sexta-feira, 15 de junho de 2012

O Conto do Bosque


Jonathan estava sentado na cadeira de madeira, um móvel bem trabalhado e confortável, há tempos não se sentia tão descontraído, na verdade, apesar da companhia do que parecia ser toda a família de sua namorada. Era difícil, em Londres, encontrar uma casa tão grande e tantas pessoas com laço de sangue no mesmo lugar sem iniciar uma guerra civil. A grande família constituía uma cena rara: estavam todos ao redor da mesa enorme, diversas bandeijas dos mais variados pratos ingleses; vinho e cerveja nos copos, refrigerante e suco para as crianças. Em algum lugar da geladeira, sobremesas variadas esperavam para comparecer ao jantar. Conversas animadas se cruzavam por toda a sala de jantar e Jonathan apenas escutava, sentado na cadeira confortável, observando como Monica se entrosava entre os parentes. Ele sorria, o que raramente fazia.
Em uma das pontas da mesa, sentado em clara posição de destaque, o pai de Monica apoiva os cotovelos na madeira, cobrindo a boca com as mãos. Seu rosto parecia escupido em pedra, com traços duros e bem definidos, calvo e com hirsuta barba cobrindo o hemisfério abaixo do nariz aquilino. Ele estudava o rapaz com olhos afiados. Olhos como o de uma águia esperando pelo vacilo de sua presa. “O que você sabe sobre a guerra Jack?”
“É John, papai”, disse Monica, aborrecida. Ela esperava esse comportamento do patriarca, mas mesmo assim ficava chateada com os testes de seu pai. Sabia que não deveria apresentar seu namorado naquela data específica.
Jonathan ficou calado por algum tempo, buscando todas as informações que seu cérebro mergulhado em hormônios adolescentes conseguia juntar. Não era muita coisa. “Qua...”, fez um ruído estranho ao limpar a garganta e seu rosto explodiu em escarlate, “qual guerra?”
“A única que foi combatida por razões legítimas, qual outra?”, ele deu uma risada sínica e olhou para a mulher. Ela disfarçava o embaraço que sentia, encarando o peixe frito no próprio prato. Um silêncio pesado caiu sobre a mesa.
“Papai, não comece, por favor.”
“Conte a história do vovô, papai!”, pediu umas das irmãs de Monica. A mesa toda concordou em uníssono.
O velho descobriu a boca e a limpou com um guardanapo, assumindo uma linguagem corporal totalmente diferente. Agora ele sorria com o canto dos lábios finos. “John”, ele parecia cuspir a palavra, “vou te contar sobre meu pai. Ele nasceu em uma época de homens duros, de vida dura. Os fortes venciam, os fracos morriam, era simples assim. Não havia essas porcarias eletrônicas das quais vocês sobrevivem hoje em dia. Nada de celulares, computadores, cento e cinquenta canais na porcaria da televisão ou as coisinhas todas com a marca da maçã. Vocês crianças parecem zumbis! Uma guerra faria bem para sua geração, ouça o que estou dizendo.” Ele parou e terminou o vinho que estava na taça. Pegou uma garrafa qualquer e bebeu diretamente dela. Um fio vermelho escorreu pelo canto dos lábios finos do velho. Para Jonathan, o vinho que escorria parecia sangue. “Uma vez por ano eu conto a história de meu pai e como ele sacrificou sua vida por aquilo que acreditava. Eu gostaria de contar ao redor de uma fogueira, vestindo o uniforme que ele usava e depois disparar algumas balas nas árvores da floresta em sua homenagem, acompanhado apenas das pessoas que amo... mas agora você é família, independente de minha opinião. Então, escute e aprenda algo de útil.”
Segurando um copo de cerveja, Jonathan sentiu o suor tomar conta da palma de sua mão.
O velho ficou de pé e começou a narrar: “Meu pai estava em na linha de batalha há um ano e quatro meses quando morreu. Conseguia disparar um rifle cinco vezes mais por minuto do que os soldados bem treinados normalmente conseguiam. Algumas cartas que irmãos de arma escreveram sobre ele dão a impressão de que era uma máquina perfeita, um soldado ideal para seu país. Eu me lembro do dia em que ele foi embora, mamãe chorava e meu irmão mais novo ainda estava no colo dela. Não entendíamos o que estava acontecendo e porque meu pai tinha que ir embora. ‘Para lutar contra os homens maus’, foi a última coisa que ele me disse. Depois disso, sumiu pela porta e nunca mais voltou para nós. Quando ele foi para a guerra, nossa casa não era mais a mesma, acho que isso aconteceu em todos os lares tocados pela guerra... em todas as guerras, para todos os países. A terrível ausência, o silêncio da falta. Escutávamos pelo rádio as notícias da guerra e vivíamos os desesperos de algumas pessoas que recebiam a mais temida das notícias, quando uma carta avisava que apenas um corpo, quando muito, retornaria para casa. No dia que minha mãe recebeu a carta anuncianado a morte dele, ela não chorou: reuniu todos os filhos e explicou como o pai daquelas crianças fora um soldado honrado e que não deveríamos chorar, se não por orgulho e compaixão por todos aqueles que ainda sofriam por toda a Europa. Ele morreu em julho de 44, sabe do que estou falando, certo?”
Jonathan negou timidamente, com movimentos lentos de sua cabeça.
“Sempre os melhores, eh, Monica?”, o velho balançava a cabeça junto com o jovem do outro lado da mesa. “Segunda Guerra Mundial. Hitler, nazistas, Dia D... Você precisa ler mais. Meu pai lutou no Dia D. No dia da invasão da Normandia, dia seis de junho de 1944, as tropas norte-americanas de paraquedistas pulou às cegas e praticamente todos os soldados ficaram longe dos alvos anteriormente planejados; enquanto milhares de vidas acabavam entre as marés daquele dia, outros milhares de soldados vagavam aleatóriamente entre fazendas e pastos. O caos tomou conta do interior da França. Soldados americanos, britânicos, alemães... todos eles vagando entre as pequenas cidades sem armas, sem provisões, sem seus companheiros de treinamento. Desconhecemos o tempo que papai ficou vagando sozinho, mas sabemos que ele morreu nos primeiros dias que seguiram o Dia D e por todo esse tempo ele lutou contra o inimigo, servindo sua pátria e suas crenças. Acho que na manhã do dia sete ele se encontrava completamente armado, com um rifle, uma baioneta e duas granadas de mão, mas na confusão da noite anterior, ele estava sozinho no meio de um bosque. Ele escapou de facas e balas, a única baixa fora seu cantil, que tomou uma bala para salvar a perna esquerda e, provavelmente, sua vida. Sua garganta devia estar seca, raspando; o estômago roncando; as forças ameançando escapar de suas pernas a cada passo, a cada metro percorrido. Consegue imaginar isso rapaz? Foi quando ele escutou uma arma sendo engatilhada. Antes que pudesse achar cobertura, estava cercado por cinco soldados inimigos. Apenas um deles estava armado. Papai não hesitou: disparou três balas rapidamente e, quando o cartucho vazio pulou da câmara, três inimigos estavam mortos, entre eles o que estava com o rifle. Com a baioneta, abriu o abdômen do quarto homem e perseguiu o último inimigo, abrindo sua garganta quando o alcançou. Eles tinham mais munição, um pouco de ração, água e mais três granadas. Assim ele passou o dia, escondido entre as árvores do bosque, matando inimigos. Pequenos agrupamentos se formavam na área, mas logo eram dizimados por um único soldado. Até hoje dizem que o espírito de meu pai habita aquelas árvores e, nas noites calmas, é possível escutar o grito de terror dos jovens com as tripas espalhadas pelo chão.”
“Que horrível, papai!” Monica estava pálida. “Que tipo de homem você quer mostrar para John? Que homem é capaz de fazer essas atrocidades?”
O velho esmurrou a mesa com os dois punhos antes que ela pudesse soltar mais uma única palavra. A mãe de Monica soltou um pequeno grito, uma garrafa de vinho virou e esparramou o líquido na toalha branca, o que fez John pensar em sangue derramado em um amontoado de folhas podres. Os convidados não sabiam para onde olhar; no outro cômodo, um bebê começou a chorar e uma mãe pediu licença da mesa de reunião. Apenas uma chama viva naquela casa havia: os olhos de um homem que admirava a força de um soldado determinado.
“Atrocidades?” Ele tentou se acalmar em vão e gritou a mesma palavra, cuspindo gotas de saliva que se misturavam ao vinho derramado: “Atrocidades? Ele estava em uma situação de vida ou morte! Você sabe o que ficar cercado por inimigos e lutar para viver, sem saber se verá a próxima lua ou até mesmo até a próxima refeição?”
“Você sabe?” Ela retorquiu em um tom desafiador.
O velho desabou na cadeira, reprimindo rapidamente um esgar no rosto. Uma lágrima solitária caiu de seu rosto. “Não... não é como se ele gostava do que fazia. Apenas entendia a situação em que estava. Um soldado, quando perdido em território hostil, tem duas opições, filha: ou deixa as sombras de seu coração tomarem conta de quem ele é ou ele se deixa abater e, na melhor das hipóteses, se torna um prisioneiro de guerra, o que também significará sua morte na maioria das vezes. Ele lutou, isso é um fato, puro e simples. E me orgulho disso, você deveria também.” Desvirou uma taça e a encheu de vinho. Dois longos goles lavaram sua garganta cansada.
O cérebro de Jonathan lutava para organizar o saber fragmentado que tinha sobre história. Deus, como era ignorante!
“Ele escreveu para seu bisavô, Monica. Pouco antes de morrer, talvez no último momento de calmaria em que fora poupado dos terrores da guerra. Ele dizia que olhava para os mortos, via os olhos abertos, sem vida, sem enxergar a beleza do bosque que os cercava. Pensou em quantas irmãs iriam chorar sobre o corpo dos valentes irmãos, de quantas crianças ele tinha roubado a chance de nascer. Por fim, se perguntou quantos amigos teria feito entre os mortos, fosse outra a situação. Meu pai sempre teve certeza da necessidade de lutar, de expurgar tudo que havia de errado em sua nação e, em parte, no mundo todo. Mas naqueles momentos ele fraquejava. Acho que qualquer penamento muda quando nossas mãos estão sujas de sangue. Na manhã do que pode ter sido o Dia D mais quatro, um grupo de amigos entrou no bosque. Ah, que reunião deve ter sido! Como seu pobre coração saboreou os olhares livre de julgamento. Pelo contrário! Olhares de orgulho e admiração! Ele escreveu essa última carta e, poucas horas depois uma tropa inimiga invadiu o território. Centenas de homens fechando o cerco sobre dez, quinze soldados. Organizaram uma defesa precária e protegeram cada centímetro que tinham. Bang, bang, bang.” O velho segurava um rifle invisível, fazendo mira com um único olho enquanto disparava suas balas mentais. “Trinta inimigos estavam no chão e treze deles ainda resistiam, atirando, arremessando granadas, protegendo-se mutuamente, sobrevivendo. Aposto que a maioria deles pensava em algum bolo de carne que estaria nas mesas de sua cozinha, quentes e saborosos, tenros como uma boa carne é; pensavam na voz de suas mães, no delicioso cheiro que escapava do cabelo de suas amantes... até mesmo no ladrilho do banheiro de suas casas, lugar para o qual nunca voltariam. Todos eles, excluindo seu avô, ignoravam pelo quê lutavam, apenas lutavam porque os homens poderosos mandaram cartas para suas casas. Seu avô, Monica vestia as cores da bandeira e tinha convicção em seu líder. Não era a guerra deles, mas morreriam por ela. Quando restava apenas ele, sei disso porque os sobreviventes do outro lado da batalha contaram depois da guerra, papai ficou de joelhos na terra úmida de sangue, braços caídos, ombros baixos e queixo encostado no peito, como morto. Quando soldados inimigos estavam perto dele, tirou o pino de uma granada que roubara no primeiro dia que passou escondido nas moitas do bosque e se explodiu com outros oito homens. Setenta e cinco inimigos mortos para eliminar quinze bons homens de nossa pátria.” Mais lágrimas caíam agora. “Por isso, todo ano nos reunímos no primeiro sábado depois do dia seis de junho para lembrar de meu pai. Esteja bem, velho, onde estiver. Esteja bem.”
Jonathan enclinou na direção de Monica e sussurrou: “Não deveríamos ir para o túmulo de seu avô e dizer umas palavras?”
O velho se levantou da mesa e andou até o namorado novo de sua adorada filha.
“Não dá”, Monica respondeu, “a ossada foi levada para a Argentina quando ele ganhou uma cerimônia por lá. Mas não podemos entrar mais na Argentina, depois eu te explico melhor”.
John, filho de judeus e ignorante dos fatos históricos, apenas concordou com a cabeça e se levantou, apertando as mãos firmes de seu sogro. Ele se perguntou se ela era judia, seus pais ficariam felizes. Monica parecia um nome judeu, afinal.
“Espero que esteja de acordo com nossas crenças, mesmo morando aqui na Inglaterra. Espero que partilhe nosso ideal”, disse o velho.
            “Claro, claro”, ele respondeu com determinação na voz. Ele ainda tentava se lembrar sobre o que tinha estudado do Nazismo para uma prova de História.

Um comentário:

  1. Excelente!!! Concordo com a infancia corronpida de hoje em dia,
    Com as consequencias negativas das guerras sobre os individuos,
    Sobre as familias e sobre o planeta. Senti revolta me
    Lembrando do passado criminoso de homens que se
    Corrompem usando a sua inteligencia e abuso de poder pra praticar a maldade ao inves de praticar O bem, distribuindo amor e conhecimento! Parabens mais uma vez! Meliza

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