sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Mil Sóis

“E se esse fosse nosso último encontro?”, ela perguntou. Era linda e isso, essencialmente, era o que passava em sua mente, nada mais: encoberta por uma nebulosa formada por martinis e scotchs, ele não podia formar pensamentos coerentes no presente momento, ao menos era no que acreditava. Fazia anos que não a via e, para sua surpresa, daquela garota com ranho escorrendo pelas narinas uma musa havia sido esculpida, capaz de cultivar os mais belos poemas líricos que uma pena poderia conceber.
“Por que diabos seria a última vez?”, perguntou com a voz embargada.
“Estou pegando um avião daqui algumas horas, para… para a União Soviética! Descobriram que sou uma espiã dos comunistas e vou me abrigar atrás da cortina de ferro. Nunca mais poderíamos nos ver, seria perigoso…”, ela sorria com o calor de mil sóis. Podia vê-la na pele de Ingrid Bergman em Casablanca, outro cenário mesmo situação. Paris tinha uma mística mais atrativa, mas Moscou não deixava de ser interessante. Ilsa… eu costumava saber isso. Porra, estou bêbado… Deus, como é linda!
“Uma idéia besta. Estamos em pleno século vinte e um”, saiu como uma só palavra, vintum, “e não existe mais nenhuma cortina no leste europeu. E a U.R.R.S caiu, caramba!”
“Por todo a Europa do Leste? Nenhuma cortina?”
“Não. As pessoas acordam no primeiro raio de sol por lá, não sabia?”
Os dois deram uma risada alta e ele deixou um pouco de scotch sair pelas narinas, sentindo o forte ardor. Os Beatles cantavam sobre a revolução e a música se misturava ao som de algumas dezenas de vozes, todas animadas, todas cuspindo palavras amigáveis ou tentando convencer alguém a ir para a cama. Ela parou por alguns segundos e balançou a cabeça ao ritmo da batida e bebeu um pouco mais da cerveja que esquentava no balcão do Clube. Ergueu a cabeça e tocou no cabelo do velho amigo, empurrando uma mecha negra que caía sobre a bochecha esquerda. “Você está bem diferente.”
“Eu tive de crescer. É que devemos, não é? Você está bem diferente também, está linda.” O elogio saiu natural e ele não sentiu qualquer indício de vergonha. Você sabe como é, seu corpo afogado no álcool não abre espaço para sentimentos mundanos como vergonha.
A mulher corou no mesmo segundo e recolheu a mão. “Obrigada. Eu era bem gordinha na nossa época.”
“Não foi isso o que eu quis dizer.”
“Tudo bem, estou ciente disso, de verdade. Todos devemos crescer uma hora. No colégia éramos grudados e você me conhecia como ninguém. Acho que nunca me senti tão segura com outro alguém, mesmo hoje”, ela rodou com o dedão a aliança que pesava no outro dedo. “Por que nos afastamos? Eu não consigo me lembrar.”
Ele brincou com o copo, enxugando um pouco do suor que escorria pelo vidro e jogou algumas castanhas na boca, mastigando lentamente. “Também não recordo”, respondeu por fim. “Você cresceu, eu suponho, e eu não. Simples assim. Eu continuei a ouvir Led Zeppelin e Beatles e a sonhar com a fama que eu ganharia com minha banda, lendo Tolkien e King, enquanto você começava a usar maquiagem e conhecer caras mais legais. Caras com carros. Ou motos.”
“Isso não é crescer, é algo impossível de definir. Acho que foram as outras garotas falando em minha cabeça, mostrando esse outro lado que eu poderia ter, uma outra garota que poderia ser. Maquiagem, carro, festa, sexo… coisas fora do meu alcance, eu pensava. Não poderia ser feliz com isso tudo na cabeça. Eu acordei e resolvi que a menina que gostaria de ser estava presa em uma jaula íntima, uma calabouço dentro de minha cabeça.”
“E eu tinha a chave.”
Estudou seu rosto por alguns momentos. “Odeio quando você coloca palavras em minha boca.”
“Odeio quando você deixa tudo subentendido e me dirige esse cinismo.” Entornou o que sobrava da bebida e praticamente jogou o copo contra o balcão, pedindo mais uma dose. Abriu a boca e desistiu, franzindo a testa. “Desculpe, eu não preten-”
“Tem razão.” Ele parou de falar e a encarou, sério. “Me afastei porque nunca poderia ser quem gostaria estando perto de você. De repente, eu era a garota que você sonhava, uma estranha para mim mesma. Entenda, por favor.”
A bebida chegou e o bartender disse qualquer coisa sobre ter cuidado com os copos, ele acenou com a cabeça - sinal de entendimento e pedido de desculpas - e deu outro grande gole. “Entendido. Era uma péssima influência para você.”
“Não, jamais uma má influência. Eu diria… bom, eu diria que era uma paixão juvenil.”
“Sério?”
“A mais pura verdade. Avassaladora, como aqueles tufões que encontram incêndios e destroem qualquer coisa no caminho. Eu te amava com todas as minhas convicções, mas nunca vi um único sinal de que era correspondida. E cresci, acho. Fui para longe, me casei, fui promovida. O pacote todo, qualquer clichê que você quiser mencionar.”
Sentia-se ainda mais perdido na nebulosa mental. “E é por isso que estamos aqui?”
“Estamos aqui porque eu me arrependi.”
“Arrependida?”
Ela mordeu o lábio e qualquer sinal de ira foi embora. Queria beijá-la naquele instante, entrelaçar-se no corpo despido da mulher e se perder em suas curvas, ignorar que ela estava comprometido ou que havia ferido seus sentimentos tantas vezes no passado. Queria apenas sentir seu sabor, impregnar-se no seu cheiro suave. “Às vezes acordo no meio da noite e escuto um ou outro trovão. Algumas vezes chove, outras não. Mas em todas elas eu me levanto da cama silenciosamente, preparo um café e fico olhando pela janela por longas horas, relembrando todos meus erros, contando nos dedos das mãos os relacionamentos vazios que tive e porque nunca superei o que senti por você. De qualquer ângulo que eu analise, você é a raíz de todas as minhas angústias. Resolvi que deveria te encontrar e ver como sua vida transcorreu. Eu te devia isso, acho. Uma espécie de encerramento. E uma desculpa sincera.”
Desculpa, saboreou a palavra. Estamos repetindo essa palavra inúmeras vezes, não? Era um gosto insosso, vazio. Sentia apenas a palavra e não o sentimento a ela ligado, como se ela estivesse naquele lugar apenas para fugir do tédio que sentia.
“Aprendi muito nesses anos”, a mulher continuou, “e minha lição mais valorosa foi a necessidade que senti em te buscar, em ver seu rosto novamente. Diga algo, por favor.”
Havia muito para digerir. Todo o tempo que havia passado sentindo-se isolado após perder a única amiga - e primeiro amor - de sua juventude, as longas horas sentado, enterrado em algum livro, ocupando a cabeça para tentar esquecer a garota que agora o ignorava. Ele queria ficar sobre as próprias pernas e fazer um discurso humilhante, culpar a bela mulher por todas as derrotas em sua vida miserável. Mas essa era uma atitude reservada para os protagonistas de Hollywood. Na vida real, ele refletiu, as pessoas raramente dizem o que realmente querem vomitar nos ouvidos ao seu redor. Ele abriu a boca e disse: “O que aprendi nesse meio tempo foi que o melhor tratamento para alguém que vê sangue na própria urina é mijar com a luz apagada.”
Ela sorriu um sorriso amarelo e endireitou as costas no banco de madeira. “As pessoas precisam se despedir todas as vezes, era o que estava falando antes. Sempre pode ser a última vez que você estaria encontrando alguém. E se eu morresse dormindo, ou estivesse indo para a lua? Você não se despediria de mim se soubesse que nunca mais me veria?”
“Seria a última vez que nos veríamos?”
“Seria”, ela agora sorria com sinceridade.
“Eu não diria ‘tchau’.”
“Não?”
“Não, eu diria para você se foder. Bem fundo.”
Explodiram em risadas e ela continuou, depois de recuperar o fôlego, a tecer cenários que justificariam sua permanente ausência do planeta e como seria importante ele se despedir pela última vez. Pelo resto da noite, foram novamente os jovens apaixonados que estavam perdidos em algum lugar, fundo nos labirintos de condução social que agora eram suas personalidades. Conversaram e beberam, sorriram e se abriram. Ela contou sua vida, ele reclamou dos últimos anos; contaram de seus casos e narraram os acontecimentos engraçados, até o momento em que atingiram o lugar estranho que existe em todas as conversas, onde não há nada mais a ser dito e as pessoas permanecem encarando o próprio copo por um longo período de tempo.
“Sobre o que eu disse antes, o motivo que te procurei…”, ela acariciou seus dedos. Um toque leve e macio, ainda assim com o peso de cinco mil bombas atômicas.
Ele retraiu a mão, desviando o olhar dos olhos penetrantes da mulher e nada disse. As antigas feridas sangravam. Era Casablanca novamente. Ele não teria a garota, mas saberia sempre que foi por ela desejado. Isso teria de ser suficiente.
“O que você esta pensando?”, ela perguntou, depois de um longo silêncio entre eles.
“Que scotch é uma merda.”
“Hum…”, respondeu. “Eu não saberia dizer o que é um scotch, mas deve ser realmente muito ruim.”
Ele se levantou, deixou sobre a madeira úmida do balcão uma quantia que considerou suficiente e, cambaleando levemente, olhou para o relógio. “Tenho de ir. Eu te ligo outro dia”, prometeu antes de começar a andar para a saída, sem se despedir.
Permaneceu sentada, olhando para a costas do velho amigo que se afastava. “Ei!”, gritou e todos os presentes se voltaram para ela. “Vá se foder!”, berrou o mais alto que pôde.
“Bem fundo!”, respondeu. O homem sorriu e acenou de volta antes de sair pela porta e desaparecer para sempre.



Um comentário:

  1. Texto muito bom Mauricio. Adoro seu estilo. Parabéns. Ana Eliza

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