sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Isso não é um conto.


Zack destrancou a porta. Queria ter um dia comum, como as pessoas normais os têm... normal. Tudo o que desejava era servir bebidas para estranhos, provavelmente estragando alguns meses de sobriedade, arruinando vidas aleatórias um copo por vez. Tirou da tomada a Jukebox, que protestou com um inaudível som mecânico e colocou a placa de fora de serviço, a maior mentira da semana; quardou os tacos da mesa de bilhar no depósito e trancou a pequena gaveta com a bolas, deixando para fora apenas a bola branca. A branca nunca coubera na gaveta e aquela não seria a primeira vez que conseguiria, não queria que fosse. Tudo seria normal naquele dia. “Estou me fodendo para o que você pensa”, ele disse para o móvel e deu as costas para o tecido verde e os pedaços azuis de giz.
Uma hora e meia depois o lugar contava com dezoito clientes. Os dois garçons que trabalhavam para ele corriam de mesa em mesa, suando como dois porcos ao sol. No balcão, três senhoras tricotavam e, apesar do barulho grotesco que faziam quando limpavam a garganta, Zack as ignorava: nada de louco para ele. Sentados no centro exato do balcão, de frente para as prateleiras com as melhores bebidas da casa, uma mulher loira, vestida com um sobretudo cinza, era assediada por um homem alto, queixo quadrado e cabelos caindo sobre os olhos. Ela era linda e ele, charmoso. Formavam um belo casal. A loira sorria por causa dos sussurros em seu ouvido e enrubescia com as mãos que acariciava suavemente suas costas e coxas. Zack notou então que ela tinha uma aliança na mão esquerda e o homem narrava alguma história barata, retirada provavelmente da biografia de algum dos Keiths, o Richard ou o Moon, enquanto mostrava uma sucessão de marcadores de página.
O bartender andou até eles, afastou-o violentamente do banco alto e quase o derrubou, não fosse a prontidão que o salvou. “Ei, cuidado meu chapa!”, ele protestou. Zack puxou o bloco dos marcadores da mão dele e os bateu na testa repleta de cabelos.
“Hoje não”, ele disse e se virou para a mulher. “Lorota, moça. São histórias inventadas ou retiradas de algum livro ruim que só ele leu. Esses marcadores são da livraria na esquina, veja só os lançamentos anunciados.” A mulher dirigiu um olhar congelante para os dois e se retirou, deixando duas notas dentro do copo cheio de cerveja. O homem a seguiu, parando na porta apenas para mostrar o dedo do meio para Zack. Os marcadores caíram sonoramente no lixo. Ótimo, pensou satisfeito, história evitada.
Costumeiramente cheio de conversa e curiosidade, Zack passou a maior parte do início daquela noite se esquivando dos clientes que tinham escrito no rosto o quanto queriam bater papo e contar algo extraordinário que havia acontecido naquela manhã ou chorar suas dores, quem sabe. Bêbados tinham a mania de pensar que os bartenders espalhados pelo mundo não têm problemas pessoais, aliás, eles provavelmente não têm vida: desaparecem assim que você pisa fora do estabelecimento. Alguns utilizavam o pobre Zack como psicólogo, a maioria como padre. As histórias que ouviu, as confissões banais e os crimes sussurrados sobre a madeira do balcão... ele não queria saber, não iria escutá-los. As três velhas que tricotavam alternaram os óculos e torceram a boca.
“Oi! A Jukebox está quebrada?”, perguntou uma voz no fundo. Não respondeu, andou até um homem sentado em um canto esquero e perguntou o que ele gostaria de beber ou comer. O homem vestia um largo chapéu, muito maior do que sua cabeça e a peça, que deveria ficar comicamente caída sobre as orelhas estava encaixada quase perfeitamente. Ele pediu um whiskey e o bartender viu um pequeno tentáculo verde passando sorrateiramente diante dos olhos do homem, retornando em seguida para dentro do chapéu.
“Ah não, não hoje”, disse Zack e começou a andar até o outro lado do balcão, quando uma mulher apontou para o relógio e disse que havia algo estranho. O ponteiro vermelho andava para trás, completando um ciclo anti-horário. Sem pensar duas vezes, ele alcançou o bastão de baseball que guardava para defesa e esmagou o velho relógio na parede. Cacos de vidro caíram por cima dele e sobre o chão sujo. Duas molas caíram em seu pé e rolaram para baixo do balcão.
Entregou para um dos empregados suados o bastão e a chave do clube e saiu pela porta, sem dizer nada. Andou pelas ruas da cidade, uma fina garoa caía do céu escuro e rajadas de vento dificultaram suas tentativas de acender um cigarro. Parecia uma cidade fantasma, sem barulhos de carro freiando bruscamente, buzinas e xingamentos gritados; nada de gatos cruzando em telhas quebradas; sem prostitutas iluminadas pela luz triste dos postes; sem uma lua prateada percorrendo a noite. Aquele era um lugar estranh/amente vazio. Zack errou pelas ruas desconhecidas, o cigarro encharcado apagado na boca, a roupa molhada, o cabelo rebelde grudado no rosto e os pés gelados. Andou até os dedos dos pés gritarem de dor, perdeu-se no labirinto da grande cidade e ficou contente. Um lugar estranho, novo, fresco. A ar gelado, purificado pela chuva, entrava nos pulmões cansados e dava-lhe uma estranha energia. Parecia que estava em outro estado, em outro país. Talvez em outra realidade, brincou sua mente. Não, nada fora do comum: apenas um bairro que não conheço.
Zack procurou por abrigo em um bar. Uma música animada tocava e ele recebeu, com felicidade, o calor abafado e carregado com o odor de suor e cerveja. Sentiu os músculos relaxarem aos poucos. Sentou em uma mesa e, momentos depois, uma mulher o abordou, caderneta na mão. Ela era quase linda, difícil de descrever, havia algo de metafísico em sua própria existência, como se os olhos enxergassem cores nunca antes detectadas. “Meu nome é Zack”, disse sem pensar, “e quero uma cerveja. Qualquer uma.”
“Meu nome é Joana, meu bem, e eu nunca perguntei pelo seu.”
Naquele instante ele soube que teria o que desejava. Estava fora de seu território, percebeu, longe das coisas que poderiam tornar uma noite tranquila em acontecimentos em uma cadeia desconexa e fantasiosa. Qualquer anomalia era por conta da mulher. Ela era encarregada de matar os dragões da região, por assim dizer.
“O que está tocando?”, Zack perguntou, olhando para a Jukebox estranhamente familiar.
“É bossa”, ela respondeu e se retirou para pegar a cerveja.
Encostou a costa molhada na cadeira e sorriu como um bobo até a mulher chegar com a bebida. “Quer um cigarro? O seu está mais molhado que uma ninfomaníaca durante um filme do Lars von Trier.”
“Lars von Trier é um merda”, ele respondeu. Mordeu o filtro do cigarro molhado e sentiu o gosto quase nulo da água se misturar à cerveja e ao tabaco. “Estou bem assim, obrigado.”
Não houve história para Zack. Naquela noite ele bebeu cerveja e se imaginou apalpando os seios de Joana. Era apenas mais um cliente em uma noite comum.

3 comentários:

  1. Como me faz bem as histórias de Zack, principalmente descritas assim, de um modo descontraído. Muito bom. Tava com saudades de ler Maurício Ieiri. Ana Eliza

    ResponderExcluir
  2. Um dia nao Tao normal assim... ;))) Mel

    ResponderExcluir
  3. "Lars von Trier é um merda" Maurício Ieiri em texto que desencadeou um protesto em massa de fás do dogma 95.

    ResponderExcluir