quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ternura

Olhei em seus olhos amendoados. Uma pequena lágrima se formou nos meus. “Sinta-se beijada”, disse a ela de maneira tão terna e calma que minha voz falhou na última sílaba. Nossa respiração cadenciada.

O perfume de pêssego irradiava no ar quando ela, perceptivelmente, parecia nervosa. “Me beije, então”, me pediu, quase cerrando os olhos. Dei um passo para trás. Nossas vidas em separação.

Ela chorou na estação derradeira. Entreguei o embrulho de alegrias, risos, festas e pedaços de bolo de chocolate. Era tudo que restava.

Aproximei-me novamente. Toquei seu rosto com a face das mãos. Inclinei a cabeça na sua. O hálito não era doce. “Eu só lhe desejo o melhor. Não importa onde eu estiver. Daquela estrela cintilante lá do céu eu estarei sorrindo”. Sua lágrima escorreu em minha mão. Beijei seu rosto para sentir o gosto. Lágrima de sal.

Segundos que deram silêncio. Meus olhos nos seus aprisionados. O relógio a nossa frente movimentou seus ponteiros. Meus olhos nos seus repousados. “Mande notícias”, falei. “Pode deixar”, mentiu.

Soltou-se o nó de nós. Dois em lágrimas. Coração aos berros. Demos as mãos apertando-as com força. Deixamo-as se desencontrarem. Coração aos pulos.

“Eu te amo”, lhe falei. Com a alma de lágrimas puras. “Eu também te amo”, ela tinha aprendido, então. Tentei sorrir. E as flores, e os barcos, e os cais, foram distanciando, um do outro, um de outro, desatados. Minha vista cansada de esperança. Ela ao longe. Horizonte.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Breves Notas Sobre Mudanças

Dia 01

Querido diário, hoje eu começo a fazer a mudança! Estou animada, tenho tantos planos para a casa nova! Vou ao mercado agora e comprar os produtos de limpeza e mais algumas coisas, como vassoura e rodo. Panos também, vou precisar de muitos panos.
Não posso esquecer da ração para o Chewie.

Dia 02

Ok, sem problemas: apenas um contratempo. Depois de alguns telefonemas, finalmente tenho um um encanador vindo para verificar os canos da casa e ver porque eu não tenho água. A casa está imunda. Voltei ao mercado e comprei produtos para uma limpeza mais profunda. Alguns têm uma caveira no rótulo, ela é até legal! Talvez eu tatue uma no braço, haha.
Sério, fui no mercado duas vezes e esqueci da comida do Chewie. Saco.

Dia 03

No mercado de novo. Comprei canos de PVC. Hoje irão quebrar paredes e trocar canos. Felicidade.

Dia 04

A casa está ainda mais imunda depois das trocas de cano, mas agora eu tenho água! Água limpinha. Hora da limpeza, quero terminar tudo hoje porque amanhã chega a mudança.

Dia 05

Querido diário. Eu estava lavando a sala, com baldes, mangueira, sabão em pó e mais outras coisas, quando o caminhão da mudança chegou. Os filhos da puta deixaram meus livros no chão molhado, quebraram pratos na cozinha e sujaram meu sofá branco com a terra da parede. Já te contei que minha casa mais parece um estudo para engenheiros civis? Todas as minhas paredes estão destruídas e eu posso estudar como se faz o encanamento em uma construção.
Uma coruja entrou pela janela, linda e impinente. O Chewie pulou sobre ela, mas não conseguiu pegá-la. Preciso comprar a comida dele.

Dia 07

ESSA PORRA DE LIMPEZA NÃO ACABA NUNCA!
O Chewie comeu a coruja. Cachorro desgraçado. Sangue para todos os lados.

Dia 08

Casa limpa! Finalmente. Agora só preciso de geladeira, fogão, comida e utensílios para viver como uma mulher moderna e não mais uma neanderthal. Ugh.

Dia 11

Terminei de organizar meus livros. Alguns foram perdidos por causa da água e de um ogro que jogou as caixas em qualquer lugar.
Parece que vou demorar duas semanas para ter internet novamente. Legal.

Dia 13

Faz dois dias que não vejo o Chewie. Finalmente comprei a ração para ele, mas acho que a emoção da caça faz parte da vida dele. Ontem eu limpei duas pombas da minha varanda.
Minha geladeira chegou, toda amassada.  Eu não quero mais essa vida.

Dia 16

Hoje eu fui até o mercado, sentei e chorei. Talvez eu me mude para um dos ambientes que eles têm montado para amostra. É tão confortável.

Dia 20

No dia em que finalmente instalaram minha internet, o gás e meu chuveiro elétrico, descubro que os encanadores fizeram o serviço mais porco de mundo e minha casa transbordou. Todas as paredes estavam em uma cascata de água. TODAS.
Ainda bem que tenho a garantia da geladeira.

Dia 21

Meia noite e meia, estou aqui secando a casa. Acabei de ver os papéis da geladeira boiando, ilegíveis. Amanhã vou até o mercado e ficar um tempo naquela cozinha montada.

Dia 22

Hoje eu vi o Chewie novamente. Ele estava com outros doze cachorros, todos bravos e mal encarados. Eles deixaram um osso na minha porta de entrada. O Chewie caminhou com aquele osso enorme na boca e deixou no meu tapete. Deu meia volta e sumiu novamente pela rua. Eu acho que é um fêmur humano. E acho que foi uma mensagem.
Liguei na loja e não consegui uma geladeira nova. Aparentemente eu preciso dos papéis com assinatura legível.

Dia 28

Faz cinco dias que estou morando no mercado. Eu tenho luz, internet, água e gás, tudo funcionando perfeitamente. E companhia, eu posso falar as pessoas como se fossem visitas em minha casa! De noite, quando está tudo apagado, eu posso escolher em qual cama deitarei e, se ignorar os rosnados do Chewie e seu bando tentando entrar e me matar, consigo dormir muito bem.
Esqueceram um Microondas ligado na tomada.
Hoje eu vou comer algo quente.
Eu posso escutar o Chewie. Acho que ele aprendeu a arrombar portas.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Somos Todos Dorian Gray

A fotografia é a violência da memória. Os olhos que necessitam ver para acreditar. Por isso, salvo na obrigatoriedade dos documentos, me mantenho longe das fotos. No máximo, do lado invisível de quem as faz.

Uma vez escrevi um conto sobre um fotógrafo de família. Talvez a história se remetesse mais a uma época antiga e analógica que, tradicionalmente, um retrato familiar era tirado e exibido ostensivamente em algum lugar de destaque na casa. Um totem da felicidade suprema.

Na história, o fotografo narrava sua maneira de sempre colocar no centro da imagem a família primordial, os alicerces seguido dos filhos seguido dos laços amorosos. Dizia ele que era mais fácil deixar os amores nas pontas. Caso fosse necessário retocar a foto, executava um corte na imagem sem interferir no centro. A edição posterior era costumeira do fotografo que, realizando retratos para famílias há anos, sabia da trivialidade das relações.

Era uma maneira íntima e poética de exteriorizar minha ojeriza pela perversão da fotografia. O avanço digital que retirou a valia dos filmes com doze, vinte e quatro e trinta e seis poses, transformando qualquer suspiro em um flash. Nunca tiramos tantas fotos. Nunca tivemos tanta falta de memória.

Há dez anos atrás, uma câmera digital era quase um sinal de status social. O preço afastava multidões e somente apaixonados por fotografia ou quem ostentava dinheiro adquiria uma. Minha Sansung de 3.2 megapixels – uma das melhores resoluções da época – registrou – muitas vezes mal, diga-se – algumas histórias deste e de anos seguintes. Momentos que eu desejei guardar por sua importância intrínseca. Cenas  em que coloquei amigos e amigas para posarem para mim.

Com o tempo, popularizou. Flashes explodem a cada segundo dos lugares mais inusitados. Aos poucos deixei a máquina de lado, não fazia sentido ter o meu registro. Inicialmente era somente meu, um pedaço enquadrado que desejei conservar, observando-o sempre que possível. Mas fui obrigado a dividir com todos.

Ao menos uma vez você esteve na fotografia digital de alguém sem desejar. Daquele grupo a sua frente no cinema que tirou uma foto sorrindo enquanto você olhava o pano negro nas paredes refletindo sobre a vida. Nos copos erguidos no bar fotografados a cada gole.

Hoje o banal é a glória. Fotos triviais de natureza morta, reuniões, cotidiano automático. Indo dormir, acordando, comendo, cagando, nada mais se faz longe da privacidade de uma lente. Tudo é vigiado por querer. Cada byte mata um pouco da lembrança. Faz a memória biológica deslocada.

Longe da era digital, velhos guardam seus retratos em baús. Relíquias capturadas pela lente com sorte por não sofrerem um acidente da natureza ou um erro na revelação. Fatalidades que poderiam queimar um rolo fotográfico inteiro e perder um registro único na vida.

Hoje somos todos Dorian Gray. Desejando com cobiça que a cada imagem a juventude retida permute de lugar com nossa decadência física. Fotos que preenchem somente uma vida vazia. Imagens que enchem paredes sem plenitude do que é importante. Retratos natimortos. Falsas estátuas de sal com filtro amarelo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

pagou, bebeu

a coisa será rápida, ele disse, a coisa não vai doer não vai doar não vai gemer não vai gamar ninguém vai ver eu tô dizendo, me disse ele, eu tô dizendo que vai dar tempo, que vai ter jeito, que só vão mesmo saber do fato do ocorrido depois do pato já ter assado e o cozinheiro se ter corrido pro meio dágua.

disse o ladrão de aves, de anáguas rosas cuspindo, bêbado, palavras tortas.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Por Vir


Ele sorveu um pouco do café. O líquido amargo desceu por sua garganta e ele pôde sentir os músculos relaxando com o jato de cafeína. Era ridículo, bem sabia, o fato de estar tão viciado na droga que não mais o estimulava: relaxava, como se a própria química de seu cérebro tivesse mudado. Talvez tenha heroína misturada no café, pensou, procurando justificativa para si mesmo.
De repente, sua expressão mudou. Um brilho, o brilho do olhar curioso que apenas as crianças têm o direito de possuir, tomou conta de seus olhos e ele se ajeitou na cadeira, assumindo uma postura mais confortável. Colocou os dedos sobre o teclado e começou a disparar palavras, tecendo a trama do café misturado com heroína. Imaginou toda uma distopia horrível, o pior cenário possível. Uma sociedade ele criou, cheia de controle, de supressão e censura, uma obra digna de meados da década de oitenta, que faria chorar o grande Bradbury. O combustível de suas piras megalômanas não eram, no entanto, os livros que queimavam na temperatura de 451ºF, mas o café, moído ou em grãos. Assistiu, com crescente horror, o fogo que consumia toneladas do grão escuro, sentindo o cheiro doentio do café queimado e destruído. Toda distopia precisa de uma resistência organizada, como um Moriarty precisa de Holmes. Deu vida para os traficantes de café e para os viciados que percorriam as ruas escuras e perigosas das cidades por todo o mundo, procurando o tráfico da nova droga ilícita. Todo um mundo nasceu e morreu em seus dedos.
Mas não estava satisfeito. Não era bom o suficiente. Precisava de uma linha mais ambiciosa.
Apagou as páginas escritas com dois simples comandos e estudou, desanimado, a tela em branco. O café estava frio. A noite avançava em direção da aurora.
Dedos ansiosos procuraram pelas letras certas e ele criou uma combinação única de palavras em corrente, formando frases, parágrafos e páginas. Escreveu e bebeu o café gelado, fazendo uma careta a cada gole. Desta vez, visitou uma Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, manchada pelo sangue de milhões. Nela, um soldado Aliado procurava cruzar a França para encontrar os pais de uma criança sob seu zelo. Era o batido cenário de um mundo infestado por zumbis, as mesmas privações, dificuldades e desconfiança; as escolhas difíceis tomavam conta da narrativa e atos abomináveis marcavam as personagens irreversivelmente. O perigo era outro, no entanto. Os nazistas eram inteligentes e bem treinados, máquinas perfeitas de destruição e capazes de maldades mais chocantes que as dos mortos que caminhavam. Os sobreviventes da terra ocupada ofereciam riscos; era necessário roubar. O soldado e a criança avançavam, sem apoio, sem destacamento, sem esperanças.
Ele parou.
De um minuto para o outro, estava na pele de uma criança que podia trocar os Planos com sua vontade. O garoto vivia cada dia em uma realidade, trocando de casas, famílias e amigos. Mas havia uma pessoa que constante, o farol de sua jornada. Trocou de tantas vidas que se esqueceu quem era.
Não, não estava bom.
Japão, século XVII. Um ronin atravessa o sul do país, deixando para trás um rastro de sangue e perseguição, até encontrar um padre português, clandestino em solo japonês. Ele deveria arrancar seu pescoço e obter perdão para todos seus crimes, mas cria um laço com o europeu: são dois párias daquela sociedade absurda, duas almas renegadas pelo seu tempo e espaço. O ronin decide que precisa ajudar o velho jesuíta alcançar a praia e fugir do shogunato. Mesmo que custe sua vida.
Não, não, não! O que escutava era ainda outra canção. Um zumbido constante ainda dominava sua mente e atrapalhava os pensamentos. Era outra história que pedia para ser contata.
Um grupo de leprosos que fugiam da Peste Negra? Hilário, mas não. A história do mundo manipulada pelos cavalos de grandes generais? Talvez, mas não naquele dia. Cartas trocadas entre dois velhos amigos, um deles morto há décadas?
Eram tantas as opções que ele não conseguia decidir qual delas escutar, qual clamava por sua atenção.
Entre as vozes das histórias de sua cabeça, verdadeira histeria narrativa, ele se deixou cansar, pulando entre uma e outra.
Amanhecia. Naquele dia não houve escrita. A televisão ficou ligada no volume máximo.
Ele abriu uma cerveja e escolheu a poltrona mais confortável e afogou as vozes de sua cabeça.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Amoras

Em silêncio, a luz do aparelho parecia irradiar mais energia, iluminando brevemente o quarto. Os contornos dela se destacavam, pintura lapidada em pedaços pelo azul luminoso. Enquanto os batimentos desciam lentamente, ele imaginou os amantes. Não a palavra que lembra os que amam, mas a acepção de um alguém que, além de estar com um amor, possui outro. Sentiu-se invadido por uma sensação de desgosto ao imaginar a dor de ter outro alguém.

Na escuridão do quarto via uma janela aberta no prédio da frente. De lá, era impossível ver o casal nu neste pequeno espaço, mas ele via a luz acesa no edifício. E se naquele prédio houvesse um amante que, neste momento, ligava para a esposa avisando que o plantão no trabalho se estenderia mais uma hora. Colocando a mão no bocal do telefone e, furtivamente, em provocação, beijasse a outra mulher, a desafiar a esposa que como um cão esperava a chegada do dono.

Tinha os pensamentos mais obtusos em momentos impróprios. Voltou a observar o corpo nu a sua frente pela velada luz do aparelho. A luz tênue parecia enganar os olhos, mas ele a enxergaria mesmo de olhos fechados. Aquele corpo como caminho predileto a percorrer.

Estavam cansados. Fechou os olhos por alguns momentos voltando a ideia dos amantes. Este corpo ao seu lado seria o de outra e ele em breve levantaria, colocaria a aliança, tentaria dar um jeito no cabelo e voltaria para a casa. Não, pensou. Horroroso demais.

Não que fosse um exemplo perfeito de bons costumes. Era assim que era e assim se satisfazia. Preferia ela por inteiro do que metades disformes que nunca se encaixariam. O sexo seria um pequeno detalhe. Mas e os passos furtivos? As histórias supostas e projetadas? A mentira de cara limpa com sabonete? Até quando um homem ou uma mulher suportaria guardar um segredo assim sem achar que está ferindo aquele que supostamente ama?

A mulher adormecera em seu peito enquanto estava em devaneios. A respiração cadenciada lhe dava calma nesta noite de calor em que a janela continuava aberta. Mesmo que ela tivesse medo de insetos, era impossível evitar.

Ele se sentia leve por estar com ela. Lentamente tateou o caderno de anotações do criado mudo. Com a caneta em punho escreveu: qual a validade de um amor feito de mentiras se há tanta beleza no amor que não se esconde atrás de segredos?. Grifou a palavra segredos por duas vezes e pousou o caderno no criado mudo novamente. Virou para o lado, dando-lhe um beijo na testa. Amanhã trabalharia melhor nesta ideia.

08 de dezembro de 2012

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

os caras do clube

Quem sabe quem são os caras do clube? De onde vêm, aonde vão, como, quando e porquê? Aposto que você não sabe bem. Talvez, numa noite alta, madrugada, com meia dúzia de álcool na cabeça e na calçada, você se pergunte o que todos se perguntam, uma hora ou outra, tão secreta e silenciosamente que nem se dão conta: cadê a entrada? Onde é esse clube?

Quem se associa ao salão em penumbra de onde brota a constante música, donde exala cerveja e uísque, onde se ouve jazz e twist bossa nova e rock, quem caminha por porta adentro esquece por breves momentos o porta afora do mundo.

O clube é um mundo à parte. Quem são os caras do clube, as mulheres, as raras crianças que entram dia alto sol a pino para tomar um sorvete, um suco, milkshake e queijo quente? Os pequenos ratos, baratas e traças dos fundos, das latas de lixo, almoxarifado? Quais são os cachorros e gatos que vez ou outra arriscam focinho e patas pra dentro daquela casa?

Quem é a mulher que serve mesas, bancadas, que enche cervejas e varre a rua defronte à entrada?

O clube é um lugar que você só encontra se vive lá. Ou se, por outro lado, deixa de procurar.

Os caras do clube estão em todas as partes, em todos os bares, quietos, calmos, alguns com angústias fundas que os machucam do dia à noite, alguns com pouquíssimo peso em suas costas. Os caras do clube são poucos, alguns, todos e quaisquer caras, mas dificilmente vais saber.

O cara do clube pode ser você.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Mesa de Jogo


Robert gostava de jogar pôker. Normalmente, era a primeira característica que as pessoas notavam nele e espalhavam nas conversas de travesseiro, ou então como lavadeiras de roupa divididas apenas por um muro baixo. No entanto, nos primeiros anos, não era algo usado contra Robert. Sua família não reclamava para terceiros ou era privada de bens materiais. Talvez Robert estivesse mais presente no seio familiar, não fosse o carteado, mas eles sabiam que essa era apenas uma doce ilusão: Robert era viciado em jogos e não apenas em pôker. Pelo menos, caro leitor, ele não perdia dinheiro para desconhecidos. Bem, perdia pouco dinheiro, o suficiente para ser anotado no orçamento como gastos com hobby.
A noite já corria longa quando a mesa atingia o ápice do jogo, com todos gritando e arremessando fichas no centro do tecido verde, fumando compulsivamente charutos e entornando grandes doses de álcool. Nesses momentos, a energia misteriosa e empolgante que se formava diante da excitação latente de cada jogador - do desespero dos endividados ao blefe dos que tinham uma péssima mão mas também possuíam lábia - impulsionava a vontade de viver de Robert e, cada vez mais, ele passou a ansiar por esses momentos.
Quando tinha dois, três Ás na mão podia sentir seu coração disparar, não pelo dinheiro, mas por estar no jogo, por fazer parte da mesa em que estava sentado e por ter impacto naquela rodada. Ele gesticulava, batia as palmas das mãos na madeira e gritava em plena força, urrando como um primata que um banquete fácil e farto.
Por muitos anos ele viveu pelo pôker, dentro do estilo de vida exigido. E, como você deve imaginar, isso teve um custo. Não podia ser encontrado junto da família e raramente comparecia em reuniões, afastando-se progressivamente de parentes e amigos. Envelheceu como um estranho em seu próprio teto, eventualmente.
Até o momento em que a fase do carteado passou.
As pessoas comentavam pela cidade que o velho Robert não mais jogava. Alguns diziam que suas mãos tremiam e por isso ele não conseguia mais segurar as cartas; outros que ele já tinha dinheiro suficiente para se aposentar e viver como um magnata.
A verdade é que o jogo havia perdido o sentido. Não havia mais a emoção e adrenalina… era um jogo vencido, conquistado além de qualquer possibilidade.
Os dias seguiram de forma vazia, sem sabor, sem cor.
Cinco anos percorreram seu caminho e o velho Robert não encostou em uma única carta. Ficou longe do três de copas, da rainha de paus - que ele gostava de chamar de “rainha trans” - e do Ás de ouro. Absteve-se das fichas e das longas noites, da nuvem de tabaco queimado que era formada nos mais diversos porões da cidade. Durante esse tempo, o velho Robert, com os óculos fundo-de-garrafa e o sorriso de criança, participou dos eventos em família, foi em todas as festas de aniversário e se surpreendeu com alguns netos dos quais não tinha quase conhecimento. Tudo parecia correr bem. Ao menos até o momento em que ele sumiu por dois dias seguidos.
No momento em que retornou, Robert viu os carros policiais encostado no meio fio e seu coração parou por um breve segundo. Ele correu para dentro de casa, quase sem fôlego e sentindo o quadril enferrujado pelas décadas. “O que foi? Aconteceu algo? Você está bem, Marta?”, perguntou para a mulher.
Marta, por sua vez, deu sua resposta na forma de um forte tapa que deixou impressa a marca vermelha de sua mão no rosto do velho. “Você é o problema, Robert! Por onde você andou, homem? Foram mais de dois dias sem notícia sua…”, conseguiu dizer antes de deixas as lágrimas - de alívio e raiva - escorrerem pelo rosto e lavar qualquer outra palavra.
Robert olhou, confuso, para o relógio que tinha no pulso - presente de seus filhos - mas não conseguiu enxergar as pequenas letras do calendário. Maldita tecnologia para jovens. Havia realmente desaparecido por dois dias inteiros? Para ele, ficara fora de casa por apenas algumas horas, talvez a tarde inteira. Foi então que viu a hora: meio-dia. Impossível! O relógio da cozinha marcava o meio da tarde quando saiu para uma breve caminhada, como poderia ser? Olhou para as mãos e estudou o tabuleiro de xadrez que segurava, sem saber como ele havia parado em sua posse. Lembrava, no entanto de ter jogado pôker com alguém, talvez uma mulher. Arrumou os óculos no rosto e olhou para a esposa, tentando esconder a confusão no próprio olhar.
“O que e isso?” Marta soluçava enquanto passava a mão carinhosamente em seu braço, apertando algumas vezes para ter certeza que ele estava realmente ali, em pé na cozinha.
“Nada, meu bem. Não se preocupe”, abraçou a mulher com força, tentando passar tranqüilidade no calor de seu corpo. Mas seus olhos, leitor, seus olhos eram puro terror.
Nas semanas que seguiram seu “episódio” - ao menos era esse o nome que deram os médicos - Robert se recusou a encostar no tabuleiro de xadrez. Escutava, entretanto, uma voz no fundo de sua mente, que clamava por atenção. Cedeu aos poucos, deixando a voz entrar no cérebro cansado e enfiar as garras em seus pensamentos, dirigindo os dedos ávidos para estudar os peões brancos antes que ele percebesse o que estava fazendo. O tabuleiro em si era de beleza estonteante, detalhado em cada centímetro da superfície com imagens de batalhas em uma realidade quase impossível. As peças, apesar do tabuleiro ser de madeira, estavam esculpidas em mármore e representavam soldados, cavaleiros e nobreza; a beleza das peças era igualmente indescritível. Naquele mesmo dia, o velho Robert saiu de casa e comprou seis livros sobre xadrez. Ele andou novamente pela estrada da obsessão e a estratégia sugou as horas de seu dia. Dois, três, oito movimentos eram previstos por ele, conforme se aprofundava no estudo dos livros. Robert leu estudos militares e manuais do exército, bloqueou as reclamações de Marta e as intervenções da família. Existia apenas os peões, bispos e torres. As 64 casas eram a sua vida e Marta permanecia em segundo plano.
Entrou em campeonatos, acumulou vitórias, chorou derrotas. Novamente, cinco anos se passaram. Novamente ele sumiu por dois dias seguidos, desta vez sem qualquer alarde por parte de Marta. Ele voltou, limpo do xadrez, como se o antigo jogo de estratégia fosse uma droga. O jogo, assim como acontecera com o pôker, perdera o apelo. Era mais um campo conquistado e arrasado, não havia mais nada para pilhar naquela guerra. Nada mais para provar. Sem maior atrativo.
Ele percebeu que sua vida começava a funcionar em ciclos de cinco anos, cada ciclo era marcado por um jogo. Depois do xadrez, foi o gamão e, cinco anos mais tarde, a dama. Cada jogo era ultrapassado depois que ele sumia por dois dias inteiros, algumas vezes mais. Durante o período de cinco anos do ludo, Marta faleceu e Robert afundou-se no mundo do jogo ainda mais. Esquecia-se de comer, jogava partidas inteiras sozinho, assumindo uma cadeira diferente para cada cor do jogo pueril.
Go, pachisi, xadrez chinês e buraco. Robert já somava mais de um século de vida, mas parecia que seu corpo havia estacionado no sexagésimo aniversário.
Observe, leitor, veja o ancião parado diante da porta vermelha no centro velho da cidade. Esta chovendo torrencialmente e o vento castiga o rosto do simpático Robert, molhando seus óculos além de qualquer possibilidade de visão. Em suas mãos, como de costume, um tabuleiro permanecia seco por camadas de tecido e sacolas plásticas. É o fim de uma era, caro e fiel leitor, o encerramento de mais cinco anos. Ajeite-se em sua poltrona favorita e abra bem os olhos.
“Entre logo, Robert. Não morra afogado nessa chuva”, chama a voz fina do outro lado da porta antes de soltar uma risada que fez a alma do velho se encolher. Odiava quando ela soltava aquela risada, um barulho parecido com ossos se batendo dentro de um saco de pano. “Eu já coloquei a mesa.”
Ele suspirou e entrou, mal conseguindo suprimir a empolgação que tomava conta de seu corpo. O lugar estava confortavelmente quente e ele viu uma mesa no centro do cômodo simples. Havia duas dúzias de cerveja em um isopor cheio de gelo; pacote de petiscos e um rádio, que tocava Tommy, do The Who. Robert desembrulhou o tabuleiro e o colocou no centro da mesa, secando as lentes antes de se sentar. “Estou escutando esse disco há mais de um ano, sem parar um segundo”, ela disse com a voz fina, quase cômica. “Depois que falei com o Keith Moon, simplesmente não consegui parar de ouvir essa banda. Eles são ótimos.” Cantarolou um pouco da letra.
“Você é estranha”, disse Robert. “Eu queria conhecer o Moon, gostava dele durante minha época. Estava com saudades de você.” Estava sendo sincero: adorava a companhia daquela mulher… até onde ela poderia ser ela. E - bom Deus! - como jogava bem! Era uma oponente à sua altura, como poucos poderiam ousar jogar contra o velho Robert. Na verdade, havia emoção apenas quando estava jogando contra ela.
“Eu também estava, velho. Sabia que esse é o ponto alto dos meus dias? Algumas vezes… ate torço por você”, abriu uma cerveja e bebeu.
“Como está a minha Marta?” Alcançou uma cerveja gelada.
“Aguardando. Ela queria vir, mas achei que iria te atrapalhar.”
“Fez bem, fez bem.” Gostaria de vê-la, mas a presença da falecida companheira iria realmente tirar sua atenção. Aquela era uma partida importante, leitor, não julgue o velho protagonista.
Robert tirou o tabuleiro da caixa de papelão e montou as peças com minucioso zelo. “Sabe jogar esse?”, ele perguntou para ela e estudou seu rosto, surpreendente comum e cheio de energia. Bochechas rosadas e gordas balançavam conforme ela falava.
“O Jogo da Vida?”, perguntou Morte, “Como ninguém!”, e sorriu novamente.
“Então vamos a isso logo. Mais cinco anos?”, barganhou.
“É o nosso acordo, não? Escute, Robert, o que você vai fazer se perder desta vez?”
“Morrer, não é?” Ela concordou sem hesitar. “E acho que assombrar tabuleiros de Ouija, o que mais poderia fazer?”
Ela soltou novamente aquela terrível risada e começaram a partida, como dois velhos amigos.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O ponto entre as pontes


Na paisagem estéril daquela cidade, bem naquela parte onde as pontes se cruzam, Cris esperava. O que ela esperava exatamente, ninguém sabia, o que todos sabiam é que esperava. Insistentemente.

Quando da primeira vez que se posicionou naquele ponto, ninguém entendeu o que uma mocinha tão pequena fazia ali parada. O local era perigoso e mal freqüentado e logo formou-se uma platéia dos mais diversos tipos de marginais. Nenhum deles sabia como agir. Não lhes era usual lidar com estranhos incautos, todos sabiam como a banda tocava por ali.

Não tardou e um dos pilantras se ergueu como o líder da escória e decidiu, aclamado pelos demais, ir até lá e inquirir a moça.

Durante todo o tempo do conselho dos salafrários Cris permaneceu quieta, alheia ao mundo ao seu redor, apenas atenta a um pequeno ponto entre as pontes, por onde mal passava uma criança. Ela nunca desviava os olhos dali. Em nenhum momento percebeu a ameaça e nem notou a fala e posteriormente os gritos do líder definido da cambada.

O indigente mor não acreditava naquilo. Tão firmemente se impusera como líder e agora passava tanta vergonha diante daquela mocinha. Não podia ter mais que 11 anos, seu corpo ainda era o de uma criança, o que era um grande problema para ele. Fosse uma mulher feita e ele poderia surrá-la, violá-la, matá-la, o que fosse preciso e – assim – recuperar a moral perdida pela humilhação. Gritou mais um pouco com ela. Ela nem parecia notá-lo. Precisava parar com isso, gritar com uma criança já era ruim, com uma menininha então era inaceitável do ponto de vista da “comunidade”. 

Não havia o que fazer, voltou para o grupo resignado e lhes disse que a criança era louca. Incrivelmente eles aceitaram e a deixaram em paz. A partir deste dia ela vinha sempre antes do nascer do sol e partia só tarde da noite. No tempo que ficava ali, apenas olhava atenta para o pequeno ponto entre as pontes, nada mais. Assim foi por cinco anos.

No dia em que tudo mudou algo diferente já se avizinhava logo quando Cris chegou. Havia uma neblina, uma névoa tão forte quer era impossível enxergar mais de um metro a frente. Cris – agora já uma moça, mas ainda com o corpo de menina – parou no mesmo lugar e olhou para o mesmo ponto entre as pontes, só que desta vez não havia o que olhar. Ela não entendeu. Procurava o ponto com seus olhos. Começou a ficar visivelmente desesperada, pois nada via. No ápice de seu desespero andou para a frente em busca do ponto. Primeiro relutante, depois decidida. Por fim enlouquecida. E correndo, como só pode correr quem está em busca de algo. Ela caiu no vão entre as pontes e morreu, sem nunca haver alcançado o ponto.

Seu corpo foi encontrado horas depois por um grupo usual de craqueiros que já a conheciam. Eles a levaram até o lugar onde ficara sempre para ser velada. Todos os freqüentadores do bairro, aquela escória que um dia havia a tentado enxotar, todos eles foram à “cerimônia” prestar sua homenagem.

E para que o local dela não ficasse para sempre deserto e desguarnecido o grupo que a havia achado resolveu passar suas “atividades” para o local, onde hoje fumam pedra e discutem calorosamente sobre o que a garotinha solitária procurava no ponto entre as pontes, enquanto eles mesmos olham e buscam suas respostas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

clariciano

A sala de jantar limpa, as frutas que escolhi para você, o Crepusculário de Neruda marcando um poema que gosto. Abro minhas anotações, escrevo: “por que devo esquecer sua presença, se ainda nem pude te amar?”. Eu não sou um poeta, autor das coisas fugidias.

Mantenho o lápis no papel, mas observo a mim mesmo. Uma figura silenciosa fazendo uma anotação. Prossigo: “esquecer as sombras dos lençóis desarrumados, se todas as noites me deito na cama feita, sozinho”, eu rio da situação. Sou o riso lacônico e irônico em meio ao que parece caótico.

Dizem que poetas projetam o que não vivem no papel. Vida banal, perdida, apoio para congratulações por suas narrativas. Eu não gostaria de sofrer. Queria ser poeta que não fizesse versos para a dor que deveras sente. Eu não gostaria de ser poeta.

Prossigo para a próxima estrofe: “das flores que me lembram do seu cheiro, você que já não sei se é lar ou doce veneno”. Rabisco esses versos, deus, penso, como sou romântico. Não quero ser poeta.

Largo o lápis e vou até a frente de casa, recordo que a maioria dos poetas falam sobre a brisa, a sensação do vento, bobagens. No instante que fiz a primeira estrofe senti uma dor. Lembro de Menotti Del Pichia, versos que já contei, “veneno que se bebe em rútilos cristais e sabendo que mata eu quero beber mais”.

Está feito. Não sou poeta de escrever versos que encantam. Só funciono com tragédias, mal escritas, simuladas. Não sou de verdade. Um poeta deveria ser genial, saber o que faz, não eu.

Nunca eu. Não me importa o uso desse adverbio. Mesmo que sisudo, mesmo que pesado. Há horas que não gostaria de ser poeta. Não gostaria de ser ninguém. No fim, sempre sou eu mesmo.

Não quero prosseguir com o poema, tenho medo de seu fim. Desejo que suas palavras nunca se completem, mantendo em mim a ilusão como fonte, um cais. Negarei até não mais negar o veneno escorrendo das veias.

Estou triste. Sempre fui triste. Poeta, autor de coisas fugidias. Amanhã tudo se repetirá. Verei as nuvens no céu e escrevei metáforas como se fossem de algodão.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

tivemos sorte

há quanto tempo não se vê poema
nesse clube de espíritos famintos?
ha quanto tempo tudo que eu sinto
se evola antes de qualquer escrito?
a quanto tempo existo?
a quem importa isso?
aurora violeta bomba raio-x
igreja cristo

Joana estava declaradamente cansada. Temporada era difícil, ela dizia, férias e ano novo, tudo difícil.

- Joshua, por favor, tira esse bêbado do bar que eu não aguento.

Pela porta afora, Clube em ano novo, foi-se a poesia.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Mil Sóis

“E se esse fosse nosso último encontro?”, ela perguntou. Era linda e isso, essencialmente, era o que passava em sua mente, nada mais: encoberta por uma nebulosa formada por martinis e scotchs, ele não podia formar pensamentos coerentes no presente momento, ao menos era no que acreditava. Fazia anos que não a via e, para sua surpresa, daquela garota com ranho escorrendo pelas narinas uma musa havia sido esculpida, capaz de cultivar os mais belos poemas líricos que uma pena poderia conceber.
“Por que diabos seria a última vez?”, perguntou com a voz embargada.
“Estou pegando um avião daqui algumas horas, para… para a União Soviética! Descobriram que sou uma espiã dos comunistas e vou me abrigar atrás da cortina de ferro. Nunca mais poderíamos nos ver, seria perigoso…”, ela sorria com o calor de mil sóis. Podia vê-la na pele de Ingrid Bergman em Casablanca, outro cenário mesmo situação. Paris tinha uma mística mais atrativa, mas Moscou não deixava de ser interessante. Ilsa… eu costumava saber isso. Porra, estou bêbado… Deus, como é linda!
“Uma idéia besta. Estamos em pleno século vinte e um”, saiu como uma só palavra, vintum, “e não existe mais nenhuma cortina no leste europeu. E a U.R.R.S caiu, caramba!”
“Por todo a Europa do Leste? Nenhuma cortina?”
“Não. As pessoas acordam no primeiro raio de sol por lá, não sabia?”
Os dois deram uma risada alta e ele deixou um pouco de scotch sair pelas narinas, sentindo o forte ardor. Os Beatles cantavam sobre a revolução e a música se misturava ao som de algumas dezenas de vozes, todas animadas, todas cuspindo palavras amigáveis ou tentando convencer alguém a ir para a cama. Ela parou por alguns segundos e balançou a cabeça ao ritmo da batida e bebeu um pouco mais da cerveja que esquentava no balcão do Clube. Ergueu a cabeça e tocou no cabelo do velho amigo, empurrando uma mecha negra que caía sobre a bochecha esquerda. “Você está bem diferente.”
“Eu tive de crescer. É que devemos, não é? Você está bem diferente também, está linda.” O elogio saiu natural e ele não sentiu qualquer indício de vergonha. Você sabe como é, seu corpo afogado no álcool não abre espaço para sentimentos mundanos como vergonha.
A mulher corou no mesmo segundo e recolheu a mão. “Obrigada. Eu era bem gordinha na nossa época.”
“Não foi isso o que eu quis dizer.”
“Tudo bem, estou ciente disso, de verdade. Todos devemos crescer uma hora. No colégia éramos grudados e você me conhecia como ninguém. Acho que nunca me senti tão segura com outro alguém, mesmo hoje”, ela rodou com o dedão a aliança que pesava no outro dedo. “Por que nos afastamos? Eu não consigo me lembrar.”
Ele brincou com o copo, enxugando um pouco do suor que escorria pelo vidro e jogou algumas castanhas na boca, mastigando lentamente. “Também não recordo”, respondeu por fim. “Você cresceu, eu suponho, e eu não. Simples assim. Eu continuei a ouvir Led Zeppelin e Beatles e a sonhar com a fama que eu ganharia com minha banda, lendo Tolkien e King, enquanto você começava a usar maquiagem e conhecer caras mais legais. Caras com carros. Ou motos.”
“Isso não é crescer, é algo impossível de definir. Acho que foram as outras garotas falando em minha cabeça, mostrando esse outro lado que eu poderia ter, uma outra garota que poderia ser. Maquiagem, carro, festa, sexo… coisas fora do meu alcance, eu pensava. Não poderia ser feliz com isso tudo na cabeça. Eu acordei e resolvi que a menina que gostaria de ser estava presa em uma jaula íntima, uma calabouço dentro de minha cabeça.”
“E eu tinha a chave.”
Estudou seu rosto por alguns momentos. “Odeio quando você coloca palavras em minha boca.”
“Odeio quando você deixa tudo subentendido e me dirige esse cinismo.” Entornou o que sobrava da bebida e praticamente jogou o copo contra o balcão, pedindo mais uma dose. Abriu a boca e desistiu, franzindo a testa. “Desculpe, eu não preten-”
“Tem razão.” Ele parou de falar e a encarou, sério. “Me afastei porque nunca poderia ser quem gostaria estando perto de você. De repente, eu era a garota que você sonhava, uma estranha para mim mesma. Entenda, por favor.”
A bebida chegou e o bartender disse qualquer coisa sobre ter cuidado com os copos, ele acenou com a cabeça - sinal de entendimento e pedido de desculpas - e deu outro grande gole. “Entendido. Era uma péssima influência para você.”
“Não, jamais uma má influência. Eu diria… bom, eu diria que era uma paixão juvenil.”
“Sério?”
“A mais pura verdade. Avassaladora, como aqueles tufões que encontram incêndios e destroem qualquer coisa no caminho. Eu te amava com todas as minhas convicções, mas nunca vi um único sinal de que era correspondida. E cresci, acho. Fui para longe, me casei, fui promovida. O pacote todo, qualquer clichê que você quiser mencionar.”
Sentia-se ainda mais perdido na nebulosa mental. “E é por isso que estamos aqui?”
“Estamos aqui porque eu me arrependi.”
“Arrependida?”
Ela mordeu o lábio e qualquer sinal de ira foi embora. Queria beijá-la naquele instante, entrelaçar-se no corpo despido da mulher e se perder em suas curvas, ignorar que ela estava comprometido ou que havia ferido seus sentimentos tantas vezes no passado. Queria apenas sentir seu sabor, impregnar-se no seu cheiro suave. “Às vezes acordo no meio da noite e escuto um ou outro trovão. Algumas vezes chove, outras não. Mas em todas elas eu me levanto da cama silenciosamente, preparo um café e fico olhando pela janela por longas horas, relembrando todos meus erros, contando nos dedos das mãos os relacionamentos vazios que tive e porque nunca superei o que senti por você. De qualquer ângulo que eu analise, você é a raíz de todas as minhas angústias. Resolvi que deveria te encontrar e ver como sua vida transcorreu. Eu te devia isso, acho. Uma espécie de encerramento. E uma desculpa sincera.”
Desculpa, saboreou a palavra. Estamos repetindo essa palavra inúmeras vezes, não? Era um gosto insosso, vazio. Sentia apenas a palavra e não o sentimento a ela ligado, como se ela estivesse naquele lugar apenas para fugir do tédio que sentia.
“Aprendi muito nesses anos”, a mulher continuou, “e minha lição mais valorosa foi a necessidade que senti em te buscar, em ver seu rosto novamente. Diga algo, por favor.”
Havia muito para digerir. Todo o tempo que havia passado sentindo-se isolado após perder a única amiga - e primeiro amor - de sua juventude, as longas horas sentado, enterrado em algum livro, ocupando a cabeça para tentar esquecer a garota que agora o ignorava. Ele queria ficar sobre as próprias pernas e fazer um discurso humilhante, culpar a bela mulher por todas as derrotas em sua vida miserável. Mas essa era uma atitude reservada para os protagonistas de Hollywood. Na vida real, ele refletiu, as pessoas raramente dizem o que realmente querem vomitar nos ouvidos ao seu redor. Ele abriu a boca e disse: “O que aprendi nesse meio tempo foi que o melhor tratamento para alguém que vê sangue na própria urina é mijar com a luz apagada.”
Ela sorriu um sorriso amarelo e endireitou as costas no banco de madeira. “As pessoas precisam se despedir todas as vezes, era o que estava falando antes. Sempre pode ser a última vez que você estaria encontrando alguém. E se eu morresse dormindo, ou estivesse indo para a lua? Você não se despediria de mim se soubesse que nunca mais me veria?”
“Seria a última vez que nos veríamos?”
“Seria”, ela agora sorria com sinceridade.
“Eu não diria ‘tchau’.”
“Não?”
“Não, eu diria para você se foder. Bem fundo.”
Explodiram em risadas e ela continuou, depois de recuperar o fôlego, a tecer cenários que justificariam sua permanente ausência do planeta e como seria importante ele se despedir pela última vez. Pelo resto da noite, foram novamente os jovens apaixonados que estavam perdidos em algum lugar, fundo nos labirintos de condução social que agora eram suas personalidades. Conversaram e beberam, sorriram e se abriram. Ela contou sua vida, ele reclamou dos últimos anos; contaram de seus casos e narraram os acontecimentos engraçados, até o momento em que atingiram o lugar estranho que existe em todas as conversas, onde não há nada mais a ser dito e as pessoas permanecem encarando o próprio copo por um longo período de tempo.
“Sobre o que eu disse antes, o motivo que te procurei…”, ela acariciou seus dedos. Um toque leve e macio, ainda assim com o peso de cinco mil bombas atômicas.
Ele retraiu a mão, desviando o olhar dos olhos penetrantes da mulher e nada disse. As antigas feridas sangravam. Era Casablanca novamente. Ele não teria a garota, mas saberia sempre que foi por ela desejado. Isso teria de ser suficiente.
“O que você esta pensando?”, ela perguntou, depois de um longo silêncio entre eles.
“Que scotch é uma merda.”
“Hum…”, respondeu. “Eu não saberia dizer o que é um scotch, mas deve ser realmente muito ruim.”
Ele se levantou, deixou sobre a madeira úmida do balcão uma quantia que considerou suficiente e, cambaleando levemente, olhou para o relógio. “Tenho de ir. Eu te ligo outro dia”, prometeu antes de começar a andar para a saída, sem se despedir.
Permaneceu sentada, olhando para a costas do velho amigo que se afastava. “Ei!”, gritou e todos os presentes se voltaram para ela. “Vá se foder!”, berrou o mais alto que pôde.
“Bem fundo!”, respondeu. O homem sorriu e acenou de volta antes de sair pela porta e desaparecer para sempre.



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

(isso não é literatura)

Merda que sou, ignorei quando o relógio me avisou que era meia noite da quarta - feira. "Faço a revisão final do texto amanhã". Dormi mal, acordei cedo, almocei, não me recordo o que fiz depois, dormi, acordei as dez horas da noite com a boca seca e se faminto "Coloque o texto amanhã cedo, um pequeno atraso não fará diferença". E fui assistir o primeiro filme do ano, um clássico, Quanto Mais Quente Melhor, com minha pequena.

O texto pronto, composto e recomposto em meados de dezembro não foi postado pelo pecado capital da preguiça. De um escritor errôneo que, mesmo desejando ter um método - escrever todos os dias como o Ieiri - deixa a mesa pronta mas não aparece para o banquete.

Sou um idiota. Deixo esta nota como declaração de culpa, não falta de ficções. Na descrença de que, indo por esse caminho, vou terminar morto de fome vendendo restos de poemas no metrô da linha azul.