sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Cliomancia

O parque estava cheio de casais andando com as mãos dadas, trocando carinhos e retirando sacos plásticos dos bolsos para recolher fezes de seus cachorros. Eu estava sozinho. Sozinho e miserável. Lembro de ter encontrado meu próprio fundo do poço emocional. E não desci todo confortável, senhoras e senhores, ah não, eu caí de cara. De repente, vi meu futuro, claro como aquelas piscinas naturais que vemos nos documentários do National Geographic: ataques de pânico, solidão, terapias caríssimas, solidão, tentativas encenadas de suicídio, solidão, pílulas e um tanto absurdo de tempo sozinho. E foi tudo por causa da felicidade ao meu redor. Como se eu fosse um ímã para boas vibrações, o parque era provavelmente o lugar mais pacífico e amoroso em todo o mundo, porra. Tudo que eu queria era ver pessoas miseráveis, dor, medo, impotência… Queria estar perto de magnatas falidos, alcoólatras recorrentes e viciados sem esperanças, queria sorver os vapores inumanos que exalavam de seus poros, minha própria comparação de egos maléfica e egoísta. Só assim eu me sentiria bem, o Edgar Allan Poe de todos os ids.
Eis que me encontrava no maldito parque, entretanto. Aqueles imbecis sorriam enquanto catavam merda de seus cachorros, meu Deus! Faziam piqueniques numa grama atolada em carrapatos e formigas. Retiravam insetos de pedaços de bolo, sentiam o cheiro acre de corredores suados e ficavam de olho em suas crianças. Ainda assim, eu via sorrisos, mãos dadas e afeto. Que cena horrível. Entenda, leitor, no lugar em que eu estava e, com isso, quero dizer o lugar dentro de minha cabeça, uma jaula de ferro maciço, trancada e acorrentada em grossos elos.
Levantei do banco e comecei a andar, carrancudo e com as mãos nos bolsos da calca. Duas crianças passaram correndo por mim e por pouco, mais pela surpresa - meu pé vacilou por um centésimo de segundo e chegou atrasado - do que pela consciência, quase as derrubei. Seria delicioso escutar o choro estridente e com sorte, um dente ou outro se quebrando no concreto. Ah, por favor, retire suas interjeições, leitor. Não há lugar para falsa humanidade por aqui. Olhei para meus pés, pensei em como eles quase machucaram duas crianças e comecei a abraçar a fome maldosa que crescia em meu âmago.
Foi quando a vi. O corpo parecia uma prancha e ela mais parecia um esqueleto vestindo peles do que um ser vivo, propriamente dito. Usava óculos redondos e gigantescos, do tipo que a faria parecer uma mosca, caso fossem escuros. Os cabelos encaracolados cresciam vertiginosamente ao infinito e, posso estar exagerando, mas pareciam impermeáveis, como se a água fosse defletida em cada tentativa de banho. Ela sorriu para mim, com dentes surpreendentemente brancos e perfeitamente alinhados. Foi um sorriso belo, sincero, uma demonstração de atenção para um completo estranho que tocou até mesmo meu coração, que navegava um mar nada amigável. Estava sentada em um dos bancos do parque e me pegou desprevenido quando bateu a palma ao seu lado, convidando-me para me aproximar.
Ainda não sei explicar porque obedeci, mas quando percebi, já estava ao seu lado. Sua pele, clara como aquele dia bonito, parecia sedosa e ao mesmo tempo quebradiça, velha, como se a moça existisse por mais tempo do que poderíamos contar. O mais engraçado? Ela não parecia ter mais do que trinta anos.
“Olá, meu bom rapaz”, ela disse.
“O-Olá. O que… o que você quer?”
“Ora, você tomou a iniciativa, eu estava sentada aqui sozinha, acompanhada apenas pelos meus pensamentos. Por que essa cara feia? Um rapaz tão bonito não deveria ter o sorriso para baixo, veja. Esse seu sorriso está ao contrário!” Suas palavras eram quase como música. Havia lirismo no modo como ela dizia e, se eu prestasse atenção e escutasse além de sua bela voz, às vezes parecia que eu estava escutando um coro completo. Soprano, baixos e tudo aquilo que existia entre eles. Sem esperar por minha resposta, a mulher abriu a bolsa que descansava em seu colo e pegou um baralho de cartas amareladas. Tarôt.
Mostrei as duas mãos para ela, tentando me desculpar enquanto erguia meu corpo. Doida de pedra, eu pensei. “Olha, não é nada pessoal, é só que eu não acredito nessa merda toda.”
Esta merda toda? Escute bem, Jó, essas são cartas normais, são usadas para jogar.”
Como, pelos céus, ela sabia meu nome? “Não, não. Chega, é o suficiente. Eu não sei quem a senhora é ou como sabe a porra do meu nome, mas Tarôt é… fica além… ah, foda-se.”
Movimentei as pernas e comecei a me distanciar enquanto ela embaralhava o conjunto de cartas, revelando a primeira. “A Torre significa que todas as mudanças são naturais, bom rapaz. O que aconteceu não foi culpa sua, mas algo que estava em seu próprio curso. Por isso você se sente um saco vazio, mas na verdade, não havia nada que pudesse fazer.”
Parei. Congelei, para ser mais preciso. Diabos de mulher! “Como você sabe tudo isso?”, gritei contra ela. As pessoas ao redor olharam, alarmadas. Uma criança deu um pequeno salto e derrubou o sorvete que logo estaria em toda sua face. “Ei, cara!”, disse o pai da criança. Olhei para eles e disparei: “Vá cagar. Ela está uma porca, de qualquer forma. Eu fiz um favor, se você quer saber.” A pequena começou a chorar e correu para longe, seguida por um pai indignado.
“Isso foi… desnecessário, Jó, acalme sua voz”, a mulher magra disse. Agora, ela estava mais parecida com uma bruxa, um contraste interessante com a visão anterior, uma louca assediando moralmente as pessoas que iam para a praça. (Enquanto escrevo o que aconteceu, percebo que me vi nela. Eu estava assediando os outros. Que merda). “Você precisa cortar os palavrões, eles ficam feios em sua boca.” (Puta merda, ela tem a porra da razão.) Quando percebi, estava novamente ao seu lado. “Sente-se. O Tarôt surgiu no século dezesseis, no norte da Itália e não tinha nada, absolutamente nada, de magia ou qualquer mancia. Ele era, veja bem, usado como um baralho normal. Paus, ouro, copas e espada. Nada de diferente: baralhos diferentes para jogos diferentes, nada de diferente, não senhor. Apenas em alguns países o Tarôt é usado por charlatãs. No meu caso”, ela disse com um acento forte, olhando-me sobre seus óculos, “eu posso ver não o seu futuro, pois este pertence às três irmãs, mas o seu passado. Engraçado, não? Eu nasci com uma habilidade interessante, que se revelou a mais desinteressante de todas. Sem fortuna para ti, minha mãe costumava a dizer. Ah, não senhor! Sem fortuna para ti ou para me. Ofereço memórias, Jó. Suas memórias, pobre rapaz. Não faça essa cara, ofereço ajuda, não medo. Veja, pense em mim e puxe uma carta.” Ela abriu um leque com o baralho velho e eu obedeci. Era uma figura feminina, parecida com as damas dos baralhos que podemos comprar por aí, por menos que um maço de cigarros. “A Papisa. Representa sabedoria, visão. Entendeu? São representações, estamos combinados. Vou ler o seu passado, Jó. Pelos próximos minutos, você vai sentar aqui, puxar cartas e me escutar, entendido? E esse é o máximo de futuro que consigo prever.”
Ela devolveu a carta e abriu um novo leque. Com dedos trêmulos, puxei uma nova carta. Vi o desenho de um bufão, um louco da corte segurando o que parecia ser uma trouxa. Na outra mão, apoiava parte do peso sobre um cajado.
“O Louco. Conveniente”, disse com um sorriso aberto no rosto. “Sua história é sobre buscas. Você sempre esteve vagando por aí, correto? À procura de algo para completar um vazio que tem no peito, buscando por um peso para seu peito leve. Enquanto muitos imploram por alívio, você quer o peso para carregar. O Louco, pois bem. Eis sua definição. Toda busca, no entanto, tem significado. Ela resulta de sua solidão e das dores de seu passado, das cicatrizes que ainda não se fecharam por completo. Sua solidão, Jó, é resultado de sua errância. Você não é um ser solitária, mas adquiriu tal qualidade com suas desavenças. Puxe outra.”
Assim o fiz. No entanto, meus dedos escorregaram e duas cartas caíram sobre o banco de madeira. Uma delas mostrava um lobo mal desenhado sobreposto numa lua redonda e inchada de forma impossível; a outra representava o mesmo lobo domado por uma mulher. Talvez fosse um homem, eu não tinha muita certeza.
“A Lua e a Força. Agora começo a entender seus caminhos. Você experimentou um mundo de reflexos. Imagens, reflexões, pensamento… são as características desta carta”, levantou o lobo e a lua. “Mas, a Força… ela representa o que impulsiona, a sede que o faz levantar todas as manhãs. Julgando por seu semblante, eu diria que fazia se levantar. Essa é a beleza do passado, meu caro. Ele não é uma ciência exata e exige muita, muita interpretação. Sou como um Sherlock Holmes, vê? Procuro por indícios... já leu O Nome da Rosa?”
“Acho que vi metade do filme”, respondi.
Ela sorriu novamente, complacente desta vez. “Logo no início, o personagem principal… nosso Holmes da Idade Média, descobre a raça e o nome de um cavalo apenas por indícios físicos e geográficos. Por Deus, ele descobre que a confusão era sobre um cavalo, em primeiro lugar, sem qualquer dica. Fantástico, se você me perguntar. E tudo por causa de um sorriso. Mas eu divago. O que me resta com essas duas cartas é justamente interpretar os indícios. Eu vejo uma força muito poderosa em seu passado, algo que fazia seu mundo girar como o sol para o mundo de Galileu. Era algo centralizador, talvez um catalizador de todas as suas ações.” Ela se calou e me observou. “Essa força… ela normalmente se revela como um grande objetivo. Você me cita algo e eu posso mostrar a Força. Um Jedi, se quiser. Escrever um livro, ser presidente, deitar com cem mulheres. Dinheiro, fama, poder ou”, apontou para a marca branca que rodeava meu dedo anular, “amor. Você está divorciado. Pelo menos separado. É o seu eclipse, estou certa?”
Concordei com a cabeça. Eu sentia falta de Laura. Laura, meu mundo, minha paixão. No final, minha queda.
“Agora, a Lua. Era tudo uma imagem daquilo que você desejava. Seus olhos viam nela o que você queria, não o que era. Talvez fosse interesse ou necessidade, mas nunca amor de verdade. Agora você está aqui, um homem com o coração partido, um Louco que procura por sofrimento, por solidão. Vamos ver o que aconteceu. Puxe outra carta.”
Não queria continuar com a loucura daquela mulher. Ela estava cutucando com unhas afiadas as minhas feridas que ainda sangravam, para começar. O pior é que ela estava se divertindo com aquilo. Eu podia me levantar e ir embora, podia simplesmente abrir a minha boca como se estivesse em um bar e derramar a minha história triste para ela, explicar como essa sombra crescia em meu coração e como, centímetro por centímetro, eu deixava a noite tomar conta de quem era, deixava a bruma envolver minha mente. Estava entrando em piloto automático e revelando uma pessoa estranha que vivia em mim. Uma pessoa cruel. Medo. Acho que foi essa a cola que me deixou preso naquele banco. E, caro leito, eu estava aterrorizado.
“Ah”, seu rosto se iluminou. “El Diablo. Entendo. Tentação, destino… o que você quiser chamar. Clichê?”
“Sim”, respondi com uma voz fraca. De repente, minha garganta estava seca. “O maior clichê, na verdade. Ela me começou a dormi-”
A mulher ergueu a mão e me interrompeu. “O passado não é uma ciência exata e sua história é desnecessária e estou aqui para te lembrar do que aconteceu, Jó. Apenas sei o seu nome. As cartas me contaram, ou os pássaros, se preferir. Sua história é sua e sua apenas. O diabo aconteceu, talvez literalmente. Você era feliz, tinha sua vida protegia e vivia o sonho, com uma bela mulher e toda a felicidade que um homem poderia experimentar. Isso foi antes, antes de se tornar no Louco. Cristal, é como vejo seu passado agora: transparente como cristal. Não os fatos, os fatos pouco importam para mim, Jó. Eu vejo as cristas, as ondas, o impacto dos fatos. Eu vejo seu cavalo, sua cor e nome, por assim dizer.” Ela se levantou num ímpeto que me assustou. Se estivesse segurando um sorvete, o teria derrubado. Karma, talvez; coincidência, provavelmente. “Estou atrasada. Mas ofereço uma última carta. Quando você olha tempo o suficiente para o passado, Jó, o futuro se conquista facilmente, como uma meretriz bêbada. Talvez a próxima carta revele seu futuro. Talvez eu seja uma louca que você conheceu na praça. Me chame de louca, me chame de Clio, me chame de bruxa. Mas vá em frente, pegue uma última vez.”
Com dedos suados, puxei duas cartas. Ela não as revelou. Numa explosão, revi minha vida. O tempo parou e todas minhas decisões realizaram uma parada diante dos meus olhos. Quem eu era, quem fui e o que aconteceu. Laura dormindo com algum desconhecido sem rosto, figura que eternamente faria parte de meus pesadelos, foi algo que quebrou o espelho e me fez olhar para sua carne, a verdadeira Laura, pela primeira vez. Vi novamente aquela figura horrível, mesquinha e manipuladora, a pele tentadora banhada pela luz da lua e as cordas que me faziam dançar penduradas de seus dedos, sem nada prender na outra ponta. Eu estava livre. Livre para ser um louco sem rumo, sem pertences ou destino. Duas cartas com as costas viradas para mim. Eu era o Louco. Erro, procuro. Sofro. Sou, realmente, o Louco? Era esse o meu futuro?
Escolha, ela dizia com os olhos. Tudo depende de suas escolhas.
Escolhi.
Ela recolheu a outra carta e a enfiou no meio do baralho. “Olhe para o futuro e aprenda o passado”, ela disse antes de sumir entre os casais felizes que andavam de mãos dadas. Eles não eram mais pessoas malditas. Eram simplesmente casais de mãos dadas. É tudo uma questão de interpretação… de como escolher ver o mundo e agir conforme. Escolhas. O futuro - qual futuro - dependia de minhas escolhas.
Virei a carta.

O Mundo.  

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