sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Demão

Apertou o seio que estava confortavelmente protegido em sua mão. O quarto tinha o ar carregado, pesado pelo sexo desenfreado mais ou menos contínuo nas últimas seis horas. O casal respirava pesado, cabelos em puro caos, roupas espalhadas por todos os cantos. Um aparelho tocava Beatles. Ou The Who. Talvez fosse Queen, ele não conhecia muito sobre bandas de caras cabeludos. Olhou para o teto, observou a pintura rachada e sorriu, enxergando perfeição e paz naqueles detalhes ao redor. Um teto descascado. Havia algo mais singular do que camadas de tinta caindo sobre eles durante a transa? Foi como viu no primeiro filme que assistiram juntos, Quase Famosos. Os dois protagonistas conversavam sobre… sobre bandas de caras cabeludos e um deles, o guitarrista ou baterista - talvez ele precisasse prestar mais atenção no que era importante para ela - falava sobre o que sobrevivia ao desafio do tempo. Ele usava uma música como exemplo e não falava sobre o solo ou sobre a letra. Referia-se no sutil oh no final da canção. Aquilo era memorável. O breve oh que sobressaltava, mesmo diante da maestria musical de algum cabeludo qualquer. Vá saber. Era o mesmo, com as camadas de tinta que se desprendiam do teto e caiam ao redor, colando nos corpos suados. A tinta representava a nova vida, a completa paz que sentia naqueles dias.
“Precisamos desencostar a cama da parede.” Suas mãos ainda acariciavam o corpo nú, uma delas nas nádegas firmes da mulher.
“Você acha que os vizinhos vão se incomodar? Eles nunca reclamaram, não vai ser da vigésima vez que vão se importar com nossos… hum… barulhos.”
Ergueu o corpo com um pouco de dificuldade e puxou uma casca de tinta branca. “Vamos acabar derrubando o prédio, baby. Uma camada de tinta por vez.” Olhou para os dedos do pé e o balançou de um lado para o outro. “Vigésima? Por um acaso está contanto?”
“Claro que não”, mentiu, “eu perdi a conta lá por maio. Trinta e oito, acho. Estamos em…”
“Novembro.”
“Isso, novembro. Deus, estou perdendo a noção do tempo. Estou bem feliz com você, sabia? Você me completa.”
“Quem escuta CDs ainda? Temos de comprar um MP3 para você ouvir suas músicas, querida.”
Ela se livrou do abraço e sentou na cama, dobrando as pernas em lótus, rolando os olhos enquanto pegava o maço de cigarros e o isqueiro de plástico. Pescou um cigarro e acendeu. “Eu gosto dos meus CDs, ok? Deixe suas patinhas bem longe deles. E você não me respondeu”, terminou com um leve tapa na barriga dele.
Envolveu-a novamente num abraço galante. “É claro que também estou feliz. Eu te amo mais do que qualquer coisa.” Beijou a barriga diversas vezes, antes de se afastar, tossindo, da terrível fumaça do cigarro.
“O que você tem para fazer o resto do dia?”
“Nada muito importante. O de sempre. Voltar para o escritório e pegar a pasta que esqueci. O que é isso que está tocando?”
“Led Zeppelin. Você esquece toda vez, poxa. Sempre que sua mente explodir durante um riff, é Led Zeppelin.”
“Achei que fosse Beatles. Ou The Who… Tá bom, achei que fosse Queen.”
A música acabou e outro CD começou a tocar em seguida.
“Agora você está simplesmente cuspindo nome de bandas”, disse.
“Essa é outra do Led Zeppelin!” Apontava para o rádio, como se fosse um promotor utilizando o melhor gesto acusador que tinha, depois de anos e anos de prática.
“Rolling Stones. Você é péssimo nisso, né amor?” Fechou os olhos por alguns instantes e escutou Paint in Black, deixando a melodia entrar em sua cabeça. O corpo estava dolorido, mas era o tipo de dor que a faria sorrir durante o banho. Olhou para o teto e descobriu que realmente precisavam pintar o teto da casa que dividiam. “O que você está lendo atualmente?”
O homem se sentou na cama e esticou os braços, anulando uma pequena parte da tensão que tinha sobre os ombros. Viu, do lado do rádio, um Tolkien com dois marca-páginas enfiados no mesmo lugar. “Não sei como você consegue perder tempo com essas porcarias, sinceramente. Dragões, elfos, gnomos, orcs… tudo isso não faz bem para você, garota.”
Adorava quando ele a chamava de garota, mas odiava quando desconversava. Odiava ainda mais quando criticava seus gostos. “Eu leio o que quero. Além disso, Tolkien é do caralho e…”
“Era um filólogo e por isso escrevia pra caramba”, terminou a frase para ela. “Eu sei, eu sei. O tempo é seu e você o usa como bem entender, eu suponho.” Abotoava a camisa enquanto falava, já procurando pelas outras peças que vestia quando entrou no apartamento, horas atrás. “Respondendo: um livro sobre sexo na Idade Média. Bem interessante. Costumes em comum, por assim dizer… estupros coletivos, execuções em fogueira e auto-flagelo, só coisa leve. Sabia que as mulheres eram punidas severamente por adultério, enquanto os homens recebiam penas leves? A Igreja entendia que as mulheres eram lascivas, no geral.”
“As mulheres, sei.”
“É sério, meu amor. Eu sei que é machismo, mas era assim. Pura história. Escuta essa, então: se um homem cometesse adultério com uma mulher feia, a pena era muito maior do que se transasse com uma mulher bonita, porque a tentação seria menor, naquele caso, e ele demonstraria uma fé fraca. Percebe? Uma mulher não-atraente seria fonte de pouca tentação e pecar com ela, sinal de que o homem não era virtuoso. Já as mulheres lindas justificavam o pecado. Em se tratando de sexo, as mulheres eram verdadeiras súcubus. Súcubuses? Enfim, qualquer que seja a palavra. Uma ajuda com a gravata? Obrigado… Numa região, os homens matavam o tédio bebendo, brigando e cometendo estupros coletivos, visando mulheres que já não eram virgens ou estavam separadas dos maridos. Eles queriam manter a graça das mulheres corretas. Cúmulo, né? A Igreja era foda.”
Ela terminou o nó mal feito e voltou para o cigarro, agora pela metade. Achava interessante que ele lia livros diversos, apesar de ser um contador profissional. Números, quantias, valores, câmbios, esse era o seu mundo e não as prostitutas esquecidas pelo peso de séculos e séculos no passado. “E os homens nunca tinham culpa?”
“Tinham, sim senhora. Senhorita, desculpa. Eles pegavam penas leves, como eu disse. Por estupro, passavam alguns dias na prisão ou pagavam uma multa. Se fizessem sexo durante a menstruação, masturbação em conjunto com outros homens, sodomia… tudo era punível com alguns dias de pão e água, um sinal de cruz e pronto: alma limpa e pé na estrada. Acho que eles pegavam algo mais por se masturbarem em buracos feitos na madeira.”
“Farpas, por exemplo?”
Fez uma careta de dor e respondeu “Farpas, por exemplo.” Terminou de calçar os sapatos e caminhou até o livro do Tolkien, uma cópia do Contos Inacabados. Estudou por alguns segundos a figura, uma cópia de algum deus nórdico, que se erguia da água, majestoso e ameaçador. Nunca entendeu o apelo daqueles livros, suas regras e seriedade. Porque aquele deus que se levantava do mar não podia invadir o continente e acabar como todos os inimigos dos homens bons? Com um tridente como o da capa, ele com certeza arrasaria muitos orcs sem qualquer esforço. Livro besta. Olhou sobre o ombro para a mulher. Ela era linda com aqueles olhos redondos, seios empinados e coxas firmes. Ela fumava, olhos fechados e a mão direita dedilhando cordas invisíveis. Puxou um dos marca-páginas e o escorregou para dentro do bolso da calça. Marca-páginas davam boas histórias e eram uma ótima ferramenta para aquilo que queria. Prendeu o relógio ao redor do pulso e disse: “Baby, tenho de ir, tenho muita coisa para fazer.” Ela não respondeu. “No que você está pensando?”
Abriu um dos olhos e mandou um beijo para ele. “Que tenho sorte por ter você. Com ou sem Igreja regulando os orgasmos das pessoas e como elas deveriam fazer sexo para fugir do inferno, tenho certeza que te amo e que você é a pessoa certa para mim.”
Pulou na cama, sem se importar com a roupa já amarrotada e a beijou longamente. “Isso, minha princesa, é amor. Puro e simples.” Pegou uma das mãos da mulher e beijou os dedos. Foi quando lembrou do anel. O coração pulou no peito e ele se ergueu num ímpeto, procurando pela aliança na bancada, bagunçando CDs e livros.
“Está no banheiro, ao lado da minha”, disse sem precisar perguntar. A cara de culpa era quase hilária, não fosse trágica. Considerava-se mais forte nesse aspecto e sabia que se algum dia fossem descobertos, seria culpa dele.
Olhou para ela, sem graça, e concordou com a cabeça. No banheiro, achou a aliança com facilidade. “Quer a sua?”, perguntou.
“Depois eu pego, vou tomar banho e voltar para casa. Quando você volta para cá?”
Quando respondeu, já estava girando a maçaneta do quarto, pronto para desaparecer por uns dias. “Não sei. Vou viajar com minha esposa no final de semana - os pais dela querem ver os gêmeos - e estou atolado de trabalho no escritório.” Pensou por alguns instantes e continuou. “Acho que é a minha vez de fazer jejum, de certa forma.”
“Tudo bem, eu fico em casa algum tempo, para ter certeza que estamos seguros.”
Ele piscou e fechou a porta. A mulher aumentou o som do rádio e ligou o chuveiro. Ele calculou que ela já estava com a aliança no dedo e pensou se tinha mais energia sexual. Decidiu em negativa e caminhou até a porta da sala. Poucos minutos depois, estava dirigindo automaticamente. Escolheu o caminho para casa, quando sentiu as nádegas coçarem. Aproveitou um sinal vermelho para colocar uma das mãos para dentro da calça e tirou de lá um pedaço de tinta. Sorriu. Perfeito. Começou a dirigir novamente, pensando em ir para o braço de sua esposa, mas seus instintos eram fortes e a fome, insaciável. Ele fez curvas e mais curvas, desviando do caminho que deveria pegar. Estacionou na frente do Clube e tirou do bolso o novo marca página. Ainda tinha três horas antes de voltar para casa e estava pronto para jejuar por alguns dias. Jejuar fazia bem, limpava a mente e tirava um pouco o peso de seus pecados. Ainda bem que não acredito nessas coisas. Minha alimentação seria praticamente pão e água o tempo todo, refletiu. O tempo todo. Guardou a casca de tinta velha no porta luvas, onde ficou esquecida para sempre.
Estudou o marca-página. Pensou na história que contaria, de como aquele marca-página havia parado em suas mãos e saiu do carro.

Que mal havia em um banquete antes de começar o jejum?

4 comentários:

  1. Imaginei a cena direitinho e a conversa fez total sentido! Vc é mt bom em construir diálogos =)

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  2. Adoro esse jeito descontraído que você tem de narrar o "cotidiano". Adorei o texto. Ana Eliza.

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