sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Dez Minutos dos Mortos


O telefone tocou. Ela pulou da cadeira e correu o mais rápido que conseguia até a sala, derrubando a cadeira onde estava e um vaso no caminho até o aparelho. Normalmente o som do telefone ficava no segundo nível, alto o suficiente para ser notado, mas em um tom que não ameaçava destruir a existência de vida na Terra todas as vezes que alguém ligava para ela. Mas havia algo naquela ligação que fazia o telefone berrar no tom mais alto que seus pulmões mecânicos conseguiam suportar. Quem usa telefone hoje em dia?, ela se perguntou. Que coisa dos anos 90!
“Vo... você está com a televisão ligada?” A voz que vinha do outro lado da linha (em um celular, ela notou... como qualquer pessoa normal), estava trêmula. No fundo ela ouvia pessoas gritando e vidros sendo quebrados.
“Não.” Ela respondeu e ficou parada. Viu que a água que estava no vaso derrubado se espalhava pelo chão da sala, junto com terra e pétalas dos girassóis. Os gritos vindos do aparelho continuavam, mais altos e longos a cada segundo, gritos de desespero e dor.
“Ligue logo! Canal 21”, a voz buscava por ar entre as palavras. Ele devia estar correndo. Faça algo! Seu cérebro gritou, forçando seus músculos a, finalmente, se movimentarem. Achou o controle da televisão e ligou. A imagem piscou na tela de plasma antes de se estabelecer. O que ela viu afundou seu coração. De repente seu estômago estava de ponta cabeça e a gravidade se desligou por um único segundo. Ela se apoiou no sofá para não rachar a testa no piso duro.
A imagem era confusa, muita coisa acontecia ao mesmo tempo em uma sobreposição de camadas que formavam um cenário completamente caótico. A primeira coisa que ela notou foi o carro pegando fogo no canto esquerdo da tela. Ao lado do automóvel, havia um corpo estendido, sangue ainda fresco escorria no asfalto do mesmo modo que água com terra se espalhava em direção ao tapete branco de sua mãe. Pessoas passavam correndo ao fundo, carregando sacolas e malas. Um homem, ela viu em um estado surreal, portava um facão. Ele balançava o instrumento sobre sua cabeça e ameaçava qualquer um que estivesse ao seu lado. No centro da imagem estava uma repórter. A garota raramente ligava a televisão, usando-a principalmente para assistir reprises de filmes de horror, nunca para jornal. Jornais são depressivos demais, ela sempre dizia em sua cabeça. A mulher que segurava a o microfone vestia um terno rasgado em um dos ombros, onde a manga fora completamente descosturada. Ela sangrava no mesmo braço. Estava pálida e o batom vermelho que usava estava combinando com o sangue que manchava sua roupa.
Henry cruzou a tela, correndo com o celular em um dos ouvidos.
“Ligou a televisão?”, ele perguntou talvez pela décima vez.
“Sim... acho que vi você.”
“Escute... não faça mais nada... só escute o que eles estão falando.”
Ela subiu o volume apertando um botão no controle. “...us começou a se espalhar. Repito, cientistas não sabem quando o vírus começou a se espalhar, apenas que ele controla os infectados. Boletins da Europa e da Ásia também confirmam que os exércitos estão tomando as ruas para controlar o surto que, aparentemente, é global. Por favor, não saiam de casa, tranqu-”. A mulher se abaixou rapidamente, alguns instantes depois uma rajada de tiros tomou conta da cena; uma explosão sonora nas caixa da televisão.
Na faixa inferior da televisão ela leu: “Redes sociais são tomadas com alertas sobre a ‘Infecção Zumbi’...”
“Não pode ser sério”, ela disse baixo.
“Isso é tão sério quanto... bom, quanto poderia ser. Parece que-”, mais tiros. “Parece que mais de dez mil pessoas já estão infectadas. A merda é séria. Os que pegaram o vírus começam a atacar em menos de cinco minutos, mas nada de comer cérebros. Eles correm para sua jugular e fazem um banquete do seu corpo. Até as os intestinos, pelo que estão falando.”
“Onde você está?” Voz estável, batimento cardíaco normal.
“Uns... uns quinze minutos. Fique pronta, vamos sair da ilha, mas vamos ter de correr, nenhum carro conseguirá andar muito.”
“Estarei pronta em dez minutos... não morra.” Ela desligou o telefone.
Fechou os olhos e focou sua mente na própria respiração. Assim permaneceu por um minuto. Quando abriu os olhos, qualquer um poderia ver a determinação e força de vontade no brilho de suas retinas. Ela sabia o que fazer.
Foi até o banheiro e apanhou uma tesoura na segunda gaveta e com poucos cortes deixou grande parte de seu cabelo na pia. Cabelos compridos não combinavam com aquele cenário e ela não se importou com o sacrifício necessário, preferia ter uma cabeça raspada do que ser agarrada pelos longos cabelos.
Andou rapidamente até o armário do quarto principal e achou uma mochila de acampamento. Esvaziou-a de antigos papéis de viagem, amassando canhotos de passagens de ônibus e bilhetes de embarque em vôos internacionais. Havia um bilhete de trem. Empilhou latas de legumes e sardinhas, separou alguns litros de água potável e socou na mochila algumas roupas. Procurou pilhas para a lanterna, pegou caixas de palito de fósforos e a embrulhou cuidadosamente em um saco impermeável, antes de fechar o zíper, colocou uma foto de sua família. Sabia que era inútil se prender ao passado. Estavam todos longe e a probalidade de revê-los era agora muito remota.
De todo modo, ela sabia, eles iriam apenas diminuir suas chances de sobrevivência. Ela sabia que o vírus se espalhava rapidamente, ‘em progressão geométrica’, os especialhistas no cenário apocalíptico diziam constantemente. E, olhe só, eles estavam certos. Ela prontamente assumiu que todas as lendas sobre zumbis eram verdadeiras: secreções corporais transmitiam o vírus, o status da humanidade se igualava ao de ‘gado’ para os zumbis. Dois tiros na cabeça, manter a boa forma, cuidar do cardio, nunca ficar sozinha e sempre manter a contabilidade da munição. Ela sabia tudo. Por dentro, tentanva controlar uma felicidade aparentemente incontrolável.
Levantou o tapete branco da sala, sujo de lama em uma das extremidades e deslocou o chão falso. Sua boca salivou com a visão do conjunto de facas e do pequeno machado de aço puro. Quando testou o corte do machado, seu dedo sangrou com a leve pressão que colocou na lâmina. Prendeu o cinto especial em sua cintura e colocou cuidadosamente as facas em cada lugar específico, deixando o machado por último. Por fim, colocou as duas pistolas automáticas por baixo da calça e o saco com diversos pentes na mochila.
Estava pronta.
Seu objetivo era sobreviver. Sentia um incômodo alívio, alívio por não precisar mais se preocupar com empregos, com os absurdos da vida moderna. Adeus e-mails, adeus contas, até logo pessoas imbecis de suas redes sociais. Havia a morte em cada esquina, ela bem sabia. Mas um sentimento de alegria aos poucos tomava conta de seu peito.
Quando o telefone tocou novamente, um pressentimento horrível cruzou seu corpo. Aquela ligação, ela sabia, iria destruir sua vida.
“Alarme falso!” Ele gritou em seu ouvido, felicidade e alívio se misturavam nas palavras. “Parece que os boletins eram falsos... Está tudo uma bagunça por aqui, mas era tudo falso”, ele ria entre as frases.
Ela desligou o telefone e ligou a televisão no mudo. Na mesma barra inferior, leu dessa vez: “Ataque Zumbi foi a piada do século. Cinco franceses acusados de começar a brincadeira em uma mensagem para um amig...” As palavras não faziam sentido. Ela sentiu todo seu mundo ruir.
Tinha feito esgrima, aulas de tiros, treinamentos de resistência e agilidade. Estava pronta, mais pronta para o ataque zumbi do que para seu cotidiano, conseguir um emprego e criar uma família. Começou a desfazer a mochila, pensando no que iria cozinhar para o jantar. Sentia-se vazia.
Agora que não havia mais o fim da humanidade nas mãos de mortos-vivos, ela não sabia o que fazer com sua vida. Suspirou profundamente e colocou o pijama mais confortável. Em meia hora estava comendo sucrilhos enquanto jogava em seu computador, explodindo cabeças de zumbis com seu mouse. 

Um comentário:

  1. Arrasou!!! Estou sem folego...devorei o seu conto de hoje. Parabens!!! Meliza

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