sexta-feira, 28 de junho de 2013

cena banal (3)

“O que é isso?” Ele estava incrédulo com o que via. O homem de olhos azuis escuros, num tom quase alienígena, quase deixou o copo cheio d'água cair, mas agarrou-o em pleno no ar em um golpe instintivo.
“Você está falando disso?” Ele apontou para as quatro torradas no prato.
Os olhos azuis arregalaram-se ainda mais diante do novo espanto. “Pelo Santo Prato de Petri! Quatro torradas!” Vasculhou a larga cozinha, preocupado com os ouvidos e olhos que poderiam estar de olhos neles. Eram tanto bisbilhoteiros que não podia deixar de se preocupar; sabia como ninguém o quanto gostavam de escutar conversas particulares e delatar os outros para ganhar pequenos agrados, afinal. Sabia muito bem.
“Eu fique com vontade de comer mais torradas, só isso. Elas são boas. Quer uma?”
O homem se afastou, como se o prato estendido fosse uma arma. Com a costa totalmente grudada na parede, pressionada a ponto de machucar as facetas vertebrais proeminentes, esticou as mãos em uma cruz e negou a comida. “Você está louco, devolva isso logo e vá se trocar! Por favor, faça isso e nunca mais falemos no que acabou de acontecer.”
“Impossível, eu gosto muito dessas torradas.” Estava sentado na cadeira de metal, mas tinha uma das pernas sobre a mesa, quebrando o severo protocolo. Sobre a camiseta branca sem cola, um sol sorridente nascia por trás de duas colinas verdes e cheias de flores, uma explosão de cor e vida desenhada com canetas hidrocor, usadas nos estudos laboratoriais. Olhou para baixo e admirou o próprio desenho. “Gostou do desenho? Acho que poderia ser feliz em um lugar como esse.”
“Você é… é… defeituoso.” Exasperou. Gostava dele em especial, era um número que mantinha a linha e era simpático, mas aquilo já passara do ponto de retorno. Mesmo que pudesse se livrar da contagem de torradas, alegando erro administrativo, não poderia ajudá-lo com o desenho na roupa branca. Direcionou os olhos azuis para o homem confortavelmente sentado, comendo torradas como se fosse um pequeno ato cotidiano, como se tivesse o direito de mastigar aquele pão crocante fora do horário e na quantidade que quisesse.
“Talvez o defeituoso seja você”, respondeu com meia torrada na boca e piscou um dos olhos - do mesmo intenso azul - “ou eles, ou todos os outros 'nós'. Menos eu. Eu amo tanto torradas que não posso ser defeituoso.”
Mastigou a torrada, saboreando a manteiga gorda que arranjou vá saber onde, pelo Santo Prato de Petri.
O Clone Nº485 retorceu a boca e cogitou sobre a afirmação da outra cópia. Decidiu, por fim, que ele tinha razão. As torradas eram, na verdade, deliciosas. E mesmo aquele não sendo o horário para comer, ele desejava abocanhar uma ou duas fatias. Seu estômago de clone roncou sonoramente. Puxou uma cadeira e colocou uma das pernas sobre a mesa, tentando se equilibrar de forma cômica. Os dois clones conversaram e mastigaram torradas, conversando sobre assuntos dos quais tinham exatamente a mesma opinião.   

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