sexta-feira, 16 de março de 2012

Sobre Escolhas e Besouros

“Sua cerveja vai esquentar, eu já disse isso”, ele falou. Ela prestava atenção, entediada, nos dois rapazes que despreocupadamente jogavam sinuca no final da manhã daquela terça-feira.
A mesa, já velha e desbotada pelo uso constante em longos anos, ficava em um canto escuro do bar. Era uma mesa que servia em seu propósito perfeitamente, ocupando clientes que buscavam por momentos nos quais poderiam esquecer do turbilhão de problemas que se acumulavam diariamente. Muitos, na verdade, juravam que o singelo bar fora construído ao redor da mesa, o verdadeiro símbolo daquele lugar. Longe de sua glória original, a mesa permanecia, inalterada e quase venerada, em seu canto escuro, escondida do mundo.
Os dois estavam na terceira partida e em quase absoluto silêncio, quebrado pela jukebox empoeirada que ficava ao lado da mesa. Helter Skelter, gritou Lennon. Os dois olharam, alarmados pela música, visto que não tinham visto ninguém perto da máquina de música. Trocara um olhar desinteressado e voltaram ao jogo. Ela percebeu que, como sempre, a música induziu o diálogo entre eles; era o que a música fazia naquele canto do bar. As pessoas jogavam e bebiam cerveja, mas se algo dos velhos discos estivesse tocando, elas também conversavam.
“Sua cerveja vai esquentar, merda! Beba isso logo”, ele repetiu, talvez pela oitava vez. O homem de gravata obedeceu e deu um longo gole do copo que estava pousado na borda da mesa em que jogavam. “Vou derrubar a cinco”, anunciou antes de impulsionar o taco de madeira na bola branca. O baque seco confirmou suas palavras, direcionando uma bola laranja para um dos buracos.
“Será que os Beatles jogavam sinuca?”, perguntou o homem de gravata, limpando um pouco da cerveja que ficara em seu bigode.
“Que tipo depergunta besta é essa?”. A bola branca rolou pela mesa, empurrando outras esferas, mas sem marcar qualquer ponto. “É claro que os Beatles jogavam sinuca. Todo mundo já jogou sinuca. É uma lei”.
“Uma lei? Lei de quem?”. Empinava o corpo, procurando o melhor anglo para dar continuidade ao jogo.
“Universal, oras. Como daquele químico, que falava que tudo vai dar errado, sempre”.
...You may be a lover but you ain’t no dancer...
“Físico. Ele era físico. Murphy, como aquele ator”. Ele olhou desanimado para o jogo: era péssimo em sinuca. “E a lei diz que as coisas tendem a dar errado, não é uma certeza. É impossível todo mundo que já viveu ter jogado sinuca”.
“Ah, mas não foio que eu disse. Eu disse que todo mundo jogou sinuca depois que inventaram o jogo. Que merda é essa de ‘todo mundo que já viveu jogou sinuca?’. Como você esperaria que as pessoa jogassem sinuca antes que o jogo tivesse sido inventado? Pô... e sua cerveja está esquentando”.
Jogaram em silêncio por algum tempo. Helter Skelter deu lugar para While My GuitarGently Weeps. O movimento quase mágico da jukebox – a bela dança dos discos de vinil – passou despercebido pelos três.
O homem de gravata limpou novamente a cerveja de seu bigode e disse: “Você acredita que existem mais Universos?”.
“Como assim, outras galáxias?”. Acertando mais uma bola, ele rodou a mesa, pensando no próximo movimento, sem perder muito tempo com universos ou galáxias.
“Não... Universos. Paralelos. Universos paralelos, onde as coisas são iguais... só que diferentes. Eu li numa revista, um dia desses. Alguns físicos acreditam que há infinitos universos, em que as coisas são parecidas, mas ligeiramente diferentes. Foi por causa de uma partícula que sumia em um lugar e aparecia em outro, alguém propôs que ela viajava para um mundo paralelo, percorria uma distância lá e depois voltava para nosso mundo. Eles afirmam que em cada um desses existe um equivalente para cada pessoa”.
“Não sei. Acho que pode ser”, respondeu, olhando para as bolas. Parou por alguns instantes e considerou. “Beba sua cerveja”.
Ele sorveu do copo.A cerveja estava horrível, quente. Olhou a bola branca percorrer lentamente a mesa, marcando mais um ponto, mas ninguém mantinha a contagem naquele mesa.
... I look at the world and I notice it’s turning…
Soltando um pouco o nó em seu pescoço, continuou: “Eu acredito nisso. Digo, em outros mundos, em que eu ainda sou eu, mas minha vida pode ter tomado rumos diferentes... minha vida tomou rumos diferentes. Infinitas diferenças! Imagine que cada escolha, cada pequena escolha da sua vida... se você usasse roupas diferentes ou comesse em outros lugares, andasse por ruas alternativas, estivesse com outras mulheres... tudo poderia serdiferente”. Ele pegou uma bola que estava na sua frente. Um dez estava estampado na tinta. “Pense nessa bola como uma escolha importante na sua vida.Você poderia jogá-la para a esquerda, mas será que iria ganhar o jogo desse jeito? Você poderia pegar a direita e o resto da partida seria diferente. Você iria errar? Acertar? Seu dia poderia ser totalmente diferente. Em mundos de possibilidades sem restrições, você escolheu a esquerda, você escolheu adireita e você fechou os olhos e jogou a maldita bola aleatoriamente”.
“Até em sua cabeça?”. Os tacos estavam agora encostados na parede.
“Até em minha cabeça, sim senhor”. Pousou a bola na superfície verde da mesa. “Mas isso não iria me agradar muito. O que quero dizer é que nossas vidas poderiam ser diferentes e ainda podem ser muitas. É uma reação em cadeia. Uma reação que segue caminhos infinitos. Isso é incrível!”
“Vamos até o balcão, sua cerveja já deve estar quente.” Ele estava acendendo um cigarro, ignorando o aviso na parede.
“Faz tempo que elaestá ruim. Ela está quente”, reclamou.
“Se os Beatles jogavam sinuca”, ele sorriu, fazendo um som estranho com o nariz. “Todo mundo jogou sinuca, principalmente o Lennon e o Harrison. Em todos os universos, afinal os Beatles são os Beatles”.
Enquanto a jukebox trocava o disco e iniciava Across the Universe, ela pensou que gostaria de ter uma vida diferente. Talvez em algum daqueles universos ela fosse o balcão do bar, onde as pessoas escorregavam canecas de vidro cheias de cerveja umas para as outras e conversavam, independete do que estava tocando na jukebos ou passando na TV. Seria bom sair do canto escuro, contar os amendoins espalhados e as marcas de copo. Elaquase podia sentir, com um estranho arrepio, os copos e canecas escorregando em sua superfície lisa.
Depois que todos seforam e as luzes se apagaram, a mesa de sinuca ainda tentava imaginar comoseria ter uma superfície lisa. Ela sorriu, envergonhada com seu pensamento pueril. Tinha certeza, afinal, que gostaria de ter o tecido verde em qualquer universo.

4 comentários:

  1. Rapaz, eu adorei esse conto.
    Tenho certeza de que, pelo menos em 485 noites de bebida selvagem, esse foi o assunto primordial na mesa do bar. Ou fragmentos psicodelicos de lembranças ofuscadas pelo alcool do meu outro "Eu". Acho que nunca saberemos a verdade...ate mesmo se ela esta la fora.

    Erie

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  2. Muito bom, informativo e envolvente. Parabens!
    Meliza

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  3. Obrigada pela dedicatória Maurício, adorei! Mas posso te dizer uma coisa? QUEQUÉISSOCARA!!!!!!!! Que texto sensacional... Li numa respiração só, e ainda tenho um nó na garganta pelo final. Bom, agora é esperar por mais. BOA SORTE. Ana Eliza.

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