sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Conto de Milacro


Para E. R. N.

O barulho ecoava no corredor vazio. Em uma velocidade febril, o escritor batia nas teclas da velha máquina, completando páginas sem qualquer tipo de pausa, conectando palavras, períodos e frases com maestria rara. Era possível sentir a magia na atmosfera, um manto criativo baixado sobre o homem alto, de cabelos raspados e olhos brilhantes. Sua mulher, morta pela segunda vez, jazia em uma cova rasa; ferida superficial na Terra. Ele não se lembrava de ter escavado a cova, muito menos como ele o fizera, tinha na memória apenas as lágrimas e o sentimento de perda, de estar irremediavelmente incompleto.
            Estiveram juntos por 19 anos. Agora ela estava morta. Pela segunda vez.
            ...tac-tac-tac-tac...
Uma névoa cobria o mundo naquela tarde enquanto a casa dançava ao ritmo das palavras que brotavam nas páginas. Ele estava sentado em lótus e trocava as folhas completamente preenchidas por sulfites em perfeita sincronia com a máquina, obsoleta há muitos anos, mas única alternativa para a velha arte de escrever com canetas. Ele tinha uma boa coleção de canetas de diversos tipos, mas sua mão cansava logo e não havia mais energia. A última luz iluminara seu rosto coberto de lágrimas algumas noites atrás, agora ele trabalhava na máquina de escrever, enxergando com a ajuda de velas. Estava em sua terceira fita, mais de 36 horas seguidas de criação e esforço literário. Tinha que terminar o livro, não havia mais tempo.
            Escrevia para bloquear o horror, escrevia para não pensar na manhã em que enterrara Hellena. Ou quando finalmente entendeu, de forma simples e crua, a realidade em que vivia. Algumas horas depois de jogar o último punhado de terra sobre o corpo de sua esposa e colocar uma simples pedra branca sobre o túmulo decidiu que iria terminar o livro. Naquele momento, tomava chá gelado, talvez o último copo de chá gelado de sua vida.
            ...tac-tac-tac-tac...
            Cada nova página era um passo na direção de seu dever. Devia essa última tarefa à humanidade. Era uma história poderosa, com potencial para mudar pessoas, lançar sobre todos um sentimento de esperança e união, talvez despertar o melhor de seus leitores, impulsionar a civilização em sua hora de maior necessidade. Ganhou sua vida com a ficção e havia construído uma sólida, ainda que modesta, base de leitores fiéis à sua obra. Era o que sabia fazer. Escrevia naturalmente como um processo para entender as coisas e descobrir como responder apropriadamente. Confiante e determinado, prosseguiu.
            ...tac-tac-tac.  
Subitamente, escutou passos. Um som vacilante, arrastado, que congelou seus dedos. Um silêncio sepucral caiu sobre o escritor. Ele podia sentir a presença do outro lado da porta, segura pelo peso de um armário e algumas cadeiras colocadas para travar qualquer tentativa de invasão. Os minutos transcorreram como horas, como um espiral temporal. Seus músculos tensionavam com a expectativa de ação, sua mente lutava para não entrar em um torpor nervoso. Aos seus pés, uma Desert Eagle .44 descansava, recentemente lubrificada e carregada na capacidade máxima.
Novamente passos. Sons guturais afastando-se da porta.
Quando julgou estar seguro, retomou a escrita. Seus dedos aos poucos ganharam velocidade e, depois de algumas linhas, estava novamente isolado em seu mundo.
...tac-tac-tac-tac...
O plot se desenvolvia, personagens tomavam medidas, personagens morriam. Frases de efeito se misturavam em diálogos profundos e impactantes, atos se desenrolavam na medida em que ele precisava trocar as fitas gastas pela máquina de esquever. A letra “p” aparecia pela metade, os numerais estavam duros e algumas teclas não mais indicavam a qual letra correspondiam. Às vezes as folhas ficavam presas e ele tinha que puxá-las com força. Como resultado, a coluna de papel que se acumulava no chão do corredor era irregular e algumas folhas estavam rasgadas ao meio.
Sol e lua se alternaram. Semanas transcorreram e o incessante tac-tac-tac-tac denunciava vida no antigo casarão. Apenas algumas latas de legumes e atum restavam no armário, a água ganhava uma coloração amarela e aquela era sua última fita. Se continuasse teria de usar a tinta vermelha. Numerou, com uma caneta verde a folha branca que agora o encarava, pronta e presa à máquina: 943, escreveu com firmeza. Estava na hora de terminar. Seus músculos gritavam em protesto pelos dias de pouco movimento. Cada centímetro de seu corpo era um ponto de dor.
Levantou-se, esticando os músculos da costas e estralando os joelhos. Pensou em Hellena pela primeira vez em... muitos dias, não tinha certeza. Tomou um banho rápido. Era um milagre que ainda havia água encanada, fria e com um pouco de barro, mas água encanada, caindo livre em seu chuveiro. Calçou os coturnos e sorriu ao lembrar que os comprara sem saber se teria alguma oportunidade para usá-los. Colocou calças confortáveis e uma camiseta do Pantera. Seu armário era constituído basicamente por roupas pretas e marcas registradas de banda.
Sentado no corredor, próximo à porta barrada, colocou uma mochila pesada encostada na parede e, em poucas horas, terminou de escrever o livro. Tac, gemeu a máquina, quando ele pressionou a tecla e imprimiu na folha o ponto final. Organizou cuidadosamente as folhas e as amarrou com um barbante.
O escritor colocou a mochila nas costas e pegou o revólver que estava no chão, em sua cintura, um cutelo permanecia preso ao cinto. As últimas latas de atum, milho e ervilha estavam seguras na mochila, por baixo de uma foto de Hellena.
Enquanto o escritor alto empurrava o armário que bloqueava a porta e pisava pela primeira vez naquele novo mundo, o livro permanceia no chão do corredor. O autor matou seu segundo zumbi naquele mesmo dia, enterrando fundo o cutelo na cabeça do morto-vivo, sentindo um misto de asco e prazer. Seek and Destroy, cantava enquanto se livrava dos mortos que caminhavam. Seus dias de escritor haviam acabado, permaneciam no passado, esquecidos e enterrados, talvez junto com sua esposa. Tudo que podia fazer era seguir em frente, conservando energia e recursos, tendo sempre uma última bala na Desert Eagle com seu nome escrito. Antes de usá-la, porém, iria derrubar o máximo possível daqueles malditos que se recusavam a continuar mortos.
O livro, estado perfeito da arte, épico poderoso e de capacidade influente, talvez o precursor de todo um culto ao redor de uma nova escola literária - o último livro escrito pela humanidade – permaneceu para sempre intocado.



Um comentário:

  1. Otimo conto, sempre deixando em mim um desejo por um pouco Mais...
    Meliza

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