quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Saga: pedras e brasas

Nesta noite de inverno, ao colocar as calças do moletom marrom, primeiro a perna direita, depois uma pausa para equilibrar e colocar a esquerda, Getúlio, nome de batismo em homenagem ao presidente,decidiu tornar-se um homem mudo.

A decisão não aconteceu de repente como parecia. Se fez lentamente como as machas de mofo do teto. Uma a uma até o dia da incontestável afirmação de que o ambiente estava inabitável e incomodava a respiração. Como gotas sulfúricas que caem em um copo, dissolvendo-o.

Então, na manhã seguinte, decidiu ser o mesmo homem cordial que era, mas com menos palavras. Não poderia se dar ao luxo de ser mudo sem parecer deslocado, sem evitar um julgamento prévio dos vizinhos e do porteiro. O mundo exterior não lhe incomodava. Estava dentro de seu campo neutro de convivência. Agudo era o outro, o circulo interior, que ultrapassava as portas da casa imaginária. 

Decidiu se fechar para os conhecidos, os colegas, os amigos, a família. Um protesto que, por estar silencioso, ninguém compreendeu a razão. Quando lhe indagavam os motivos de seu silêncio, erguia uma das sobrancelhas, fazia um meio sorriso e balançava a cabeça em negação, como se risse de todos.

Getúlio queria que o olhar falasse mais que palavras. Um cinema mudo, anterior ao verbo, que expressasse, de maneira mais nítida, os sentimentos sem a verborragia das línguas. Desejava ser simples. E, em sua simplicidade, optou por ficar em silêncio.

Os amigos estranharam e só perceberam uma relação de causa e consequência quando refletiram que todos, sem exceção, recebiam o mesmo tratamento. Alguns se sentiram culpados, achando que haviam feito algo ao rapaz. Retomaram mentalmente últimos diálogos, mas não encontravam razão para seu silêncio, a não ser um sentimento que não tinham observado ou loucura completa.

Mas Getúlio desejava ser simples. Naquela noite enquanto aquecia-se do frio vestindo seu moletom, lembrou-se de Laura e de como era difícil manter qualquer diálogo que fosse, até o mais trivial. Laura, que conhecera há cinco anos, sempre parecia inserida em um senso de abarrotamento e velocidade que nunca lhe permitia conversar com Getúlio. Nenhuma mensagem. Nenhum olá. Nenhuma resposta as suas perguntas ínfimas sobre assuntos que ela poderia gostar, apenas para manterem uma conexão quase morta.

Ainda semi nu naquela noite, fez de Laura a perspectiva de sua vida. Como cartas de baralho foi expondo cada relação sobre a mesa. Cada morte antecipada por desentendimentos, acidentes aéreos, despedidas involuntária, desprezo e uma sensação de quase morte que lhe tirava quase toda vida.

O toque do tecido em suas pernas lhe deu alívio. Dando-lhe uma sensação de completude responsável pelo sentimento de clareza que lhe surgiu naquele instante. Então, decidiu emudecer.

Percebeu que como sua casa, a vida dentro de seu imaginário abstrato, estava cheia de bolor. Laura, cuja a ida para outra cidade matou mais que a amizade; Jonas e o casamento que o tornou um homem melhor e indigno de viver com os solteiros; Amanda e a sensação de que lhe fizera um mal irremediável; Carlos que lhe disse sem expectativas sobre a amizade, por não ter aquilo que desejava; E até uma paixão do colégio, Natália, lhe parecia estranha quando, após diversas semanas de encontros e expectativa, parecia alheia a ele, como se tudo não passasse de uma simulação.

Getúlio preferiu fechar-se em si mesmo. Deglutir a própria solidão e viver com seus fantasmas. Mudo sentia somente a si. Na entrega que havia feito a outros, recebeu apenas tristeza. As relações eram fogos de artifício; brilhavam e morriam. Mudo completava a si mesmo. Negava a própria sensação de ser negado. Afastava-se para não assistir o definhar lento da morte. Das mortes de cada um de seus entes queridos. A distância. O silêncio. A mentira. Se tudo viraria cinzas, preferiu se calar.

Parecia infantil. Como o perdedor que vira o tabuleiro quando se encontra encurralado. Getúlio estava velho e infeliz. A vida o encurralou. A consciência de que tudo era transitório e, a cada noite, a cada pergunta não respondida de Laura, a cada desistência de encontros com Carlos, ele sentia-se um pouco mais só.

Sozinho no meio de um salão que imaginava cheio de entes queridos mas que, ao procurar diálogos, encontrava-se distante de qualquer conversa. Um salão a meia luz, com um chão forrado de uma pós festa sem nenhuma comemoração. O bolor das paredes como a única constante. O mais antigo conhecido.

Getúlio se calou naquela noite em diante.

Um comentário: