sexta-feira, 8 de março de 2013

As Brumas do Farol 5 - O Corvo e o Dragão


John sobrevôou a área Paul e Robert aguardavam pela ponte. Era uma idéia estranha pensar que o velho tinha, literalmente, uma ponte na bolsa, aparentemente o único meio que eles tinham de atravessar o rio. John poderia atravessar o caminho, mas o que faria depois? Um pássaro sozinho não poderia sobreviver muito tempo num lugar tão longe do comum, poderia? O cérebro de John, por menor que fosse, ainda guardava muito do garoto do mundo real, do outro lado do Bosque de White City e portanto ele sabia que precisava dos outros para sair vivo dali e voltar para casa algum dia. Mas os outros precisavam dele? Qual ajuda ele realmente poderia oferecer contra os perigos que com certeza ainda os aguardavam naquela versão doentia do caminho de tijolos amarelos em que estavam presos? O Corvo teve medo da resposta e sabia que estava mais longe do que nunca do Kansas.
Formou, com as asas negras abertas na envergadura máxima, um espiral descendente e sentiu-se em exuberante, ostentando para os outros as habilidades recém domadas e pousou com precisão e suavidade. Tentou não demonstrar, dobrando a velocidade do rápido movimento de sua cabeça, a decepção que sentiu quando nenhum deles dirigiu palavra. Ainda estavam na mesma posição e ele imaginou se Robert tinha se movido no tempo que passou no ar. Robert estava sentado com as pernas cruzadas e a coluna ereta, de olhos fechados. Havia um corte no rosto do garoto e a katana estava encostada na grande pedra; Paul chutava os restos da maçã, fruta que fora bicada diversas vezes pelo pássaro, e mastigava um dos doces que tinha no saco pardo. Para John, o garoto gordo tinha uma fábrica de doces no bolso. Jimmy continuava perfeitamente imóvel na pedra, com os pés juntos e os ombros retos, parado ali, como um casulo. Ele estava escuro, um contorno escuro durante o dia. O pequeno coração de Corvo deu um salto agitado quando pousou os olhos no garoto-sombra. Era terrível vê-lo daquela forma, como se tivesse saido de um quarto e apagado a luz. Até mais, pessoal, tenham um bom dia, sayonara.
“…quero dizer… o cara tem uma ponte na maldita bolsa, Robert. Uma ponte, infernos!” Paul mastigava e falava alto. John tentou não pensar no tipo de criatura poderia ser atraída pela voz estridente do amigo. Presumiu que seriam criaturas que tentaria almoçá-los. Pensou mais um pouco e o sentimento se transformou em uma certeza.
Robert franziu a testa e abriu os olhos, quebrando mais uma vez a meditação. “Estou mais preocupado com Jimmy. E se ele perder a aposta? Não deveríamos… entrar nele e tentar ajudar de alguma forma?”
Paul olhou para a pedra e estremeceu. Havia algo de maligno, mas ele não conseguia dizer o que era. “Provavelmente não conseguiríamos entrar agora. Acho… acho que eles não estão aqui.”
As vozes dos dois garotos aos poucos foram perdendo volume e para John, existia apenas um rápido movimento na terra. Uma minhoca ou algum inseto se rastejando. Seu estômago, ainda cheio da ultima refeição, reclamou e imperou por mais comida. Ele saltitou com velocidade, sem perceber que percorria a distância entre ele e Jimmy. Quando preparou o golpe que lhe traria algo para comer, uma mão o agarrou por trás e ele crocitou esganado - CRAAAA!
Robert e Paul olharam para a pedra, assustados - Robert estava com os dois pés no chão e segurava a espada, quando Paul terminou de se virar na direção do barulho - e viram Jimmy, mais uma vez colorido com alguma imagem que o estampava - o que parecia ser uma árvore com asas de borboleta -, segurando o pássaro escuro com as duas mãos. “Ajude-me, John”, ele disse com uma voz austral, um som que revirou o estômago dos outros garotos. Com um único movimento dos braços de Jimmy, John, o Corvo, desapareceu dentro do garoto, da forma que faria se atravessasse uma cortina pesada para ascender em um palco.
Craaaa!
O som morreu perto do rio e um silêncio pesado caiu sobre eles. John também estava dentro do que diabos seria Jimmy.

As terras mudavam, moldando-se como queriam. O que era uma floresta em um segundo, poderia se levantar na forma de um gigante e correr pelas planícies ao redor, no outro, deixando uma escuridão onde antes estava, uma notável ausência. Mais alguns segundos e outra coisa surgia para tomar seu lugar, talvez uma tartaruga gigante, talvez um Universo preso dentro de uma um Cubo Rubik. Aleatório. Aleatório. Tudo naquele lugar era aleatório.
John, o pássaro ouviu em sua mente, John! Pegue a ponte, John. Pegue a ponte e voe para longe, saia daqui. Havia urgência na voz. Havia uma urgência aguda.
Olhou ao redor e viu Jimmy - um garoto ridiculamente comum - sentado ao redor do que parecia vidro quebrado. Muito vidro quebrado. O velho estava dançando ao redor do menino sentado, gritando obscenidades em alguma língua desconhecida, estampando um sorriso infantil no rosto. Jimmy parecia frágil, de certa forma derrotado. O velho tinha ganhado a aposta, o Corvo subitamente entendeu. Jimmy logo daria seu verdadeiro nome e estaria à mercê das vontades daquele velho misterioso.
E não teriam como atravessar o rio, piorando a situação. De mal a pior, de mal a pior. Corvos eram mal agouro, ele pensou. Ao menos era o que aprendera em algum lugar, não tinha certeza se fora na escola ou na televisão. Mais provável que tenha sido em algum conto do Poe, pensou. Bem, era um maldito ótimo mal agouro, certo? O campeão das espinhas arrepiadas e das sensações ruins.
Eu vou pegar! Conseguiu gritar. Ei! Estou falando! Estou falando!
Sim, aqui você pode fazer praticamente qualquer coisa. Jimmy, ele percebeu, também falava normalmente. Tinha de abrir a boca e formar as vogais com os lábios e a língua. Terrivelmente normal. Uma pena.
Tudo que eu quiser, hein?, o Corvo pensou. Gostava de ser um corvo e melhor do que um corvo, em sua opinião cheia de penas, poderia ser apenas um corvo maior. Ele esticou as asas e começou a crescer, surpreso de como era fácil aumentar de tamanho. Tudo o que tinha de fazer, afinal, era imaginar.
O corvo atroz alçou vôo, rápido como um relâmpago e se aproximou do velho que ainda dançava, alheio aos gritos de Jimmy e ao vôo furtivo do pássaro. Esticou as duas patas e traçou um rasante no ar colorido das Terras Distantes. As garras se fecharam no que ele segurava com a mão enrugada. Assustado, o velho soltou um protesto seguido por um palavrão e começou a correr atrás do corvo gigantesco. John mal sentia o peso da ponte.
Vá! Fuja o quando antes! Jimmy gritou, sem ter a menor idéia para onde o Corvo poderia voar para escapar das Terrar Distantes. Recuperem o Fogo do Farol, ou o que quer que tenhamos de fazer lá!
Fugir os meus ovos de corvo, ele pensou antes de esticar a outra pata e agarrar o garoto que estava sentado no meio do vidro. Fechou com cuidado as garras gigantescas ao redor do garoto e bateu as asas com força, mandando duas torrentes de ar sobre a grama, que reagiu ficando colorida.
Tome cuidado, disse Jimmy, muito movimento por aqui e estaremos perdidos para sempre.
Seus pirralhos! Malditos garotos ladrões! Pássaro dos infernos! Queimem, queimem com a minha verdadeira forma! O velho esbravejou com um dos punhos ao ar. Quando ele mencionou sua forma real, Corvo e menino viraram os pescoços, temerosos do que veriam.
O velho esticou, em um movimento bizarro, e esticou e esticou. Seu rosto ficou alongado e Jimmy pensou no cachorro que tinha há alguns anos. Certa vez, o pequeno animal tentou atravessar uma cerca de metal e enfiou a cabeça entre duas grades, forçando o copo a passar em um espaço fisicamente pequeno demais para seu corpo. Por um segundo, parecia que os olhos do cão escapariam das órbitas e rolariam pelo chão, duas bolas de gude gelatinoso. O velho fazia o mesmo. Seu rosto tentava romper uma placenta que apenas ele via. A pele cheia de rugas se transformou em escamas grossas e duras, cada uma delas verdadeiros escudos, os olhos cresceram e se alocaram na lateral do rosto alongado; braços e pernas encolheram até quatro patas repletas com garras que mais pareciam facas afiadas. Os bigodes do velho, dois fios simétricos, balançavam ao vento enquanto ele os perseguia, traçando um vôo limpo e reto, encarando o mundo com dois olhos precisos e faiscantes.
Um dragão! John exclamou. Um dragão chinês!
Um dragão voando na nossa direção, é o que importa. Consegue ir mais rápido, John?
O que eu quiser, certo?
Aquilo que imaginar, sim, Jimmy confirmou. Voavam em grande velocidade, passando por nuvens venenosas, labirintos feitos com espinhos de rosas, deserto, mares, florestas, guerras entre anões e minotauros… O Corvo e o Dragão voaram pelos mais diversos sonhos.
Puxe as cordas, Jimmy, puxe as cordas. O Dragão chegava perto deles, rosnando com o fundo da garganta e mostrando os mais de mil dentes pontiagudos.
Jimmy olhou para cima, desviando o olhar preocupado da criatura mitológica apenas por um segundo e viu duas caixas de madeira presas nas asas de seu atual transporte. Acme? Sério, John?
Eu não conseguiu pensar em nada melhor. Sabe como podemos sair daqui? O Dragão é bonito e tudo mais, mas eu gosto de continuar… você sabe, vivo. Ser devorado por um dragão não podia ser agradável, se tivesse de adivinhar.
O garoto puxou a corda que balançava como um pêndulo e as caixas de madeira, revelando dois foguetes que mais pareciam mísseis. Risque um fósforo e vamos despistar essa cobra de bigodes!
Jimmy obedeceu ao Corvo e imaginou um fósforo gigantesco. Na madeira, um botão vermelho chamava a atenção de seu usuário. Ele apertou o botão redondo e uma labareda de chamas surgiu da cabeça do palito de fósforo, queimando algumas penas de John, que soltou alguns palavrões em repreensão. Desculpe, John! Eu tenho uma idéia. Você consegue bater a ponte em alguma coisa, qualquer coisa? Precisamos criar um impacto tremendo, mas você vai ter de segurar a ponte, ou ela ficará perdida também. Se der certo, vamos sair daqui. E se não der… deixou o pensamento morrer em sua cabeça.
Perdida? Bem, tentaria fazer o seu melhor. Jimmy aproximou a chama de um pavio entrelaçado e uma chama percorreu de forma cômica o caminho até os foguetes. Uma sonora explosão jogou os dois amigos para frente, ao mesmo tempo que lançou o Dragão para o chão, descontrolado pela choque com a onda de energia e cego pelo súbito clarão. John e Jimmy giraram algumas vezes no ar e quase caíram, mas o pássaro negro conseguiu controlar o vôo em velocidade sônica no último segundo. A ponte deveria ser batida em algo. Ele viu um castelo ao longe, digno de um rei que controlava o mundo todo e ajustou o percurso para se chocar contra as grossas pedras de suas torres. Esticou a pata, tomando cuidado para proteger o amigo, e chocou a ponte roubada contra a torre mais alta do castelo.
O mundo se desintegrou e mesclou, piscando e entrando em foco, apenas para ser desfocado no instante seguinte. A voz do Dragão chegou, de alguma forma, nos dois no momento antes de quebrarem a barreira da Terras Distantes. Eu vou sair daqui, rapaz, e quando te encontrar novamente, vou dilacerar sua carne e mastigar seu coração, sem nunca te deixar morrer. Eu conheço magias, menino. Vou me certificar de que nunca morrerá! Ladrão! Ladrão! Ladrã-

O pássaro rolou de dentro de Jimmy e bateu no rosto do samurai. Os dois irmão rolaram pela pedra e caíram na terra fofa, sem qualquer dano.
“Estava preocupado, irmão.” A voz de Robert estava seca, mas seus olhos estavam cheios de consternação e ternura. Uma mistura perfeita. “Onde está o velho? Vocês ganharam?”
O corvo tentou se comunicar, mas soltou apenas uma sílaba sem sentido. Não valia a pena. Seria um esforço demasiado grande para explicar o que ocorrera, berrando uma sílaba por vez. O Bosque todo estaria sobre eles quando terminasse. Jimmy, por sua vez, levantou a mão e apontou o contorno de um dedo na direção do rio e todos olharam para onde apontava. Uma ponte, larga e de metal, com torres vermelhas que ser erguiam para além das nuvens, dando lugar para cabos de aço, cortava o rio.
Eles gargalharam finalmente e correram para a ponte, querendo finalmente atravessar aquele rio. Os risos, no entanto, morreram nas gargantas quando eles viram a Bruma avançando sobre o chão de metal.
De um lado, os garotos escolhidos para uma missão importante. Do outro, a Bruma, um ser vivo, que dava casa para os piores pesadelos que existiam.
E ambos queriam atravessar a ponte.

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