sexta-feira, 7 de junho de 2013

Música e Silêncio

Miles Davis jorrava sagacidade pelas caixas da jukebox. O homem estava sentado em uma das mesas mais afastadas do barulho, próxima à saída. Estava confortavelmente encostado na cadeira, com os braços apoiados na mesa e as pernas espalhadas sem preocupações com etiquetas; o peso do corpo largado sobre a cadeira fazia Kiki se perguntar quanto tempo ela poderia ler até ser obrigada a correr para levantá-lo do chão, quem sabe retirar pedaços de madeira quebrada daquele traseiro gordo. 
Ele gostava do Clube por causa da falta de etiqueta, mas às vezes contemplava se não estaria abusando da hospitalidade. O fato de frequentar o mesmo bar religiosamente não dava o direito de perder os costumes da civilização, certo? Jogou repentinamente o peso para as pernas e se ajeitou, endireitando as costas e molhou os lábios com a língua. A cadeira rangeu em agonia. A garçonete olhou para ele, erguendo momentaneamente os olhos das palavras. Kiki lia um livro grosso sobre o balcão quando o sujeito a chamou. Prontamente largou o que fazia e foi até a mesa, notando o copo vazio. “Mais uma dose?”
Ele encarou o copo por alguns segundos, tentando se decidir se deveria tomar mais um pouco de whisky. Quando se pegou perguntando quantos copos enxergava sobre a madeira, decidiu que já bebera o suficente. “Não”, respondeu com a voz seca, “um café será o suficiente, querida.”
A garçonete saboreou as palavras da voz suave, ainda que o tom fora seco e um pouco agudo. Assentiu com a cabeça e desapareceu cozinha adentro, voltando poucos segundos depois, trazendo duas xícaras e a garrafa térmica. “Eu já estava fazendo um pouco para mim, querido.” A última palavra saiu um pouco mais atrevida do que pretendia e Kiki sentiu o rosto ardendo em chamas. “Importa-se?”
“Com o quê…”, a pergunta morreu no ar quando percebeu que a moça indicava a cadeira vazia com a cabeça. “Não, sim, claro”, o desajuste era risível, mas Kiki conseguiu manter o rosto impassível. Ela sentou suavemente e serviu café para as duas xícaras, delicadamente empurrando uma delas para o homem.
“Eu ainda não sei o seu nome. Você aparece aqui o quê? Cinco, seis madrugadas por semana, senta na mesma mesa e bebe até o sol matar a noite, depois se levanta, deixa o dinheiro seguro por um copo e desaparece para o mundo. Há meses eu te vejo sentado aqui, solitário, no silêncio. E eu não sei nada sobre você. Diga seu nome, vamos lá.” Kiki o estudou profundamente, não pela primeira vez. À primeira vista, ele parecia um homem que consumia mais bacon e cerveja do que devia, mas havia uma montanha de músculos por baixa da camada de gordura. O estômago largo acompanhava coxas musculosas e braços que pareciam pequenos troncos, os ombros largos imprimiam respeito na mente das pessoas ao redor. Tinha pouco cabelo ao redor da cabeça, cortados rente ao crânio, o que deixava sua figura ainda mais sólida, desencorajando qualquer tipo de desrespeito. Os dedos grossos pegaram a xícara - fazendo com que a porcelana parecesse incrivelmente frágil e pequena, como um brinquedo caro no quarto de uma garota mimada - e ele sorveu do café.
“Paulo”, respondeu por fim.
“Prazer Paulo, sou a Kiki.” Ela estendeu a mão e percebeu o mesmo efeito da xícara quando Paulo fechou o firme aperto.
“Eu sei.”
“Sabe?”
“Sim, está no seu crachá.” A garçonete olhou para baixo e sorriu. “Kiki? Que tipo de nome é esse?”
“Monique. Minha avó me chama de Moniqui, ficou Kiki e eu adotei.”
“Você não vai ter problemas por ficar aqui?” Paulo indicou o pequeno grupo que completava o atual número de clientes no Clube. Eram três homens, o mais velho com pouco mais de trinta anos, vestindo ternos e ostentando cortes de cabelo que pagariam um boa refeição mais o táxi.
Kiki olhou com desdém para eles e chacoalhou a cabeça. “Não”, respondeu brincando com a xícara, “eles estão bem. Está vendo as canecas cheias? E o modo como estão conversando?”
Ele estudou a cena, prestando atenção no que Kiki havia apontado. “Sim”.
“Eles não vão precisar de mim tão cedo. Um deles está inclinado, falando baixinho apesar de estarmos do lado oposto e da música alta. As bochechas estão coradas e os outros dois têm aquele sorriso besta com a boca aberta. Vê? O rapazinho falando provavelmente estará contando a última noite que teve com a amante. Ou uma das. Eles estarão bem por mais quinze ou vinte minutos, depois eu levo mais cerveja e tudo estará bem por mais vinte minutos, quando outro contará como fez para pegar a promoção da empresa.”
“Como você notou tudo isso?”, Paulo estava interessado em uma conversa pela primeira vez em alguns anos. Kiki sempre fora uma garçonete gentil e reservada, a ponto dele nunca esperar que algum dia estaria trocando palavras com ela. Gostava do ritmo suave das frases da garota.
“Depois de anos trabalhando aqui, você acaba aprendendo. É pura análise, só jogar um Sherlock pra cima deles, simples. A cerveja está esquentando, intocada. Isso significa que o assunto é interessante e nada mais pode ser interessante às”, ela parou e conferiu o relógio de pulso, “três da manhã do que sexo. O narrador de cabelo bem cortado está usando uma aliança, mas ele não me parece do tipo que faz amor caliente com a esposa, não, com ela é uma rotina simples, mantendo o respeito das aparências. Se você o seguir, vai parar nos subúrbios, pode ter certeza. Além do mais, eu já disse como estão cochichando. Se gritássemos daqui, nunca perceberiam.”
Paulo fechou a mão ao redor da xícara e bebeu mais café, pegando mais da garrafa sem pedir permissão. Virou-se novamente para o grupo do outro lado do Clube e viu cada ítem da lista de Kiki, julgando que ela estava correta em todos os pontos. Miles Davis terminou outra obra-prima e deu espaço para as cordas de Willie Dixon. “Acho que você tem razão, garota. Eu julgava que você era interessante. Não me leve a mal, mas metade das garçonetes que encontrei na vida são pessoas tristes. Mães solteiras que vivem de pagamento à pagamento, colocando o dinheiro em seções apertadas de aluguel, comida, fralda, gasolina e cigarro. A outra metade são criaturas desprovidas de vida inteligente, fazendo bico para pagar um curso qualquer numa faculdade de terceira qualidade que provavelmente frequentarão até um marido rico aparecer no horizonte. Mas hey, quem sou eu para julgar? Eu gostei daqui desde a primeira vez.  Quando entrei e você carregava um livro gigantesco para cima e para baixo, eu sabia que aqui era meu bar. História, do Heródoto, uma escolha... peculiar. Depois disso comecei a acompanhar os livros que você fica lendo enquanto finge que trabalha de verdade - e de novo, não me leve a mal, acho muito bom que você saiba aproveitar bem seu tempo. Dificilmente eu venho aqui por quatro dias seguidos sem que você tenha trocado de livro, se termina de ler ou desiste no meio, eu nunca sei. O que é interessante de verdade são os títulos. Tolstói? E não é por você ser jovem e trabalhar no turno da madrugada atrás de um balcão, por Deus, mas quem lê Tolstói nesses dias? Memorável. Eu até comprei uma dúzia de brochuras por sua causa. Dennis LeHane, Haruki Murakami, Umberto Eco, Mario Puzo… até o maldito Fitzgerald! Eu ignorava literatura totalmente, mas você me incentivou.” Paulo ergueu a terceira xícara de café e fez um brinde. “Obrigado.”
“Ora essa. E eu pensando que você nunca prestava atenção ao que acontecia ao redor e-”, a frase morreu no ar quando os três homens gargalharam alto, tomando cerveja e batendo os corpos com força na mesa. I’m the hoochie coochie man, Dixon admitiu através da jukiebox. “É por isso que eu decidi sentar aqui”, Kiki continuou, ignorando as mãos que agora se erguiam do outro lado do bar, “porque eu nunca consegui decifrar você, Paulo. Qualquer um que entra por aquela porta no meu turno é como um livro aberto. Em cinco minutos eu posso dizer o que a pessoa faz e se está com algum problema. Algumas vezes eu confirmo com o Zack, se ele também conhece o cliente e raramente erro nos detalhes. Mas não você. Você está escrito em outra língua, Paulo.”
“Não vai atendê-los, Kiki?”
A outra mesa fazia barulho e clamava pela garçonete. Kiki se levantou e sinalizou para eles, pedindo mais tempo. “O que você faz, Paulo? Porque aparece aqui quase todas as madrugadas?”
“Eu venho por causa do silêncio.”
Kiki ficou calada, deixando o barulho dos outros homens e da música da jukebox preencher o Clube como se fossem um pano com álcool sobre feridas abertas. “Silêncio? Aqui é o lar do barulho!”
“Não. Você consegue ler em paz. Eu consigo sentar e beber meu whisky em silêncio, aproveitando o simples ato de estar calado, em silêncio. Eu trabalho na construção de grandes obras, Kiki; no momento estou supervisionando a abertura de um túnel de metrô, você tem idéia do barulho infernal com o qual convivo? Eu trabalho seis dias por semana das três da tarde até às duas da manhã. Uma obra assim funciona 24 horas. Horríveis 24 horas por dia, consegue imaginar todo o barulho? Eu venho aqui para sentar no escuro e no silêncio. A música? Isso não é barulho. Willie Dixon está tocando agora, antes dele foi o Miles Davis e vocês têm Nat King Cole, Nina Simone e até Led Zeppelin na jukebox. Não é barulho, é poesia. Nesse horário o Clube está quase vazio, em paz. Não temos o barulho da mesa de bilhar, a conversa exagerada das outras mesas ou a televisão ligada num jogo qualquer. Não, Kiki. Eu venho pelo silêncio. E pelo seu silêncio.”
“Meu silêncio?” Kiki respondeu, sentindo o rosto corar. Os homens começavam a gritar pela garçonete.
“Você já andou por uma rua vazia às três da manhã? Tem de ser pelo menos três da manhã e nenhum minuto mais cedo. Seus sapatos fazem um eco específico. A mesma rua vazia durante a tarde tem um som diferente, mas às três da manhã, o som é outro. Único. Eu me acostumei com o barulho dos meus sapatos às três da manhã, Kiki. Eu saio todos os dias durante a madrugada por causa do turno. Eu sou uma criatura que se acostumou com a lua no céu. E é esse som que eu encontro em você, quando você fica no balcão, virando página depois de página. Sons que só existem, se você pensar bem, por causa do silêncio quase palpável ao redor, barulhos feitos pelo silêncio”, um brilho surgiu em seu rosto, como se tivesse aprovado a própria frase. Paulo se levantou repentinamente, desculpando-se com a garota e começou a andar em direção ao banheiro. Os homens agora gritavam ofensas e exigiam o direito de atendimento, mas Kiki permaneceu estática, tentando entender o que Paulo encontrava nela.
Estava ainda perdida em pensamentos quando escutou o barulho do primeiro soco. Um nariz quebrando às três da manhã também tem um som distinto?, ela se perguntou antes de virar a cabeça. Kiki viu o homem com quem conversava, então carregando um semblante sereno, segurando um dos homens pela garganta. Sangue escorria do nariz quebrado até as mãos de Paulo. Depois de jogá-lo contra a parede, Paulo se virou para os outros dois e desferiu um soco no estômago do homem que provavelmente estava traindo a esposa e agarrou o terceiro pelos ombros, batendo em seu crânio repetidas vezes com a própria cabeça. Em poucos segundos, os três clientes estavam deitados no chão, inconscientes ou gemendo convulsivamente. “Digam mais um palavrão para ela e eu enfio minha mão na bunda vocês até meus dedos saírem pelas suas bocas nojentas”, disse. Não era uma ameaça vazia. Era quase engraçado um homem grande como Paulo, espancando severamente três outras pessoas e soltando ameaças com a voz fina.
Paulo andou até Kiki e afundou uma das mãos no bolso, deixando algumas notas como de costume. “Desculpe pela bagunça, querida. Até amanhã.” Ele tinha sangue nos sapatos e por toda a camisa. Seus desdos estavam abertos, cortes feitos nos dentes de um dos homens sangrando no chão do Clube.
Ela sentiu o corpo inteiro tremendo, em choque diante da demonstração súbita de violência. Paulo parecia um rinoceronte em fúria, capaz de destruir qualquer obstáculo em seu caminho. Ele sumiu pela porta no exato momento em que a jukebox terminara mais um blues e ela pôde ouvir o som, distinto de todos os outros sons que ela escutaria pelo resto da vida: de seus sapatos contra o asfalto no silêncio da madrugada. 

Um comentário:

  1. Eu estava com saudades das "noitadas" no Clube. Muito bom. Ana Eliza.

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