para os pais. Eles eram separados e vivam suas próprias vidas agora, com outras famílias e outros problemas. Para Link, sobrava a busca pela Triforce em sua vida, busca que estava marcada eternamente em sua pele. Por baixo da tatuagem, apenas alguém com bons olhos poderia ver a cicatriz que marcava o capítulo mais dramático na luta pela vida. Ela sobrevivera aos obstáculos e estava na hora de continuar a vida. Uma nova vida, com um novo emprego e o velho diploma.
Enfrentou uma infância difícil e sua saída foi debruçar-se sobre os livros para conseguir o emprego dos sonhos; construiu, aos poucos, seu porto seguro contra os abusos paternos e maternos. Era o único modo para Link: dividir todo o tempo que tinha entre os livros e os controles, só assim conseguiu manter a lucidez. Link sentia que estava no caminho certo e sua vida estava sob controle próximo e severo; sabia exatamente o que iria acontecer com sua carreira, planos artísticos e construção familiar. Link não tinha problemas, seguia o próprio caminho, com as próprias pernas e com a espada mágica, é claro. Afinal, ela não era uma princesa em perigo, que só conseguia ser uma vaca e reclamar da situação, sem nunca mexer a porra de um dedo para fazer algo.
Um trovão explodiu acima e ela voltou para o mundo real.
Ela segurou o braço pendurado apenas por uma estreita faixa de pele e o liberou com um bisturi. Sucesso crítico!, ela pensou quando o corte se mostrou preciso e limpo. Guardou sua espada +3 no estojo e levou o braço para análise. Se pudesse contar os anos de uma pessoa como nos anéis de árvores contadas, ela já teria uma resposta para seu colega. “Entre quarenta e 45 anos. Provavelmente”, respondeu. “É difícil dizer qualquer coisa com certeza. Pobre mulher.”
Olhando para cima, Link ficou preocupada com a chuva que ameaçava despencar sobre eles. Uma chuva dessas apagaria qualquer possibilidade de pegarem o Destino, o que não seria nada, nada, nada bom. Franziu o cenho e estudou a face do Legista. Ele era legal com ela, considerando que era uma novata no campo. Mas sua obsessão em descobrir a identidade do assassino serial a preocupava. Ele havia perdido mais de dez quilos nos últimos dois meses e ela desconfiava que voltara a apostar, um vício que tinha manchado seu passado, pelo que ela escutara nos corredores do laboratório. Nada bom, meu chapa, ela pensou, passando a mão sobre a tatuagem em sua nuca, sentindo-a molhada.
A chuva começou a cair em gotas pesadas.
Link sentiu uma vibração no bolso e pegou o celular. O sinal estava cortado e ela escutou algumas palavras, sem entender realmente o que a outra pessoa dizia. “Como é?”, ela gritou, parando o dedo coberto pela luva suja de sangue há poucos milímetros do ouvido. “Não estou ouvindo! Repita, por favor.” Caminhou para procurar sinal melhor e passou por baixo da faixa amarela, que limitava o acesso público à cena do provável crime, sem perceber o homem que levantou a faixa. Também ignorou os gritos do Legista.
“É perigoso ir sozinho”, a voz disse pelo alto falante do aparelho em suas mãos, “pegue isto.”
A mulher sentiu um frio percorrer sua espinha; depois, um carro.
Link voava e sua espinha estava agora quebrada.
A chuva molhava as tatuagens expostas e, perto, alguém gritava desesperado contra a chuva, que também molhava sua cicatriz.

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Destino percorreu o dedo no sangue da mulher. Como previsto, ele precisou de pouca interferência para que ela seguisse seu destino. Esmagada por entulhos, que final trágico. Todo homem deve morrer, eis a verdade última. Não cabia a ele decidir se Deus existia ou não, se as pessoas encontrariam um homem barbudo, um elefante com oito braços ou uma mulher segurando chicote e espada. Seu papel era fazer com que as pessoas fossem de encontro ao seu destino e o Legista logo descobriria que aquela mulher escapara da tuberculose por causa da medicina moderna. Ela já deveria estar morta há meses e estar viva não era um direito do qual partilhava. Não mais. Sua existência na Terra era algo terrível e deveria ser anulada o mais breve possível. Uma ligação e um pouco de água em um ponto geograficamente fraco e pronto. O Universo estava um pouco mais no eixo. Em poucas horas a policia estaria no local e voltaria a chover. Ele tinha mais uma correção a fazer. Deixou uma marca vermelha para o Legista, pressionando fortemente o dedão ensangüentado contra a caçamba. Ele poderia pegar sua digital, ou a chuva lavaria tudo antes. Deixaria nas mãos do Destino.
O tempo passou rápido e quando ele menos esperava, o circo estava montado. Destino colocou um boné de equipe forense, o casaco azulado e infiltrou-se entre os policiais que aguardavam pela chegada do Legista. Eles nunca pensam que alguns pintores gostam, de fato, observar sua obra. O céu cinzento continuava a rolar com velocidade e um vento gelado cortava a cidade. Tudo de acordo, destino em curso.
A chuva começou a cair em gotas pesadas.
Observou, com enorme prazer, o trabalho dos dois legistas. O cuidado com as provas, as mentes trabalhando em conjunto para entender a física e o peso dos entulhos, as impressões digitais. Ficou decepcionado quando o Legista não encontrou sua impressão digital, talvez o Universo ainda precisava de mais… sincronia. Link, afinal, ainda respirava. Logo estaria chovendo e o destino seguiria o caminho. Nada mais natural.
A garota cortou um pedaço de pele e guardou o braço em um saco plástico. Destino observou tudo de perto. Retirou o celular do bolso e ligou para Mário, o analista de sistema que passava naquele ponto todos os dias. As probabilidades estavam do seu lado, como deveriam estar. O Destino não toma outras vias que não a principal. Mário passava por problemas familiares e estava sempre atrasado, uma combinação perigosa naquela chuva pesada, que começaria a cair em breve. Destino escutou o Legista gritando e se permitiu meio sorriso quando viu a impressão digital -sua impressão digital - ser lavada pelas primeiras gotas de chuva. Que pena.
Seus dedos pressionaram outros número: Link atendeu a chamada que se originava há poucos metros. Poucos segundos depois, ela procurou por uma recepção melhor, o que não seria necessário, caso o tempo estivesse limpo. Destino ergueu a faixa amarela para ela e a deixou passar, sem saber o que estava para ocorrer. O homem sorriu, disse as palavras e se deliciou com o barulho do carro de Mário.
BAM!

Destino tirou o chapéu e desapareceu no meio da multidão que se formava para ver o novo acidente, já procurando em seu celular por uma nova história, um novo desvio do Universo para ser reparado.

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