quarta-feira, 18 de abril de 2012

Esqueça Socrates

"Quanto tempo", foi a frase de minha terapeuta ao me ver. Duas palavras ditas de maneira tão bem composta que não compreendi se era ironia ou apenas constatação. "Não me lembro quanto", e não me lembrava. Não me agarro aos calendários.

Conversamos sobre a escrita literária. "Não consigo compor", disse. "Parece um texto fraco, mimado, raquítico", continuei. "E porque você simplesmente não escreve, em vez de pensar?", perguntou-me. "Mas isso não é literatura", e não era.

Quando adolescente, em processo proto-escritor, tive a fase poeta. Em versos de rimas pobres, temáticas frias e romanticas. Ao envelhecer, assumi a verve prosaica. Falo demais, escrevo também. O sincretismo poético que vá aos diabos. 

"O problema é que não dá para ativar um sistema. Despertar com a consciência de estar pronto. Sim, agora sou um escritor. Há elementos mais frágeis que isso. Doí", repliquei. Nunca era questão de escrever. Palavras seguem palavras, as vezes sem razão. Explosões não são literatura.

Mas eu precisava de um caminho, um significado para que aquelas palavras não fossem em vão. As mesmas palavras repetidas, oração de rosários aquebrantados pelo tempo. Eu queria levantar-me da poltrona e sair da sessão. Negava minha incompetência de escrever. Por falta de esforço. Por me acreditar especial. Venham, venham até a mim, meninas. Me inspirem com seus corpos nus, musas. Quero banhar-me de sua insensatez.

Eu tinha vinte e cinco anos. Não sabia de nada. 

Continuo sem saber. 

domingo, 15 de abril de 2012

o cheiro no ar

Joana debruçada no balcão, Joana bored, Joana sem clientes que a entendam. Joana sem cliente a atender. Viu a porta de entrada balançar ao vento do último cliento que saiu, um homem meio frio com um sorriso eterno face ao rosto. Não era pro seu gosto, pensou Joana, mas não era de todo mau.

Vitrola tocando um samba antigo samba Cartola, Joana de rabo de olho olhando a vitrola. Lá fora o vento do homem saído levava resquícios de alguma coisa, futuro prenhe, de algo não ido mas pra onde ia. O homem saído só sabia que caminhava no rumo ao sol.

Joana não sabia, mas podia imaginar.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Ela Correu Todos os Horizontes


A chuva torrencial castigava o guarda-chuva. Vestia capa para chuva e deixava sua pasta estrategicamente posicionada em seu corpo para melhor proteger os importantes papéis, mas sabia que invariavelmente a água iria arruinar meses de trabalho. Novas reuniões, novos acordos para conseguir todos os envolvidos sentados na mesma mesa ao mesmo tempo. E assinar os malditos documentos. Pela segunda vez. Tudo por causa de sua persistência em não ter um carro. Aquela cidade tinha metrôs suficientes, não havia necessidade de um carro para suas tarefas.
Os próximos meses seriam um inferno. Minha vida é um inferno, ele pensou desanimado. Um súbito baque em seu ombro esquerdo causou um choque em sua mão e a pasta, feita com um couro barato, já desbotada e descascada, foi ao chão. O impacto destravou o sistema de segurança e diversos papeis rodaram pela calçada, arruinando qualquer conteúdo neles impresso. Alcançou rapidamente a pasta, procurando salvar parte de seu trabalho e em seguida, olhou para o imbecil que o empurrara. Segurando o guarda-chuva entre o queixo e um dos ombros, viu uma silhueta feminina, pernas torneadas sob uma calça preta, agarrada. Cabelos loiros, empapados pela chuva. Os tênis de um rosa, acentuado pela água. Perfeita, ela corria apesar da chuva. Mais tarde, pensaria que ela corria pela chuva. Uma mão levantada, um pedido de desculpa. Ela corria na chuva, se distanciando até sumir no horizonte.
Ele continuou ajoelhado, a pasta a meio caminho entre o chão e seu corpo, o guarda-chuva comicamente pendurado em seu pescoço, vendo a mulher correr até desaparecer. Logo, ele tinha apenas os tênis cor-de-rosa na cabeça.
Naquela noite, pendurando os papéis molhados no pequeno varal de seu apartamento, ainda molhado pela chuva, com o nó frouxo da gravata que usou por toda a semana, ainda pensava na corredora. Via aquela bunda redonda balançar, as pernas em perfeita coordenação, avançando determinada. Contou os passos dos tênis cor-de-rosa, contou as gotas que molhavam o cabelo dourado.
Durante o jantar, quando percebeu que as assinaturas estavam irremediavelmente arruinadas, apenas um conjunto sem nexo de manchas azuis e negras sobre o papel sujo, pensava como seria o rosto da mulher. Como seria o rosto de alguém que ele não conhecia? Como era o nariz de uma pessoa que ignora o que parecia ser o segundo dilúvio para sair de casa e correr? Ele se prendeu a cada detalhe daquela pessoa perfeita que existia somente em sua imaginação, desenhou na tela de sua mente a curvatura de seus olhos durante um sorriso, escutou o som de sua risada doce e sincera, uma mulher perfeita que em sua (absurda)mente, seria o simulacro dos tênis cor-de-rosa que derrubaram sua pasta. Traçou um esboço de seus seios, fartos, consistentes. Mamilos rosados, endurecidos pela água que caia do céu. A marca da apendicite em sua barriga lisa, ela com certeza tinha feito uma operação para retirar o apêndice, ele sabia.
Enquanto escovava os dentes, levantou o pijama e sentiu nojo de seu próprio corpo, a gordura vazando dos limites de sua roupa, os músculos flácidos balançando livre em seus membros. As unhas dos dedos do pé estavam gigantes e tortas, os pêlos de sua costas estavam se espalhando ganhando terreno e iniciando novas colônias. Criada pela comida hipercalórica e pelo abuso constante de doces e cervejas, a barriga se destacava de seu tronco. O que estou fazendo com minha vida, onde fiz as escolhas erradas?, começou a se indagar. Às vezes sentia que estava deslocado de onde deveria estar, tinha coisas importantes para fazer, mas não ali, não na vida que levava. Vivia fora do que era para ser. Se ele corresse, se fosse rápido, poderia alcançar o que lhe era suposto. O real.
Dois pensamentos simultâneos cruzaram sua cabeça, confortavelmente afundada no travesseiro de penas. Imaginou do que ela estava correndo. Sabia que estava vestida para se exercitar, mas do que ela corria? E até onde poderia ir, essa era o que ele queria mais saber sobre ela, a corredora sem face. A mulher que mais cedo havia derrubado a pasta de couro barato na água e destruído as assinaturas, preenchia agora tênis cor-de-rosa na mente do homem que dormia. E os tênis avançavam, um de cada vez, altenando e trocando, indo e vindo... Determinados e regulares, desviavam da água, dos galhos; paravam nos sinais fechados, pulando e correndo no lugar para não perder o ritmo. E avançavam. Desciam ladeiras, subiam avenidas. Não importava o número de horizontes, ela percorria até desaparecer gradualmente. Até quando, ele não sabia, mas em seu sono ela corria para sempre.

Seus pensamentos continuaram a cruzar paisagens irreais com a mulher. A fantasia continuou por todo aquele dia. Nas estações de metrô e em sua mesa de trabalho, enquanto diferentes pessoas gritavam com ele por causa dos papéis, agora secos, amassados e das assinaturas indistinguíveis, durante o café e depois ainda, quando novamente as mesmas pessoas apontavam um dedo gordo em sua face, berrando com uma expressão maligna enquanto grãos de comida caíam junto à saliva.
Ela ganhava quilômetros, ganhava ruas, avenidas e cidades. Nada poderia Pará-la. Estava no controle das ações em seu cotidiano.
Quando um sujeito particularmente desagradável estava sendo especialmente agressivo, ameaçando seu emprego e também, por que não, sua própria existência, suas pernas se tornaram inquietas. Enquanto suas mãos alcançavam a mesma pasta de couro desbotado para quebrar o nariz e três dentes do gordo infeliz que gritava e cuspia em seu rosto, ele planejou entrar na pequena loja de materiais esportivos que havia não longe dali. No momento em que seus pés encontravam os computadores do escritório, começou a refletir que tinha de começar em um ritmo mais lento, estava fora de forma. Com as calças no joelho e a urina caindo pelos corredores do andar, ele sabia que tinha que começar a correr imediatamente: dois seguranças avançavam em seu caminho.
Com os novos tênis nos pés, azuis e com longas listras brancas, desenvolvidos para corridas de curta distância, deu os primeiros passos na sua nova atividade. Para cada metro vencido, um pouco de sua rotina se desintegrava. As pessoas olhavam com ar inquisidor para o homem que corria de terno e tênis azuis com listras brancas. Sentindo calor, se livrou do terno e da gravata, deixando-os cair. Vão, estão libertos, pensou com um sorriso no rosto. Eu estou livre!
As pernas doíam, sua barriga balançava desconfortavelmente, os ombros gritavam a cada rotação corporal, mas ele continuou. De repente, um novo encontrão quase o derrubou. Pernas perfeitas passaram por ele. Os cabelos loiros, agora presos, balançavam lindamente. Os tênis eram pretos, os outros estavam secando em algum lugar, deduziu. Ele acelerou e esticou a mão para agradecer a pessoa que mudara sua vida, mas hesitou.
Em sua mente ela continuava a correr. Imponente e certa do que seria preciso. Se olhar para seu rosto, ela será mais uma pessoa. E pessoas não podem correr incansavelmente, elas se deixam grudar onde estão e terem suas faces lavadas com a saliva de seus superiores.
Retraiu o braço e, sem colocar um rosto em sua corredora perfeita, continuou para descobrir até onde poderia ir.
Sem o terno, sem gravata, sem a velha pasta, ele correu.


segunda-feira, 9 de abril de 2012

tubarão e o gafanhoto

- Quando roubaram minha bicicleta eu saí para correr...

- Quando você saiu para correr roubaram sua bicicleta, você quer dizer?

- Não. Quando desci a vizinha me disse "cadê a bicicleta?" e eu disse "não sei". "Pois estava aqui às 7h e às 9h não estava mais", "Então roubaram", respondi. Ela disse "E o que vais fazer?", "Vou sair pra correr. Boa tarde, feliz páscoa".

- E daí?

- E daí nada. E daí que só corri. Terrenos baldios são campos floridos na primavera. Atrás do cemitério há uma favela, dentro dele também. Um submundo de cada lado, suponho. Depois o vizinho falou "Vá lá ver se acha a bicla".

- A que?

- Bicla. É bicicleta em Portugal. Bike, magrela, tu sabe. Aí eu disse "Não, magina, não vou procurar problema". E ele fez cara de enfado e disse "Mas devia de ir lá, aqueles moleques podem estar por aí com ela". E é, podiam, mas que eu ia fazer? E pra quê? Saí pra correr, novamente.

- Duas vezes?

- Não foram no mesmo dia.

- Ah.

- No cruzamento há um rato esmagado, fresco, ainda quente. Passo ao lado, reverencio, penso na morte dele e sigo correndo. Uma vez pisei num gafanhoto que grudou no meu shorts enquanto eu corria. Por descuido eu fiz de rato o gafanhoto. Corremos juntos por 2 quilômetros e, de repente, na curva, ele caiu. Só vi quando ouvi o barulho trovejar dele morrendo a meus pés. Sob meu pé, na sola do pé, no meu tênis preto de correr.

- E?

- E nada. Foi foda, na hora, dei meia volta e corri feito um filho da puta, sem pensar em nada. "Porra, porra, por que não presta atenção por onde corre?" Mas não havia mais o que fazer. Ele estava morto e eu continuava correndo.

Joana retirou a garrafa vazia de cima da mesa, serviu outra cheia e amendoim.

- Na rua de entrada ao cemitério, que eu sempre corro, também sempre vejo um senhor deficiente andando por ali, esperando o ônibus, depende do tempo que levo pra ir e voltar. Não sei o que ele tem, mas não usa bengala: em vez disso, tem um cajado. Acho que é mais fácil pra se locomover. Eu corro por ele.

- Como assim?

- Eu corro por quem não pode correr. Corro por ele, pelo rato morto, pelo gafanhoto, pelo cavalo aleijado que é sacrificado no morro, por todo mundo por quem passo enquanto corro. Tu consegue imaginar o quanto de velhinhas obesas maquiadas com bengalas eu encontro no caminho? São várias, é impressionante. Corro por elas também. Corro pelos tubarões.

- Porra, pelos tubarões?

- É. Quando pescam tubarão e içam pro convés do barco eles não tem pernas nem tem braços pra escapar, pular pro mar de volta, fugir dali. Corro por quem não pode correr.

- Pelo Stephen Hawking?

- É, por ele também. Por todo mundo eu faço essa volta todo dia na cidade, correndo do lado de carros e ultrapassando congestionamento.

- Hey!, quer tremoços?

- Boa ideia. Joana...!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Velho, a Cachalote e o Mar


Olhou para o relógio, impaciente. Depois relaxou, afinal tinha o resto de sua vida para ficar naquela fila. Alcançou o kindle em sua pasta de couro e retomou a leitura de um dos livros de Murakami. Entre os dedos, tinha um moeda. Uma brisa acariciou o rosto quadrado e cansado do homem encostado na parede, posição que lhe permitia jogar o peso do corpo em uma perna de cada vez, o sol da primavera banhava toda a fila, tornando a temperatura agradável. Depois de algumas páginas a fila novamente andou.
“Finalmente”, alguém falou atrás dele. “Não tenho minha vida toda para ficar aqui!”, o tom sarcástico da frase arrancou-lhe uma risada, liberada em uma explosão engasgada. Ainda tossindo ele se virou e apertou a mão do responsável pela piada. Pela primeira vez em sua vida, teve o prazer de literalmente chorar de rir. Ainda dobrado sobre o próprio estômago, lutando por ar e pensando na ironia de morrer de tanto rir no lugar em que estava, ele reparou no tênis do homem que estava atrás dele. Calçava um par surrado de tênis brancos para corrida. Manchas de terra cobriam as laterais dos tênis.
“Gosta de correr?”, perguntou depois de finalmente recuperar o fôlego.
Não poderiam formar maior contraste. Ele vestia um terno de corte perfeito, costurado sob medida, uma gravata de seda e ostentava um corte de cabelo que provavelmente era mais caro que o livro digital que tinha nas mãos. Aproveite que está observando o estereótipo apresentado, caro leitor, e veja suas mãos, note a marca pálida ao redor do quarto dedo da mão esquerda, onde uma aliança costumava ficar.
O homem com quem conversava vestia uma flanela estampada com um padrão quadrangular, verde e vermelho. Grossos óculos sustentados por uma armação barata, cabelos monumentalmente bagunçados e um livro de capa mole nas mãos, com uma pequena moeda entre as páginas, ele notou. O pobre livro parecia ter sido impresso pelo próprio Gutenberg e o modo como o jovem o segurava não contribuía para seu estado de conservação.
“Quase todos os dias. Estava precisando me exercitar, você sabe, muito tempo sentado na frente do computador, trabalhando e escrevendo, escrevendo e trabalhando. E não foi uma transformação lenta, gradual, ah não! Foi um... boom! Numa semana eu era um palito, na outra não conseguia entrar nos meus jeans.” Tinha uma voz calma e monótona, deixando pouco espaço para continuar o diálogo. Ele percebeu que o jovem não gostava muito de conversar.
“Eu também gosto de correr. Odiava no começo, era um sacrifício sair de casa. Todo o ritual de me trocar, colocar a roupa desconfortável de academia, desligar a TV e finalmente sair do sofá era muito cansativo. Eu trancava a porta de casa já pensando no momento em que estaria de volta. Mas, devagar, conforme fui superando um ou dois quilômetros antes das minhas pernas virarem geléia, fui gostando de correr. Meu cérebro viajava para bons lugares quando eu estava na academia.” Quando o jovem não disse mais nada, pensou em vão em algo para falar. Voltou para sua posição, observando os olhares desinteressados das outras pessoas na quilométrica fila.
“Eu corro em parques”. As palavras chegaram com surpresa em seus ouvidos. “Corro para ver pessoas, desviar dos cachorros e desafiar os carros que teimam em não respeitar as faixas de pedestre”, o jovem continuou com uma voz tímida.
“Eu percebi que você corria em lugares abertos”, apontou com o queixo, “seus tênis não estão mais exatamente brancos.”
“Isto? Isto não é terra, é saibro. Sempre evito o mesmo percurso, então algumas vezes tenho de cortar campos de futebol ou quadras de tênis. Normalmente os jogadores me xingam... principalmente se eu paro para roubar algumas bolas e um ou dois gatorades”, os dois gargalhavam. Estudando sua fisionomia, o jovem disse: “Você não parece o tipo de cara que chega tarde do trabalho e, no lugar de abrir umas cervejas e assistir um jogo de futebol qualquer, sai para correr.”
“Comecei por causa do Haruki Murakami.”
“O cara do Norwegian Wood?”
“Ele mesmo. Tem um livro dele sobre correr longas distâncias quase todos os dias e como isso o influência. Fiquei curioso enquanto lia e decidi tentar, apenas para confirmar as coisas das quais ele falou. Para ele, qualquer ação pode ser meditativa, desde que você a realize vezes o suficiente... qualquer coisa, como por exemplo correr. Seu corpo se acostuma, os músculos respondem ao estímulo e logo sua mente começa a divagar.”
A fila andou e os dois se calaram por alguns momentos. O homem de terno estava de costas para a direção da fila, saboreando aquela discussão com um prazer raro em sua vida. Pelo menos nas últimas decadas. Sem perceber, brincava com uma aliança invisível em sua mão esquerda, mão que segurava, persistente, a moeda.
“Eu gostaria de ter lido esse livro, às vezes teria me estimulado mais”, continuou o jovem. “Meus amigos que leram algumas coisas dele sempre falaram que é um autor obrigatório. Parece que as histórias dele chegam como um meteoro disfarçado de livro e muda completamente a maneira de pensar. Sempre pensei nele como uma espécie de droga, como a heroína, que muda a química do cérebro e, de repente, você está viciado, você precisa daquilo para seu cérebro estar no estado normal.”
“Hum... Nunca havia pensado dessa forma. Posso concordar.” Ele olhava para a pequena tela do livro digital, lendo palavras aleatórias. “O Murakami é um cara de sensibilidade, que sabe como escrever sobre a vida em detalhes, de uma perspectiva talvez única.”
“Talvez. A verdade é que muita gente soube escrever da vida em uma perspectiva única. A minha vida, por exemplo, pode ser comparada ao Moby Dick. Não que eu seja uma espécie de Ahab, mas com certeza tenho minha cachalote branca.” Um esgar cruzou o rosto do rapaz.
“Uma obsessão, hein?”
“Forte. Escrever livros, contar histórias. Minha paixão, minha maior frustração. Nunca fui capaz de escrever uma linha de frases fortes e sólidas, tudo que criava era frágil, sem vida, insípido e simplesmente não funcional. Escrever é minha baleia branca e queimei tudo e todos que tinha para perseguí-la, essa vadia do mar.” O jovem de tênis de corrida fechou o livro, revelando a capa surrada do volume, com quatro imagens distintas, representando um ciclo anual. Começo, meio e fim: Quatro Estações, com Stephen King escrito em letras garrafais e chamativas.
“A maioria das pessoas nessa fila poderia contar a mesma história, garoto. Também tive minha obsessão, mas acho que sou outro livro. Eu alcancei aquilo que queria e fui teimoso em continuar, mesmo quando tudo começou a se deteriorar. Eu fui, por anos, o mais bem sucedido especulador nas bolsas. Dinheiro, fama, poder... amor. Eu tive tudo”, mostrou a marca da aliança para o jovem, “mas tudo acaba algum dia, não é? Infelizmente minha vida não foi um Murakami, eu fui um Hemingway, mais precisamente O Velho e o Mar. O velho teimoso... Santiago, se não me falha a memória, pegou um gigantesco pei-”
“Um peixe espada”, cortou o jovem.
“Um peixe espada. Ele fisgou esse peixe e foi arrastado para o mar aberto, bem longe da costa, longe demais, percebe? Santiago tinha aquele animal extraordinário, igualmente forte e lutador, o que o condenou. Pensando melhor, o que o condenou foi a teimosia própria, não a do peixe. Quando ele voltou para a vila o que tinha para mostrar?”
“Apenas o que sobrou depois dos tubarões.”
“Exatamente, apenas o que os tubarões deixaram. Meu peixe foi atacado pelo sistema, pelas horas que fiquei longe de minha família, pelas coisas que ignorei, pela ganância. Mas eu não queria acreditar que teria de escolher. Eu era um super-homem, um administrador nato. Poderia facilmente conciliar minha vida profissional com a pessoal.” Novamente ergueu a mão esquerda: “Esse é o resto do meu peixe.”
“Gostaria que minha vida fosse um Stephen King. Não precisa me olhar com esse espanto na cara, não me refiro aos litros de sangue, aos monstros, fantasmas ou alienígenas anais. Conta Comigo, eis uma lição para carregar. A aventura, a amizade, a magia... e um pouco de ingenuidade. Não tem como ser mais perfeito! Nós gastamos os dias, um atrás do outro, na espera de envelhecer e morrer. Buscamos por distrações para não ficarmos entediados nesse meio tempo, eis a pura verdade. O certo seria viver e não apenas existir. Eu nunca andei nos trilhos do trem para achar um corpo, por assim dizer.”
Enquanto a fila novamente andava, o homem de terno guardou o Kindle e afrouxou o nó da gravata. Os dois tiraram os calçados e jogaram em uma grande caixa, cheia de sapatos, chinelos, sandálias e sapatilhas. Daquele ponto em diante, todos estavam descalços. Mais duas pessoas na fila, um velho e uma mulher na casa dos trinta e sua espera acabaria. Um embrulho tomou conta de seu estômago.
“Meu maior problema são as pessoas. No meio em que vivi, não havia bondade, apenas uma gigantesca arena, onde a lei era matar ou morrer”, ele disse enquanto desabotoava a camisa. “Não há felicidade dessa forma. Não existe tal coisa como pessoas boas num lugar em que você tira suas chances diretamente das mãos de outros.”
“Acho que as pessoas são tão boas quanto a bondade que têm com quem menos gostam. Estamos nivelados no nosso pior. Digo, o que adianta você ser a melhor pessoa com seu amorzinho e um bosta com o resto das pessoas? Nesse caso, você é feito de merda, cara. Do mesmo modo, se você é bom com todos, mas um imbecil com... sei lá, uma garçonete ou um frentista, você ainda é feito de fezes. Puro cocô.”
“Sendo assim, sou uma péssima pessoa. Horrível mesmo.”
“Todos somos.”
Sorriram. Despiram-se ao mesmo tempo, com naturalidade e sem pudor qualquer. Manteve o relógio, entretanto: sem o aperto no pulso, sentia-se nu.
“Obrigado pela conversa. Há anos não tinha algum momento simples assim. Obrigado, de verdade”, ele disse com sinceridade. Olhou para a cabine azul e pensou no Super-Homem, no Doctor Who, na Inglaterra e, surpreendentemente, em um clube lotado de stripers. Estava na sua vez.
“Você é uma pessoa que sabe muito sobre a vida. Eu agradeço pela conversa”, respondeu o jovem, agora descalço e nu. O livro ainda estava em suas mãos, guardando a moeda entre as primeiras páginas.
Caminhou para a cabine, cantando Norwegian Wood em sua mente. Cabine Para Suicídio Nº 19, diziam as palavras pintadas na porta da cabine que lembrava um telefone público de Londres. Funciona com moedas de 25c e 50c, não retorna troco.
Antes de entrar, virou-se e disse ao jovem:
“Se você der tempo suficiente para uma história, ela invariavelmente acabará em morte. Acho que foi o Neil Gaiman, no Sandman.
Hesitou, ainda tinha tempo.
Nah, pensou, o que eu sei sobre a vida?
Apenas com o relógio e a moeda de 50 centavos, entrou na cabine.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Samba, Sampa!

Não gosto de São Paulo. Paulistanos que me desculpem, mas céu azul é fundamental. Aprecio os quinze minutos que faço para a maioria de meus trajetos. Não me simpatiza as três horas de ida ao cinema para um filme de noventa minutos. Abstenho do glamour e das redes abertas vinte e quatro horas.

A cidade é bonita em um flash. Na doce mentira de Caetano, na aspereza de Criolo. São Paulo é uma cidade boa para estar, não ser. Que saia da afirmação, e das sombras, a corja de inimigos. A defesa dos contrates, do múltiplo, do cubismo tudo ao mesmo tempo agora. Nunca desejei as possibilidades. Prezo pela calmaria e outros elementos que não posso comprar nem na capital, nem em parcelas, nem na minha mão é mais barato.

Enquanto me retiro da cidade, retrocedendo ao interior paulista provinciano, patético, próximo, ao alcance das mãos, sem Rede Globo, Bandeirantes, Comandante Hamilton, pergunto-me se um dia a cidade apenas foi. Não situava-se, como a maioria das grandes metrópoles, no crescimento desordenado e caótico, na lotação, na porrada, feia fumaça que faz e destrói coisas belas.

Há víscera no amor e ódio dos paulistanos pela cidade. Desejam esmagá-la sem sair de dentro, não querem expeli-la das entranhas. Não que me abstenha do efeito colérico. Amo São Paulo com uma restrição judicial. Juntos, há mais de trezentos quilômetros de distância. Da garoa à gente boa.

Tentativas não me faltaram para compreender. Retirar de campo o discurso birrento e inflamado. Observar o lado brilhante da vida. Falhei miseravelmente. Não conseguia completar uma frase sem utilizar mas. A adversativa que tudo estraga. Morno, quase quente.

Estaríamos feitos se só o amor não existisse em São Paulo. Mas você que acorda todo dia antes do galo cantar sabe, mesmo que lá no fundo, que falta é o que não falta. Perdoem-me o maneirismo, mas não existe SP no amor.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

miltinho

Entrou no bar e sentou a um canto escuro, o mais escuro e distante. Pensou em dizer algo quando Joana trouxe a cerveja, depois o cinzeiro, então o isqueiro, pensou em dizer mas não disse nada.

Apenas bebeu. Não havia nada para falar e, pensando nisso, não falou. Era uma noite longa e arrastada que começara há alguns dias. Perduraria.

Sentado no canto daquele Clube, com uma estrada para qualquer lugar aberta no peito fundo, esperou o tempo passar. Não era como se o destino já estivesse escrito por deus, nem como se cada um construísse o seu.

Quem faz o destino é o tempo.