sexta-feira, 22 de junho de 2012

Mister Noite


“Eu prefiro o Corpo Fechado.” Estavam sentados em lados opostos da apertada mesa de fórmica branca, apesar do material estar amarelado pelos anos de existência e de panos de limpeza portadores de higiene duvidosa. Os bancos eram espaçosos, estofados com couro vermelho, gastos pelo tempo e, ele examinou as marcas, pelas centenas de bundas gordas que ficaram sentadas exatamente onde ele estava; clientes de todos os biotipos e raças que consumiram os mais variados pratos. Pousada ao lado de seu pé estava a mala trancada, protegida e esquecida por baixo da mesa.
“Como assim? ‘Eu prefiro Corpo Fechado’”, ficava irritado quando Beth imitava sua voz, fazendo mímica com as duas mãos como as de uma múmia nos filmes da década de quarenta; sentia-se um retardado na pior conotação da palavra. Beth continuou: “Sexto Sentido é muito melhor. Aliás, é o único filme dele que presta. O resto é lixo. As pessoas encheram os cinemas esperando por outras histórias como a do moleque que enxergava pessoas mortas, mas foram outras... não sei, abordagens? Não, estou procurando outra palavra. Ah, o diretor apenas não entregou filmes tão bons quanto Sexto Sentido, é o que acho.”
Ele sorveu um pouco da bebida no copo. O refrigerante causou o agrado de costume em seu estômago. “Isso porque você vai com as massas, meu velho amigo. Seu gosto, ainda não entendo como, é altamente manipulado pela mídia, corporativista ou não. Desde quando você ama vampiros?”, falava calmamente, sentado em uma posição rigidamente ereta, comendo o enorme lanche com as duas mãos e em mordidas contidas. Aleph quase nunca se exaltava e mantinha uma pose de estilo próprio, apesar da estupidez de Beth.
“Hum...”, ele apoiou o queixo em uma das mãos: a outra procurava por uma batata frita extra-crocante. “Há dois anos, acho.”
“Mais ou menos quando os romances adolescentes sobre vampiros voltaram para assombrar namorados forçados a assistir péssimos filmes com suas respectivas namoradas de mal gosto, certo?”, falou rápido, sem pausar para respirar.
“Não mude de assunto, Aleph. Pode ser que sou influenciado um pouco por adolescentes bobinhas, mas tenho certeza de que O Sexto Sentido foi o melhor filme do... do...”, Beth estava fazendo aquele som irritante com os dedos indicador e o polegar. Aleph achava que algum dia as manias do amigo seriam sua causa mortis. E ele próprio o culpado.
“Shyamalan. Preste atenção. Primeiro: Sinais. Sinais é um filme fantástico! Você não pode começar a ver o filme esperando uma história à John Woo, pode ter certeza. Nada daquela baboseira de disco voadores gigantes e explosões devastadoras na Casa Branca, correria e morte para todos os lados, o que você vai saborear é uma história sobre crenças. São várias crenças, gente que acredita em sinais nos milharais por todo o mundo, gente que acredita em um ser todo poderoso que escuta suas orações todas as noites e até mesmo sobre coincidências. Pensa só nisso, no começo do filme você tem um punhado de gente esquisita. Um religioso que perdeu a fé porque sua mulher foi cortada no meio, no meio, por uma camionete desgovernada; um asmático chato; um louco com chapéu de papel aumínio e uma menina mimada que não consegue terminar um único copo d’água. Mas tudo tem um propósito, tudo caminha para um ápice. No final do filme, a asma tem uma função, as dezenas de copos espalhados pela casa, cheios pela metade com água pura, também.”, ele entrelaçou os dedos das mãos para ilustrar seu ponto de vista. “Todos os elementos em colisão. É lindo.”
“Pode ser. Mas o filme é um saco.” Beth agora mordia um hambúrguer saboroso. Gordura escorria pelo pão e alcançava os cantos da boca vermelha. Aleph olhava para o companheiro com asco.
“Corpo Fechado é o melhor filme dele.” Disse, talvez justificando para si mesmo. “No fundo, é uma analogia para a filosofia chinesa. O cara é indestrutível, ele tem, como no título, Corpo Fechado. Nunca ficou doente ou se machucou, sua pele é impossível de ser rompida. No outro lado temos o Samuel, incrível no papel, que é a definição última da fragilidade.” Ele tinha as duas mãos esticadas com as palmas para cima, como se estivesse exibindo dois objetos diferentes. “Eles são opostos extremos. No Tao, os opostos são justificativas mútuas de existência. O baixo só existe por causa do que é alto; o quadrado se justifica na diferença com o círculo. Todas as coisas, o fogo, a terra, os pássaros, o sal... a própria vida, poxa, tem um oposto. Você, para jogar um pouco em outras filosofias, se define por tudo aquilo que não é, certo? Por exemplo, você não é inexistente, logo existe. Você não é mortal, por isso estamos aqui. Então sua própria matéria está justificada. O legal é que o Sam, podemos chamá-lo assim, não faz um personagem essencialmente mal por natureza, não senhor. Ele gostava de ler quadrinhos, amava a mãe... qualquer pessoa que passe muito tempo absorvendo conceitos e valores das histórias em quadrinhos enquanto toma leite preparado pela mãe tem de crescer para se tornar numa boa pessoa, anote o que eu digo. Mas ele quebra fácil, literalmente. Seus osso são praticamente feitos de vidro. E ele precisa, talvez para não ficar louco, achar uma explicação para sua condição. Quando ele explode trens e aviões, ele está procurando por algo indestrutível, seu extremo oposto. Quando ele acha o Bruce, um cara bonzinho, o herói da história, ele percebe seu papel de vilão. Veja, ele não é mal, mas precisa ser mal simplesmente porque esse é seu papel! Ele não está apenas achando seu papel em um plano maior: ele está fortalecendo a existência do herói! Essa é a moral do filme.” Ele olhava para Beth com um ar superior enquanto molhava a garganta com mais refrigerante.
“Suas batatas estão esfriando”, respondeu. Nunca continuava as análises de Aleph, flhava em exergar tal necessidade quando ele simplesmente nunca calava a boca. Às vezes queria gritar com ele, perguntar se cada palavra de sua mente era tão importante que ele não poderia, pelo menos uma vez, guardar para seus próprios pensamentos. O pior, e Beth sabia isso há mais de mil anos, era a resposta negativa. As palavras nas mentes dos dois seres sentados nos bancos vermelhos eram importantes e não poderia ficar caladas para sempre. Por fim, Beth puxou a pequena travessa de batatas fritas para seu lado da mesa, espalhou maionese em um dos cantos e começou a comer.
“A Vila pode ser visto como um analogia social, pura e simples. Você é uma leitra de seu quando e seu onde.” Apontou para um adolescente sentado na mesa ao lado. O garoto vestia uma camiseta de banda (com alguns representantes de uma seita diabólica em pleno coito) e calça jeans rasgada em ambos os joelhos. Cabelos compridos caíam sobre os ombros, e era possível escutar a música que saia do fone de ouvido branco. “Ele seria assim se tivesse crescido em outro país ou em outro século? Gostaria, se tivesse nascido daqui vinte ou trinta anos das mesmas bandas ou do mesmo estilo de música?”
“Esse filme tem uma história fraca, é só. Promete muito e não fala nada. Ainda gosto muito mais do...”
“Sexto Sentido, sei, sei”, interrompeu Aleph. “Aliás, acho que é ele, estamos aqui pelo garoto. Vamos?”
Beth olhou para o garoto com explícita dúvida. Decidiu que Aleph estava certo, como sempre, e começou a comer mais rápido. “Deixe...”, engoliu batata e carne mal mastigadas, “deixe-me terminar meu almoço. Dama na Água?”
“Conto de fadas moderno e o Giamatti em um dos papéis de maior carisma em sua carreira. Apesar que gostei dele naquele filme sobre traficantes de almas russos.” Aleph respondeu enquanto colocava a pasta sobre a mesa, acertando as duas senhas que protegiam o conteúdo.
“Fim dos Tempos?”, ele falou com a boca cheia. Era quase impossível entender as palavras.
“Sobre a natureza e a fragilidade da existência humana. Os homens têm esse planeta apenas e deveriam tratá-lo melhor. A ‘macrofísica’ demonstra leis sobre a raridade e preciosidade da existência da vida orgânica. Uma única mudança na trajetória da Terra ou de seu astro e puf, adeus mundo. Pronto?” Beth engoliu com dificuldade o que restava de comida e deu dois socos no peito, encorajando o alimento a continuar em seu caminho natural.
Os dois deuses se levantaram em simultaneidade e caminharam até o jovem vestido com a camiseta pornográfica. Aleph abriu a mala e deixou as histórias se mostrarem. Eles amavam suas criações. Haviam, afinal, presenteado os Fenícios com a mágica das palavras escritas para que pudessem contar histórias mais elaboradas. Na mala, pequenas esferas representavam histórias criadas por eles, mas que poderiam ser contadas de humanos para humanos apenas e os deuses perseguiam indivíduos com grande poder receptivo para suas narrativas. Não sabiam o porquê construíam belas histórias e as presenteavam para a humanidade, mas tinham a certeza de que faziam parte de um plano maior, algo que até mesmo deuses menores, como eles, não conseguiam entender. Cada história tinha uma voz própria e os deuses olharam com orgulho as esferas em cacofonia eterna Beth selecionou quatro esferas brilhantes e as inseriu na cabeça do adolescente, forçando-as gentilmente pela testa. As histórias achariam seu caminho na mente do rapaz e o manipulariam até serem escritas. “Suficiente?”, perguntou.
“Claro. Ele vai pegar gosto pela profissão e vai escrever por conta própria. O importante é ele contar nossas histórias.” Aleph fechou a mala escura.
O garoto nunca notou o que os deuses fizeram. Os quatro primeiros livros que iria escrever dentro de oito anos, fizeram enorme sucesso. Depois deles, a revelação iria experimentar a decadência e, com ela, o abuso de drogas pesadas e várias acusações de violência contra prostituta. Antes de destruir a parte de trás da própria cabeça com um tiro de uma .12 de cano serrado, ele se perguntou de onde tinha tirado as ótimas idéias para os quatro primeiros livros, e por que nunca mais havia criado outro livro bom. Mas essa é outra história.
Satisfeitos, Aleph e Beth saíram pela porta e entraram chamaram um taxi. Segurando a mala, Aleph perguntou: “Quem é o próximo?”
Beth fechou os olhos e se concentrou. “Zack”, disse com uma voz suave. “Na próxima cidade, barman e dono da Jukebox”.
A jukebox, você quer dizer?”
Um carro amarelo encostou no meio fio e os dois entraram pela mesma porta. Beth disse o nome da rua da próxima cidade e o taxista apertou alguns botões na máquina que mostrava o caminho.
“Sim. Será interessante. B-42.” Beth respirou e continuou a falar, com um sorriso sarcástico no rosto. “O Último Mestre do Ar?”
Aleph fechou os olhos em uma expressão de dor. Esse era o ponto fraco de seu argumento. “Não... esse filme é um lixo”.

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