sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Homem que Chegava Cedo Demais

Alfredo Holmes esteve adiantado toda sua vida. Nasceu aos sete meses de gestação, com pouco mais de trinta centímetros e um peso ínfimo, como se estivesse com pressa de conhecer o mundo, para respirar primeiro o ar que muitos inalariam mais tarde. Aos sete meses já andava como se fosse um potro; com oito meses, falava com perfeita dicção. A infância de Alfredo também foi apressada. Nas festas de seus colegas, costumava chegar quando o aniversariante ainda estava no banho e era forçado a ficar sentado no sofá, assistindo os programas toscos que passavam de domingo, respondendo perguntas feitas pela metade por tias acima do peso. Era o primeiro a chegar na escola e todos os dias ficava sentado no escuro, esperando alguém mais chegar e acender as luzes da sala de aula. O pequeno Alfredo permanecia sentado, com os dedos da mão entrelaçados e um rosto impassível. Suas provas estavam sempre no fundo da pilha, os amigos contavam com ele para comprar lanches, pois estava no começo da fila e sempre conseguia assistir os filmes e shows que pretendia. Nunca perdeu a hora. Esteve em todos os vôos e viagens de ônibus ou trem; aos doze anos tinha de fazer a barba: um caso de puberdade precoce. Alfredo, aliás, foi precoce em tudo. Nietzsche e Kafka foram seus presentes de décimo terceiro aniversário e ele os leu com prazer, terminando os grossos volumes antes do que esperava. Entrou na faculdade antes de todos e percebeu a importância da filosofia cedo na vida. Concluiu o curso no terceiro ano, não por ser de uma inteligência sagaz - apesar de chegar à conclusão antes de todos - mas simplesmente por ser… adiantado. Conseguiu a vaga de professor apenas por ter sido o único a chegar no horário da entrevista, apesar da chuva impossível que despencava naquele dia, passando por enchentes e bloqueios sem perceber que o fazia.
Por toda a existência, sentia algo incômodo na cabeça, algo mais profundo do que conseguia mergulhar e enxergar com clareza. Era uma sensação deslocada de qualquer categoria e mesmo devorando Platão, Kierkegaard e Hegel, não podia entender um simples incômodo, para sua irritação.
Todos os homens seguem um de roteiro para suas vidas. Alguns tomam desvios ou têm finais abruptos, mas é quase certo que as fases da vida seguirão com natural ordem e sucessão. Infância, adolescência e a chata fase adulta culminam na velhice e o corpo enfraquece, a mente entra em uma névoa iminente e o sistema desiste do jogo e entrega os pontos. Para ele, os períodos foram todos misturados e empilhados e com isso, a infelicidade também chegou antes. Com vinte e nove anos, Alfredo enfrentava o terceiro divórcio - todos os três iniciados por ele, que chegava ao limite antes da parceira - e contava com quatro filhos. Sabia que era difícil conviver com ele. Tinha o péssimo costume de chegar ao fim das conversas com demasiada pressa, não podia comentar sobre filmes ou livros pois todos os outros ainda não haviam visto ou lido e estragava os finais com certa regularidade. Chegava a ser inconveniente em churrascos e festas por chegar muito cedo, como na infância - uma vez tomou o café da manhã na casa de seu primo, cuja festa começava às quatro da tarde. Os convites chegavam para ele com o horário atraso em quatro horas. Alfredo também era um péssimo amante, por motivos que não é preciso expor. Depois dos trinta, os ossos começaram a enfraquecer com rapidez e ele operou os olhos com trinta e cinco, deixando para trás duas cataratas. Esquecia de reuniões, deixava os livros que estava lendo em lugares dos quais não tinha memória, sentia dores nas costas e percebia sua teimosia aumentando diariamente.
No dia trinta de dezembro de 2013 ele se deitou, a velha sensação incógnita causando dor de cabeça, carrancudo e triste: um homem de trinta e nove anos, com cabelos brancos e ralos, rugas por todo o rosto e dentadura guardada em Listerine na cabeceira da cama. Amaldiçoou a vida adiantada que tinha, xingou os cabelos e unhas que cresciam antes do que deviam, a libido que se esvaiu cedo demais, o intestino que ficara precocemente sensível e os pulmões que há anos perderam parte da capacidade. Dormiu antes de conseguir enumerar os motivos que deixavam sua vida triste.
Acordou antes do sol nascer e do despertador disparar o irritante som que parecia anunciar a chegada de todos os infernos. Algo estava errado e ele procurou entender exatamente o que havia acontecido, mas falhou antes mesmo de começar. Levantou-se, lavou o rosto e escovou as gengivas, encaixando as dentaduras pela última vez antes de descer as escadas e preparar duas xícaras de café, que tomou acompanhados por panquecas um pouco cruas e manteiga derretida. Subiu as escadas novamente e trocou as roupas: hora de esticar as canelas e esperar o ano morrer. Quem sabe sua vez chegaria antes e 2014 significasse o fim de sua miséria. Não custava sonhar. Quando abriu a porta, sentiu o coração ameaçar - não pela primeira vez - parar de bater. O mundo estava branco. Olhou para as mãos e enxergou com perfeita nitidez a pele macia e livre de rugas ou as manchas escuras que começaram a aparecer no inverno passado. “Mas que porra…”, terminou a pergunta antes de chegar ao ponto de interrogação. Jovens, as mãos eram suas, mas estavam na data errada, substituindo os membros velhos de pele flácida e solta dos músculos. Podia ver a casa até a porta de entrada e depois via apenas branco. Um nevoeiro? Não, eu ainda poderia enxergar pela névoa. Colocou os dedos rejuvenescidos na boca e puxou as dentaduras, descobrindo dentes no lugar das placas removíveis. Puxou um fio de cabelo e admirou o castanho escuro que os fios possuíam até o vigésimo quarto aniversário. Há algo de errado além do meu corpo jovem e do mundo ter desaparecido… mas o quê?
Apoiou as mãos na parede da casa e tentou pisar na superfície branca, sem ter certeza de que poderia ficar sobre ela ou se despencaria eternamente em um infinito leitoso. Seus pés tocaram onde deveria haver chão e ele conseguiu ficar sobre a superfície branca. “Olá?”, ele gritou, quebrando o terrível silêncio que caía sobre o mundo. Não, ele percebeu, era muito mais do que silêncio. Alfredo experimente a completa falta de sons. Seu grito saíra abafado, todo estranho e fanho, como se não existisse lugar para barulhos aqui. Tentou juntar todo o conhecimento dos estudos filosóficos com o cérebro novamente jovem e se impressionou com o raciocínio afiado, mas falhou em encontrar explicações.
Alfredo fez a única coisa que podia e começou a caminhar, deixando a casa para trás até ela se tornar num ponto escuro no horizonte. Conseguiria voltar? Realmente importa? Horas se passaram e ele caminhava, mantendo a direção o melhor que podia, tirando prazer do exercício prolongado e das pernas novamente fortes. Sem dores nos joelhos, sem músculos fortes. O que estava acontecendo?
Foi quando encontrou os outros.
Primeiro, viu a movimentação longe, se destacando do oceano branco que tinha diante de si. Correu a longa distância, gritando e gesticulando para algumas pessoas que cortavam madeira. Um deles parou e sorriu de volta, soltando o serrote e pegando uma prancheta. “Alfredo Holmes”, perguntou antes dele parar de correr.
“Como… como você sabe meu nome?”
“Estávamos esperando por você. Na verdade, já está um pouco atrasado.” O homem estudou o relógio que tinha no pulso. “Vista isso e vamos ao trabalho, meu amigo, não temos muito tempo.”
Alfredo pegou o macacão que o homem esticou para ele e passou os dedos sobre o nome bordado na altura do coração. A. Holmes. Eles realmente esperavam por ele. Olhou ao redor e viu mais trabalhadores do que conseguia contar. Homens e mulheres pregavam pregos em tábuas, plantavam árvores, posicionavam concreto, pedras e asfaltavam um rua pré marcada com o que parecia ser giz cinza. Três grupos se penduravam em enormes escadas e pintavam o céu com um azul claro. Alfredo olhou para uma loira que pintava uma nuvem um pouco mais carregada e ela olhou de volta, acenando a mão e sorrindo. Ele a cumprimentou de volta, hesitante.
“Anda com isso”, disse o homem de antes. “Você está nos atrasando, Holmes.”
“Onde… onde estou?” Passou a língua nos lábios secos.
“Onde é uma terminologia erra, homem. Quando, eis o que você quer saber. Bem vindo ao primeiro de janeiro de 2014.”
“Impossível. Hoje é dia 31.”
“Para eles sim; para nós, dia primeiro. Dois mil e catorze, Era Comum. Para os ocidentais, pelo menos. Com os chineses, a história é outra. Mas o amanhã é o mesmo, não importa se você é rico, pobre, católico, jedi, judeu, homem, mulher ou tudo que há no meio. E mais, o amanhã é nosso dever. Agora venha comigo, vou te mostrar o que você deve fazer. Você agora é um Construtor, Holmes, sua tarefa é nos ajudar a construir o futuro.” O homem entregou uma pá para Alfredo e apontou para um canteiro. “Hoje você vai plantar rosas.”
Tentava tirar algum sentido daquilo, mas no íntimo já entendia onde… quando estava e sentia a felicidade explodir em seu peito. “Eu-eu vou construir o futuro?”
“Sim, parte dele. Tudo que fizermos aqui será usado amanhã e descartado imediatamente depois do uso. Você vai pavimentar o amanhã, Holmes. Quase literalmente, porque nosso pavimentador é o Jorge”, ele apontou para um rapaz com não mais de dezenove anos, sentado num enorme compactador de solo, trabalhando nas ruas da cidade. “Plante as rosas do dia primeiro, Holmes. Depois você pode encher os oceanos do dia”, ele chegou o cronograma, “quatro de fevereiro. E chegue mais cedo da próxima vez.” O homem se virou e caminhou para longe, gritando com um grupo de pessoas que tentava acertar a direção do vento e outro, que ajustava o sol com um longo gancho de metal.
Alfredo Holmes percebeu naquele momento, um momento no futuro, para a maioria das pessoas, que a sensação estranha havia desaparecido. Ele não mais se sentia deslocado.
Começou a assobiar uma música e enfiou a pá no solo recém criado, preparado para plantar todas as rosas do mundo.

Pela primeira vez, Alfredo se sentia na hora certa.

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