sexta-feira, 15 de março de 2013

As Brumas do Farol 6 - Dentro da Bruma (I)


Os passos ecoaram pela ponte. Uma pessoa distante julgaria erroneamente que apenas dois pares de pés cruzavam a ponte. A sandália de madeira de Robert batia sonoramente, enquanto o passo arrastado de Paul se espalhava, cansado, sobre o metal que usavam para atravessar o largo rio que corria violentamente abaixo deles. Olhava para trás, o garoto gordo, de tempo em tempo, certificando-se de que a ponte não estava caindo ou que alguma criatura os tivesse seguindo. Sua mente passava desesperadamente por cenários onde eles se viam cercados por monstros terríveis em ambos fins da ponte, exatamente como pequenas moscas presas na teia de aranhas famintas. A única saída seria pular na correnteza forte do rio e esperar sobreviver de alguma forma. Paul sequer conseguia flutuar em piscinas. Robert é uma aberração de samurai, rápido e perigoso; o Corvo já mostrou que pode bicar com ferocidade, enquanto Jimmy… somente os deuses podem dizer o que ele é capaz de fazer, ele pensava enquanto caminhava. Algumas vezes olhava para o contorno onírico, tentando imaginar porque seus passos não produziam sons e, por duas vezes, vira que Jimmy andava alguns centímetros acima da superfície da ponte. Eu sirvo apenas para atrasar o grupo, um garoto normal e fora de forma. Merda. Corou levemente apenas por pensar no xingamento. O que sua mãe diria, vendo-o agora, suado e sujo, o uniforme rasgado, pensando em palavrões e entrando em lugares estranhos? O cérebro de Paul começou a trabalhar febrilmente, tentando absorver todos os aspectos da realidade em que se encontrava.
Olhou para trás mais uma vez e viu a pedra, quase do tamanho da maçã que o velho comia anteriormente à sombra da árvore que se perdia no horizonte. Quando olhou para frente, viu que a Bruma se aproximava rapidamente. “Não seria melhor se parássemos por um tempo? Esperar… esperar aquele sol vermelho aparecer e dissipar essa névoa. Pessoal, é sério, eu não gosto do aspecto dessa… coisa.” Era estranho ver a névoa que avançava sobre eles, ignorando o rio e passando apenas sobre a ponte. Para Paul, a névoa evitava as águas e esperava apenas uma oportunidade para chegar à outra margem. A Bruma avançava pela ponte e em nenhum outro lugar.
“Paul tem razão,” respondeu o samurai, rangendo os dentes para a Bruma. “Ela parece respirar, parece um ser vivo.”
Do alto, John podia vê-los caminhando lentamente, hesitantes. Ele bateu as asas para ganhar velocidade e iniciar uma rápida descida até os três companheiro e escutar o que estavam decidindo. As vozes chegavam fracas onde estava. Iria pousar nos ombros de Paul e escutar cada palavra até conseguir montar um plano em sua cabeça pequena. No fim, são meus planos que funcionam, mentiu para si. Pouco antes de realizar a primeira curva, no entanto, o pássaro foi engolido pela Bruma. Quando voltou os olhos para baixo, viu apenas o manto cinza que caía sobre o mundo e a sombra da ponte. Nenhum sinal dos outros, no entanto. O Corvo pousou sobre o metal e olhou, no ângulo torto dos pássaros, por todas as direções. Para onde teriam ido? Estavam ali um segundo atrás e agora sumiram, desapareceram sem deixar sinais. Ou eu que desapareci?
O pássaro caminhou alguns metros, produzindo rápidos baques na ponte, tentando encontrar qualquer sinal de que eles estavam por perto, mas viu apenas sombras dos limites da ponte e a Bruma. Há algo de maligno nessa névoa estranha. Ele se apressou, lembrando de todos os presságios que tiveram de que a Bruma não era um bom lugar para se estar. Ainda sentia arrepios por ter estado dentro de Jimmy e havia ainda aquela névoa cinzenta limitando sua visão. De repente, um barulho. Ouviu um leve som no metal, como pingos de água contra o ferro frio. Tick-tick-tick-tick, rápido e súbito.
John continuou a andar na direção do som, até que viu uma pequena sombra negra, redonda, surgir no meio da névoa. “Olá?”, crocitou nervoso. Sua voz morreu, abafada pela Bruma.
“Olá!” A sombra respondeu de forma semelhante.
Ele sentiu o pequeno coração de pássaro acelerar ao limite. Precisava tomar cuidado com o estranho, não tinha como saber quem oferecia perigo dentro da Bruma. “Saia do meu caminho”, ele disse. Apenas depois que a última palavra morreu na névoa John percebeu que tinha novamente a capacidade de se comunicar normalmente. E falar não era um bom sinal, pela experiência do pássaro. Preparou as asas para um rápido arranque, mas desistiu quando o estranho falou.
“Eu sou seu caminho, Corvo. Estou esperando por você por incontáveis anos, resiliente do meu próprio modo, resistindo aos desafios da Bruma, suas tentações, seus perigos. Eu, Corvo, sou Yatagarasu e aqui ofereço meu nome como garantia e demonstração de confiança.” Yatagarasu saiu das sombras e se mostrou para John. Era um corvo gordo e de penas reluzentes, de um escuro denso e hipnotizante, um negro que ameaçava sugar a própria luz ao redor. Yatagarasu tinha três patas e uma voz imponente, diferente do que John esperava em um pássaro.
“O…obrigado, eu acho.” John tinha o nome de Yatagarasu, mas não sabia o que fazer com ele e não o considerava como vantagem ou arma. Ele tem três patas! Deus…
“Você tem um papel importante, Corvo. Você deve cumpri-lo ou meu esforço nas últimas Eras terá sido por nada. Esse momento… o tecido universal em que todas as coisas acontecem, alguns gostam de chamar de Tempo - mas essa é um termo errôneo - tem alguns pontos de definição, onde qualquer ato pode se desencadear por anos, décadas futuras, em um rede de ação e reação. Estamos em um desses pontos turbulentos, Corvo. O maior que já presenciei. Você deve saber três coisas. Três informações que me fizeram esperar por sua chegada. Primeiro, você pode guiar as almas da pessoas. Um corvo é um guia e somente ele pode indicar o caminho certo; os corvos representam o sol, o fogo de cada manhã e, por último, corvos são criaturas solitárias. Você vai deixar o grupo, eventualmente. É a nossa sina. Nosso destino, se assim quiser. Tenha isso em mente, Corvo. E não falhe. O tecido de todas as coisas precisa que suas ações sejam corretas, Corvo. Agora vá. Vá e não se esqueça do que aqui escutou.”
Yatagarasu crocitou mais uma vez e levantou vôo rapidamente, sumindo de vista antes que John pudesse pensar em perguntar alguma coisa. O pássaro estava confuso e tentava fixar as três lições de Yatagarasu. Lições? Ele não explicou nada, apenas disse algumas coisas sem sentido e desapareceu. Algo sobre o sol, sobre almas e sobre eu fugir. Era isso?
John também levantou vôo e continuou a seguir a ponte, na espera de encontrar algum dos companheiros.

Paul pescou mais um doce do bolso da camisa e se virou para oferecer para os outros garotos, quando percebeu que estava sozinho no meio da névoa. Por um segundo, ficou paralisado, o canudo de alcaçuz na mão esticada para a Bruma. Não conseguia ver nada além de alguns palmos à frente do nariz e percebeu que não sabia para qual direção estava andando. Se continuasse naquele sentido iria encontrar o parapeito da ponte? Ou estava voltando? Lutou contra o medo que ameaçava subir por sua espinha, uma sensação que iria inutilizar suas pernas e neutralizar qualquer ação que pudesse realizar para sair da Bruma.
Uma sombra surgiu do meio da vastidão cinza e começou a caminhar em sua direção. Paul procurou algum lugar para se esconder e, não encontrado abrigo, voltou-se ao encontro do visitante. “Olá?”, disse com a voz trêmula. Conforme a sombra ganhava contornos, ele se sentiu estúpido, mesmo acima da surpresa. Parado diante uma televisão antiga, que descansava sobre uma armação de ferros com quatro rodinhas, Paul procurou mais além, na esperança de encontrar a pessoa que estivera empurrando aquela televisão pela ponte e através da Bruma. Ele estava sozinho, decidiu depois de alguns minutos.
Estudou o que tinha encontrado naquele lugar inusitado. Era uma televisão bem antiga, a caixa principal de madeira e o vidro côncavo; botões giratórios marcavam uma das laterais e duas horríveis antenas se erguiam do topo. Paul, notando um estranho sentimento percorrer o braço, girou um botão, ligando o aparelho. Uma imagem cresceu na tela e ele deu um salto para trás, o coração ameaçando escalar sua garganta e fugir pela boca. Olhou para além da armação de ferro e não encontrou qualquer cabo de energia. Era uma televisão sobre uma prateleira, nada mais. Sem cabos de energia ou alguém para a mover. Apenas isso: uma televisão nômade no meio da pior névoa que já existiu em todo o Universos. Por Deus, em todos os Universos.
Da televisão, pôde ouvir o tema de Arquivo X. “Quatro garotos, perdidos em uma busca sem sentido e sem esperanças. Estão todos condenados?”, o narrador perguntou para ele, “ou Paul conseguirá cumprir seu destino e voltar para casa à tempo de assistir os documentários com sua irmãzinha?” A televisão mostrava um homem na meia idade, calvo e de terno, em preto e branco. Ele falava próximo a um desfiladeiro e milhares de estrelas brilhavam no céu noturno. Sentiu as lágrimas queimarem em seus olhos. Queria estar no conforto da sala, sentado no sofá macio, com um livro aberto no colo e segurando uma grande caneca de chocolate quente, esperando algo interessante começar na televisão. Daria tudo para conseguir mais uma tarde com sua irmã. “Paul, o que você precisa saber,” o narrador olhava diretamente para ele, “diz sobre o Fogo. Você é o vaso, Paul, a chama que brilha na escuridão.” Uma segunda voz explodiu nas caixas de som e o garoto deu um pulo. Era a voz de seu pai, gritando alto o suficiente para estourar as cordas vocais: “…inútil! Seu moleque sem utilidade, seu merdinha pretensioso. Você e mole, fraco. Bundão, bosta. Sua irmã tem mais colhões que você, seu me…”, a voz estava rouca, mas ele berrava em pleno fôlego. Dois seguranças o agarraram e levaram-no para longe, fazendo com que a voz sumisse aos poucos.
Não havia escolha para ele. Dois riscos brancos eram deixados pelas lágrimas que percorriam o rosto sujo.
“Ele parece não acreditar em seu valor, menino.” O narrador falava suave. No fundo da cena em preto e branco, podia ver um farol erguendo contra a névoa que o cercava, espessa e maligna, uma cena que serviria facilmente para Stephen King. “Mas você deve fazê-lo, o Velho acredita em você, certo? Prove seu pai errado neste assunto, menino, e você será um homem crescido,” havia barganha na voz da televisão, “nós já praticamente perdemos o contador de histórias e os Pesadelos estão vagando soltos uma vez mais. Vá, Paul, ande com segurança ao lado do Corvo e proteja seu nome à todo custo. Receba o Fogo e encontre o Guardião, ele também se perdeu. Todos nossos esforços parecem se despedaçar ao nosso redor, criança. As leis são esquecidas e a memória de tempos idos tornam-se fracas, para a desgraça de muitos seres que um dia já foram grandiosos. Éramos venerados, hoje, jazemos esquecidos nas notas de livros empoeirados. Precisamos de vocês. Precisamos do Fogo.”
O vidro tornou-se negro e a televisão começou a retornar para dentro da Bruma. “Mais uma coisa, Paul. Você pode curar seus amigos. O garoto-sonho, ele precisará de sua ajuda quando enfrentar o monstro que está preso dentro dele.” O contorno desapareceu no manto cinza e Paul ficou novamente sozinho no meio da Bruma. Havia algo na televisão que preenchia o lugar com uma presença protetora e Paul havia abaixado a guarda pela primeira em muito tempo. O que ele disse sobre Jimmy? Ele tinha um monstro? Paul começou a caminhar para o que achava ser a direção certa, tentando interpretar o que a televisão dissera. Esperava saber o que fazer com o fogo quando chegassem nele. Bom, não adianta sonhar com o amanhã se nada fizer hoje, ele pensou de forma resoluta, primeiro precisamos encontrar o Farol e passar pela Bruma. Parte de sua mente ainda estava em Jimmy, no entanto, considerando se o garoto era um risco para todos. O monstro estaria nele ou em seu coração?
Desanimado, andou pela ponte, pensando se sua irmã estaria tomando chocolate quente.

2 comentários:

  1. Senti o doce perfume da orquídea, vi o ataque da mosca gigantesca, o rio intransponível, a derrota de Jimmy no jogo da "queimada", o dragão e a busca do farol. Vivi cada aventura. Senti cada gosto e cada cheiro e senti medo. Saga maravilhosa Mauricio. Adoro seu estilo, seu modo detalhista de escrever. Vc sempre deixa um gostinho de quero mais. PARABÉNS. Ana Eliza.

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  2. Bom texto, Mau. Sua produção tem vindo a surpreender e fico feliz em ler-te. Beijinhos lusos da Fer.

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