sexta-feira, 23 de março de 2012

Constantinopla, 1968


“Sabe como algumas músicas às vezes podem trazer um sentimento nostálgico? Comigo acontece, mas é raro. Led Zeppelin, por exemplo, me faz lembrar de uma antiga namorada; The Who e Cream de quando estava no meu primeiro trabalho e Miles Davis remete aos copos de whisky. Muitos deles. Eu estava bebendo um pouco além do que deveria, mas isso passou. A mesma coisa pode acontecer com cheiros. Um perfume, o cheiro da madeira cortada no dia anterior, um livro novo ou um disco de vinil antigo, cebola frita na manteiga... cheiros podem ser nostálgicos”, ele disse de forma leve, buscando com seus dedos a mão dela. Era linda, vestia um longo vestido azul escuro e os tentava orgulhosamente um profundo decote, seios fartos, empinados. Ele podia ver os mamilos se destacados, duas cerejas apontando em sua direção. Cabelos vermelhos, olhos de um castanho exótico, traços bem desenhados. Sabia que ela estava muito aquém de suas possibilidades e mesmo assim, com Kind of Blues tocando nas cinco caixas de som espalhadas na grande sala, ele assumiu sua audácia. A boa notícia era que ela não retraiu o braço diante de seu toque.
            “O efeito, essa nostalgia, é chamado de sinestesia. Acontece quando os sentidos se misturam ou se completam”. A voz era calma, sedosa. Uma súbta vontade de mergulhar naqueles lábios macios, luxuriosos, tomou conta dele. Era como se a mulher sentada do outro lado da pequena mesa de café fosse um labirinto que o desafiava constantemente a se perder em seus corredores sem saída, curvas fechadas e longas retas para poder se sentir completo novamente. Enquanto ele saboreava o café forte, ela brincava com uma taça de martini, rodando a bebida na borda do vidro. Continuou, em uma voz intencionalmente sedutora: “É como ler sobre uma floresta com os pés descalços na terra. Se você ler sobre pinheiros, sobre os sons dos animais e o cheiro de terra molhada ou de um rio correndo rápido sentado em seu escritório, você terá uma experiência talvez agradável, dependendo do texto. Mas será bem diferente se você passar os olhos pelo mesmo texto encostado em uma árvore no meio do bosque, experimentando sensorialmente tudo aquilo que está nas páginas. Nesse caso você teria uma boa experiência, invariavelmente”.
            Deus, ela é linda. Ele então abriu a caixa de madeira que estava entre eles. No mesmo instante, um estalo seco escapou da lareira, parcialmente encoberto pela perfeição sonora de Miles Davis. Olhou, curiosa, para dentro da caixa. Diversos marca páginas empilhavam-se organizados não por tamanho, ela percebeu, mas em uma lógica que lhe permanecia misteriosa.
            “Minhas nostalgias”, ele apontou para os marcadores. “A maioria delas, são engatilhadas não por músicas, cheiros ou comida. Marca páginas”, disse enquanto esvaziava a caixa. “Cada marcador de página me leva de volta a algum momento da minha vida ou para situações, cidades, amigos... mulheres”, viu com satisfação o rubor nas bochechas dela. Abriu habilidosamente um leque com os marcadores: “Vá em frente, escolha um”.
            Ela fechou os olhos e escolheu um dos retângulos de cartolina. Era um marcador com a capa d’O Grande Gatsby. Um sorriso se abriu no rosto dele.
            “Em 1983, eu subi o Monte Fuji com dois amigos. Ainda consigo sentir o amargo quase insuportável do chá verde. Você tem que experimentar o ar fresco no topo daquela montanha! É lindo, quase metafísico. Quase”. Os olhos castanho-exóticos brilhavam. “A gente quase acredita nos deuses japoneses lá em cima. Estávamos em três e conversávamos no topo da montanha. Ah, o Fuji! Sentamos nas pedras e estendemos um pequeno pano vermelho, acho que os quatro símbolos do Led Zeppelin estavam estampados, e comemos alguns doces japoneses, feitos de feijão, e bebemos saquê e whisky, Walker. Hans, um dos meus amigos, estava contando, sem qualquer pressa em terminar a história, sobre o dia em que um vôo foi cancelado e ele ficou preso no aeroporto de Istambul. Não havia nada para fazer, ele não entendia a maioria das pessoas e resolveu ler. Tirou da mochila um livro, surrado, que pertencia ao seu pai e começou a ler. O livro tomou conta dele, horas se passaram e as páginas lidas se acumulavam do lado esquerdo de seu dedão, até que uma mulher, uma aeromoça segundo ele, entregou quatro marca páginas, todos com essa estampa”, segurava o marcador entre os dedos, como se fosse um cigarro. “Acho que era 1968, o ano do verão. A mulher o guiou até o bar, onde um homem estava sentado sozinho, fumando um charuto e lendo o jornal do dia anterior. Ele se sentou na mesa, livro em uma das mãos, marcadores na outra. Os três entraram em uma conversa animada e logo esse meu amigo, o Hans, se esqueceu de perguntar o que diabos estava acontecendo. Pareciam velhos amigos... velhos melhores amigos. Quando o vôo do casal foi anunciado, eles se levantaram e se despediram. ‘Por sinal’, disse o homem, ‘meu nome é Francis. Francis Fitzgerald’ e se afastaram, sumindo no mar de pessoas que vagavam na espera de um avião. Ele conheceu o maldito autor, um do maiores até hoje, em uma noite quente em Istambul, preso no aeroporto da cidade! Isso é incrível”.
Durante três horas ele contou histórias. As datas se misturavam em diversos lugares do mundo e diversas situações maravilhosas. Paris, Califórnia, Ilha de Páscoa... aquele era um homem interessante, ela concretizou.
Por fim, ela pegou um marca páginas branco, com um pequeno pássaro minimalista desenhado em seu centro. “E esse?”. Ele apenas sorriu, percorrendo a mão na pele arrepiada do pescoço da mulher.
“Esse ainda não tem qualquer... sinestesia”, um beijo suave e molhado surgiu. “Sem qualquer nostalgia. Mas as memórias mais doces podem ser criadas essa noite”.
Quase sem perceber o que estava acontecendo ela o recebeu, quente e úmida. Enquanto mordia sua pele e arranhava as fortes pernas do homem, ela se imaginou como um marca páginas, um pedaço de papel azul e vermelho, cheio de sinestesia e nostalgia. Iluminados apenas pelo fogo da lareira, era impossível saber que eram duas pessoas. Durantes toda a madrugada foram um amontoado confuso de braços e pernas, gemidos, gritos e saliva.
            Pouco depois do terceiro orgasmo, ele entrou no banheiro e ligou o chuveiro. Ela ficou deitada no tapete da sala, exausta. Pensava nas história que ele contara e nas histórias que poderiam ter. Quantos marcadores, quantas viagens, quanta sabedoria!
            Ele saiu do banheiro, completamente vestido e apanhou a pequena caixa de madeira, repousada perto da lareira, guardando o marcador branco com o pequeno traço que representava um pássaro. Apanhou a chave do carro e caminhou rapidamente para a saída.
            “Espere!”, ela gritou de forma alarmada, “Onde você vai?”.
            “Sair, vou para casa”.
“Fique mais um pouco, conte mais sobre o Japão”.
            “Eu nunca estive no Japão”.
            Ainda sem entender o que estava acontecendo, ela continuou: “Me conte sobre seu livro predileto, então. Dickens? Hemingway? Wilde?”. Sem se dar conta, duas lágrimas caíram das lindas retinas castanho-exótico.
            Antes de sair daquela casa  desconhecida, e da vida daquela linda, maravilhosa, usada mulher, para nunca mais retornar, ele respondeu com um sorriso triunfante: “Fitzgerald morreu no final de 40. E eu não leio livros. Só coleciono marca páginas”.  

3 comentários:

  1. Massa, cara! Gostei mesmo! Mas aonde estao os fantasmas, o sangue e/ou as cabeças rolantes?
    E', fan do Stephen King é foda!!!hehehe
    Seu irmao.

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  2. Adorei!!!! Obrigada e parabens!
    Meliza

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  3. Muuuuuuuuuuuiiiiito legal!!! Idéia genial.
    Ana Eliza.

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