sexta-feira, 22 de março de 2013

As Brumas do Farol 7 - Dentro da Bruma (II)


Seus olhos podiam ver pouco, preso do jeito que estava, dentro do nevoeiro. Havia algo de sobrenatural na névoa, como se ela estivesse viva. A bruma que o cercava era grossa, quase palpável e Robert sentia que de alguma forma, ela o espreitava, esperando por alguma brecha em sua posição de defesa. O samurai andava com a katana em punhos, realizando pequenos passos diagonais pela ponte, retesando os músculos prontos para uma manobra de defesa e contra-ataque. Tal base exigia um enorme gasto constante de energia, mas ele não conseguiria relaxar enquanto estivesse dentro da Bruma. Perguntou-se onde estavam todos os outros - principalmente seu irmão, o Corvo - e girou o corpo para olhar para trás, apontando a espada para aquela direção. Nada. Nada além da cortina cinza que caía sobre seus olhos. Olhava, imaginou, pelos olhos de um velho cuja visão se deteriorava com a idade avançada. Cortou com raiva o ar, abrindo por um milésimo de segundo uma brecha na névoa, nada além de uma minúscula vitória. A Bruma reagiu e Robert teve a impressão de que enxergava ainda menos. Eu posso sentí-la pulsar, maldição. Essa… coisa, está viva. Decidiu que devia agir com máxima cautela e firmou a empunhadura de sua arma, formando uma tensão que podia ser sentida por toda a ponte.
Quando girou o corpo para a direção que seguia originalmente, viu uma sombra distinguindo-se e, sua área de alcance, demasiadamente perto para ele nunca ter sentido sua aproximação. Pelo primeiro golpe de vista, julgou ser um homem sentado com as pernas cruzadas e com duas espadas amarradas na cintura. Ele era magro e tinha o cabelo em um pequeno coque no topo da cabeça. Seus dedos firmaram um aperto na empunhadura de sua própria katana e Robert ergueu os braços, pronto para realizar um corte vertical.
“Sente-se, garoto.” Robert sentiu o tom imperativo do homem - aquela voz não abria espaço para hesitação ou fúria, existindo nela apenas a mais plena calma daquele que melhor analisava o momento que se passava. Sem indecisões, sem pânico. “Venha ver isso, é interessante, eu lhe asseguro.”
Robert caminhou dois passos curtos, mãos tão firmes que não denunciavam o nervosismo que sentia. Nervosismo e medo. Medo crescente à cada respiração minha. “Onde eles estão? Meus companheiros, diga onde eles estão ou fique preparado para encontrar seu criador!” O samurai gritou com todo seu fôlego.
“Você diz o corvo, o portal e a criança? Não sei onde eles estão, samurai. Estou aqui na Bruma por você e outros estão cuidado deles. Agora, venha aqui e veja isso.” Ele estendeu uma das mãos para Robert, mostrando a sombra de uma flor.
Ele sabe quem somos. Mas como? Quem é ele? Sentou-se perto do homem, enxergando apenas seu contorno e alguns detalhes do kimono que o estranho usava. A sombra colocou a flor na boca e realizou um rápido golpe com a mão direita, esticando a mão aberta próxima ao rosto de Robert. Como mágica, a névoa foi expulsa de onde estava - concentrado-se no centro da palma do homem alguns momentos antes de ser expelida para longe deles. Para o garoto, era como se estivessem dentro de um cúpula onde a Bruma não podia tocá-los e pela primeira vez ele o viu. O homem era feio, o nariz largo e torto, os olhos esbugalhados pareciam que iam cair do rosto duro a qualquer instante e uma barba rala poluía o maxilar; pela sujeira colada na pele, Robert acreditava que ele não tomava banho há meses. Percebeu, no entanto, uma aura ao redor do samurai sentado a sua frente, os joelhos quase tocando os seus. O kimono estava impecavelmente branco e poucas rugas marcavam o tecido; as espadas estavam bem cuidadas e, ele sabia por instinto, afiadas em um grau impossível. Bem, talvez essa lâmina possa cortar a Bruma de verdade. “Samurai…,” saboreou a palavra, regozijando cada sílaba, “foi essa a palavra que você me disse. É isso que sou? Um samurai?”
O homem sorriu com dentes brancos e perfeitamente alinhados, exógenos àquele rosto feio. “O caminho da dura justiça e da lealdade cega está presente em você, sim. Samurai.”
“Mas… como? Eu nunca tive permissão de encostar em uma faca afiada…”
“Esqueça o que você era, Samurai. O que importa é o agora. E agora você está na Bruma.”
“Qual… qual o seu nome?”
“Ah,” ele exasperou, “nomes não foram nomeados para serem entregues assim, jovem samurai. Não onde estamos, não com o tempo que nos foi dado.” O sorriso que ele ainda exibia nos lábio inchados morreu e um brilho sombrio tomou conta de seus olhos. “Agora escute com atenção, pois o que tenho para te mostrar será a diferença entre o sucesso e a derrota. Muito está em jogo, Samurai, coisas piores do que a morte podem acontecer caso vocês não consigam recuperar o Fogo. Escute com atenção, mas primeiro veja essa obra de arte. Olhe com atenção.” Ele entregou uma orquídea para Robert. “Olhe-a como um samurai.”
O garoto encarou o homem por mais alguns segundos, confuso com aquele tipo de pedido, e baixou os olhos para a orquídea. Não era uma planta perigosa - diferente das flores que haviam encontrado no Bosque - mas uma planta comum, branca. Estudou a flor durante quase cinco minutos, tentando decidir o porquê classificá-la como obra de arte. Olhe como um samurai. Seus olhos então se abriram quando a surpresa o atingiu em cheio. “É uma planta bonita,” disse com convicção, “mas o corte oculta qualquer beleza.” O homem sorriu, satisfeito com a resposta do jovem. Robert estudou de perto, assombrado, o corte limpo, perfeito, feito no caule da flor. A ele, parecia possível simplesmente encostar as duas partes da planta para que ela voltasse a ser um corpo unido, tamanha perfeição do corte que fora realizado. “Impressionante”, disse mais para si do que para o outro samurai.
“Nunca havia segurado uma lâmina afiada, você me disse. Por isso estou aqui, no meio desse monstro, para mostrar o que e um corte. O verdadeiro corte não está na katana empunhada, mas na mente daquele que a segura, Samurai. Cortar com a lâmina, é golpear como um cego contra o inimigo. Qualquer um pode golpear com raiva e cortar a carne com uma lâmina bem temperada, Robert, mas apenas os samurais golpeiam com a mente. O que importa é o momento e nada mais. Não existe futuro, não existe passado. Há apenas o agora e você viverá e morrerá por ele… pelo instante. Como em uma pintura, cada golpe de sua mão deverá ser permanente, certeiro e livre de indecisões. Sua katana deverá cortar onde você quer e quando quiser, jovem. O melhor espadachim cairá diante do mais lento dos homens se falhar em dado instante. Viva para o agora e para ele apenas e viverá até o final de sua busca, Samurai. Pinte seu quadro livre de erros, uma pincelada depois da outra. Você entendeu?” Sem desgrudar os olhos do homem, Robert afirmou com a cabeça. “Ótimo. Lembre-se: cada duelo que se inicia é um quadro em branco. Cabe ao seu traçado completá-lo sem falhas, pois apenas assim ele poderá ser terminado, sem erros. Continue seu caminho, jovem. Volte para os seus e viva pelo momento. Muito depende de vocês.”
Levantando-se rapidamente, ele cruzou o olhar mais uma vez com o samurai sentado e sentiu a bondade que havia em sua alma. Os outros estão assegurados por pessoas como ele. O coração de Robert aquietou e ele caminhou, espada embainhada. Assim ela permaneceria assim até o momento em que deveria ser usada. Não antes e nunca depois, decidiu.
O samurai desapareceu na Bruma.

Jimmy flutuou para frente, consciente da ausência dos três amigos. Seus pés estavam em chamas, enquanto o sol poente pintava o peito e cabeça do garoto. O contorno que formava seu perfil seguiu adiante, em constante mutação interior. Conseguia ver melhor do que seus amigos, presos aos olhos físicos durante o forte nevoeiro. Olhos físicos têm a mania besta de se deixarem confundir com o ambiente, ele pensou em certo momento. O que cegava seu caminho era pior do que as adversidades dos outros garotos, no entanto. A névoa de Jimmy era interna. Ele não conseguia manter a mente coesa e qualquer pensamento, por mais simples que fosse, exigia hercúlea concentração e esforços. Tentava decidir o que fazer, mas a névoa mental era dura como o ferro e refletir era impossível.
Pensou em globos oculares, depois em dragões, corvos, borboletas e formigas. Tubarões tomaram sua mente e deram espaço para os diferentes modelos de sistema solar de Aristóteles, Copérnico e Kepler. A rápida sucessão de pensamentos fragmentados e aleatórios deram continuidade enquanto a confusão se instalava, confortável e sem pressa, em sua cabeça privada de rosto. Sem ter a capacidade de raciocínio, o garoto-sonho vagou pela ponte sem destino certo.
Uma voz, originada onde seria o umbigo de Jimmy, penetrou nas brumas mentais e alcançou o garoto como um soco no nariz. “Jimmy! Jimmy! Consegue me escutar, Jimmy?”
“Eu… eu não sei. Não consigo decidir se escuto ou não. Acho… acho que sim, estou pensando nisso, afinal. Ou essa é a minha voz?”
“Jimmy!”, cada palavra machucava, “Me escute com atenção Jimmy. Eu me perdi na Bruma e não conseguiria chegar onde deveríamos nos encontrar, por isso estou sonhando. Há mais alguém aqui dentro, Jimmy. Uma presença antiga e perigosa está planejando seu declínio. Derrote-a quando for a hora, ela não estava nos planos, Jimmy.” O nariz de Jimmy - perdido em algum lugar entre os dois lados da entrada do Bosque - sangrava em torrentes. A voz cortava fundo, mas era necessário, ele teria de suportar o custo. O contrário era por demais terrível para ser seriamente cogitado.
“Estou machucado.” Jimmy não sabia como sabia. “Se você continuar, vou morrer.”
“Serei breve. É necessário. Eu deveria encontrá-lo na ponte, você seria como uma chama… um farol, no meio da Bruma, mas sua mente… está bloqueada pela outra prese-”
“Um Dragão,” interrompeu, “eu o prendi depois de roubar a ponte. Ele ganhou meu nome. A trapaça foi justificada,” mentiu para si mesmo.
“Você tem de superar o Dragão, Jimmy. Seu corpo, garoto, é um portal para as Terras Distantes, um local onde todos os sonhos existem ao mesmo tempo. Como já descobriu, muitos têm a habilidade de cruzar objetos e pessoas entre os sonhos. É assim que vocês vão conseguir o Guia para atravessar as Brumas e chegar no Farol. Ache o Guia nas Terras Distantes, Jimmy, e assim você poderá levá-lo para o Bosque. Siga Jimmy. Siga em segurança.”
A voz cessou e, com ele, a névoa que interrompia os pensamentos do garoto-sonho morreu. Jimmy podia pensar com ímpar agudeza. Ele era um portal para as Terras Distantes, o que explicava muito do que sentia que podia fazer. Era seu papel encontrar o Guia, mas não sabia quem era ou como trazê-lo. Tentou, em vão, encontrar a voz novamente, mas acreditava que só podia pensar porque o dono daquela voz estava distraindo o Dragão.

Jimmy vagou sempre em frente e lentamente cruzou a ponte. No fim da travessia, viu as Paul, John e Robert ganharem contraste e texturas. Estavam uma vez mais reunidos. Cada um deles, Jimmy percebera, estava diferente, de alguma forma mais sérios e conscientes da própria natureza. Não eram mais garotos perdidos em um bosque surreal. Eles eram um grupo com um objetivo e iriam chegar ao ponto final, ainda que este fosse uma incógnita.
Havia um olhar profundo em Paul, um poço de onde sentia que poderia beber do mais vasto conhecimento; a postura de Robert era perfeita e ele via que o samurai tinha total controle do que acontecia ao seu redor. Mas os pequenos olhos amarelos do Corvo… havia duvida no pássaro. E talvez traição. Jimmy não tinha certeza. Algo estava errado com John, mas sabia que seria inútil perguntar. O que fora dito no encontro dele, era para ele apenas. Não tinha outra escolha a não ser confiar no pequeno pássaro negro. Não podia se deixar distrair com os problemas dos outros.
Afinal, tinha seus próprios desafios.
E não tinha a menor idéia de como enfrentá-los.

Um comentário: