quarta-feira, 27 de março de 2013

Poema


A inspiração vem de onde?
Vem da tristeza alegria, do canto da cotovia
Vem do luar do sertão, vem de uma noite fria
vem, olha só quem diria, vem pelo raio e trovão
o beijo dessa paixão.
a inspiração vem de onde?

Transpiração 
de Alzira Espíndola 
e Itamar Assumpção


Obra prima, disse o poeta ao finalizar o poema, minha volta definitiva à inspiração, mesmo que ninguém soubesse de onde vinha. Eram versos sobre uma musa distante que lhe surgiu, como uma linda música clássica, afirmou. Mostrou aos amigos e leitores, leu em voz alta em praça pública, entregou uma cópia a todos e fez uma especialmente para a musa.


O amigo e poeta Abílio Gonçalves, amigo íntimo do escritor recém guarnecido da benção celeste, tomou conhecimento da nova poesia dois dias depois da escrita. Perdendo o episódio da leitura na praça por estar em viagem. Quando retornou a cidade, um bilhete chamava Abílio a casa do poeta, fiz minha obra prima, venha assim que possível.

O dia se fazia tarde mas atendeu a solicitação e foi à casa com a costumeira empolgação. Ao abrir-lhe a porta, o poeta retirou imediatamente a poesia do bolso ao mesmo tempo que convidava-o para a sala de visitas, para a leitura ficar mais apetitosa.

Quando o último verso foi entoado, Abílio possuía um manancial de expressões faciais, menos aquela esperada. Sentia os olhos do poeta arder de expectativa sobre os seus, ansiando uma frase que o levasse ao Olimpo. Pediu-lhe uma segunda leitura, alegando que a grandiosidade do poema em relação a sua percepção diminuta deixou prováveis minúcias perdidas.

Mas não, nada. Aos olhos do amigo, não havia nada naquela poesia que não soasse repetição. Ele poderia citar um ou dois autores que se consagraram com o mesmo estilo poético e maior apuro. A linguagem, a forma, o tema de louvar a musa, nada daquilo soou em seus ouvidos como um espetáculo único, como via seu autor.

Se mentisse e aclamasse-o como gênio, Abílio seria contrário de sua própria fé de não dar esperanças a poemas medíciores. Se prosseguisse com uma opinião verdadeira, ofenderia o amigo com poucas palavras. Intimamente pensou em lhe dizer que se isso era uma obra prima, melhor deixar a poesia para os empregados, mas apenas sorriu.

Em posse do poema, dobrou a folha novamente para coloca-la no bolso e se levantou sem dizer nenhuma palavra. Pensou que talvez no silêncio encontraria um elogio fictício que fosse útil sem trair seus conceitos. Foi o que fez mencionando uma analogia entre a moça e a natureza. O poeta sorriu e lhe abraçou, feliz. Sentia-se consagrado.

Duas horas depois de sair, Abílio entrava em sua residência. Foi ao escritório procurando a pasta com seus próprios textos e os leu de novo. Temia que estivesse tão cego quanto o amigo. Mas com o passar das leituras, caiu em leve ataque de egocentrísmo e, saciado, foi ao quarto dormir.

Na cama, as palavras ainda recentes do poeta permaneciam em sua cabeça. Francamente, pensava, comparar os gestos da musa com as ondas do mar, francamente. E teve um ataque de riso ao lembrar da metáfora de passos com compassos de uma melodia e dos movimentos gestuais que o poeta fazia ao recitá-lo, subindo e descendo das cadeiras a cada entonação.

15 de Novembro de 2005

(editado em) 27 de Março de 2013

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