sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Mesa de Jogo


Robert gostava de jogar pôker. Normalmente, era a primeira característica que as pessoas notavam nele e espalhavam nas conversas de travesseiro, ou então como lavadeiras de roupa divididas apenas por um muro baixo. No entanto, nos primeiros anos, não era algo usado contra Robert. Sua família não reclamava para terceiros ou era privada de bens materiais. Talvez Robert estivesse mais presente no seio familiar, não fosse o carteado, mas eles sabiam que essa era apenas uma doce ilusão: Robert era viciado em jogos e não apenas em pôker. Pelo menos, caro leitor, ele não perdia dinheiro para desconhecidos. Bem, perdia pouco dinheiro, o suficiente para ser anotado no orçamento como gastos com hobby.
A noite já corria longa quando a mesa atingia o ápice do jogo, com todos gritando e arremessando fichas no centro do tecido verde, fumando compulsivamente charutos e entornando grandes doses de álcool. Nesses momentos, a energia misteriosa e empolgante que se formava diante da excitação latente de cada jogador - do desespero dos endividados ao blefe dos que tinham uma péssima mão mas também possuíam lábia - impulsionava a vontade de viver de Robert e, cada vez mais, ele passou a ansiar por esses momentos.
Quando tinha dois, três Ás na mão podia sentir seu coração disparar, não pelo dinheiro, mas por estar no jogo, por fazer parte da mesa em que estava sentado e por ter impacto naquela rodada. Ele gesticulava, batia as palmas das mãos na madeira e gritava em plena força, urrando como um primata que um banquete fácil e farto.
Por muitos anos ele viveu pelo pôker, dentro do estilo de vida exigido. E, como você deve imaginar, isso teve um custo. Não podia ser encontrado junto da família e raramente comparecia em reuniões, afastando-se progressivamente de parentes e amigos. Envelheceu como um estranho em seu próprio teto, eventualmente.
Até o momento em que a fase do carteado passou.
As pessoas comentavam pela cidade que o velho Robert não mais jogava. Alguns diziam que suas mãos tremiam e por isso ele não conseguia mais segurar as cartas; outros que ele já tinha dinheiro suficiente para se aposentar e viver como um magnata.
A verdade é que o jogo havia perdido o sentido. Não havia mais a emoção e adrenalina… era um jogo vencido, conquistado além de qualquer possibilidade.
Os dias seguiram de forma vazia, sem sabor, sem cor.
Cinco anos percorreram seu caminho e o velho Robert não encostou em uma única carta. Ficou longe do três de copas, da rainha de paus - que ele gostava de chamar de “rainha trans” - e do Ás de ouro. Absteve-se das fichas e das longas noites, da nuvem de tabaco queimado que era formada nos mais diversos porões da cidade. Durante esse tempo, o velho Robert, com os óculos fundo-de-garrafa e o sorriso de criança, participou dos eventos em família, foi em todas as festas de aniversário e se surpreendeu com alguns netos dos quais não tinha quase conhecimento. Tudo parecia correr bem. Ao menos até o momento em que ele sumiu por dois dias seguidos.
No momento em que retornou, Robert viu os carros policiais encostado no meio fio e seu coração parou por um breve segundo. Ele correu para dentro de casa, quase sem fôlego e sentindo o quadril enferrujado pelas décadas. “O que foi? Aconteceu algo? Você está bem, Marta?”, perguntou para a mulher.
Marta, por sua vez, deu sua resposta na forma de um forte tapa que deixou impressa a marca vermelha de sua mão no rosto do velho. “Você é o problema, Robert! Por onde você andou, homem? Foram mais de dois dias sem notícia sua…”, conseguiu dizer antes de deixas as lágrimas - de alívio e raiva - escorrerem pelo rosto e lavar qualquer outra palavra.
Robert olhou, confuso, para o relógio que tinha no pulso - presente de seus filhos - mas não conseguiu enxergar as pequenas letras do calendário. Maldita tecnologia para jovens. Havia realmente desaparecido por dois dias inteiros? Para ele, ficara fora de casa por apenas algumas horas, talvez a tarde inteira. Foi então que viu a hora: meio-dia. Impossível! O relógio da cozinha marcava o meio da tarde quando saiu para uma breve caminhada, como poderia ser? Olhou para as mãos e estudou o tabuleiro de xadrez que segurava, sem saber como ele havia parado em sua posse. Lembrava, no entanto de ter jogado pôker com alguém, talvez uma mulher. Arrumou os óculos no rosto e olhou para a esposa, tentando esconder a confusão no próprio olhar.
“O que e isso?” Marta soluçava enquanto passava a mão carinhosamente em seu braço, apertando algumas vezes para ter certeza que ele estava realmente ali, em pé na cozinha.
“Nada, meu bem. Não se preocupe”, abraçou a mulher com força, tentando passar tranqüilidade no calor de seu corpo. Mas seus olhos, leitor, seus olhos eram puro terror.
Nas semanas que seguiram seu “episódio” - ao menos era esse o nome que deram os médicos - Robert se recusou a encostar no tabuleiro de xadrez. Escutava, entretanto, uma voz no fundo de sua mente, que clamava por atenção. Cedeu aos poucos, deixando a voz entrar no cérebro cansado e enfiar as garras em seus pensamentos, dirigindo os dedos ávidos para estudar os peões brancos antes que ele percebesse o que estava fazendo. O tabuleiro em si era de beleza estonteante, detalhado em cada centímetro da superfície com imagens de batalhas em uma realidade quase impossível. As peças, apesar do tabuleiro ser de madeira, estavam esculpidas em mármore e representavam soldados, cavaleiros e nobreza; a beleza das peças era igualmente indescritível. Naquele mesmo dia, o velho Robert saiu de casa e comprou seis livros sobre xadrez. Ele andou novamente pela estrada da obsessão e a estratégia sugou as horas de seu dia. Dois, três, oito movimentos eram previstos por ele, conforme se aprofundava no estudo dos livros. Robert leu estudos militares e manuais do exército, bloqueou as reclamações de Marta e as intervenções da família. Existia apenas os peões, bispos e torres. As 64 casas eram a sua vida e Marta permanecia em segundo plano.
Entrou em campeonatos, acumulou vitórias, chorou derrotas. Novamente, cinco anos se passaram. Novamente ele sumiu por dois dias seguidos, desta vez sem qualquer alarde por parte de Marta. Ele voltou, limpo do xadrez, como se o antigo jogo de estratégia fosse uma droga. O jogo, assim como acontecera com o pôker, perdera o apelo. Era mais um campo conquistado e arrasado, não havia mais nada para pilhar naquela guerra. Nada mais para provar. Sem maior atrativo.
Ele percebeu que sua vida começava a funcionar em ciclos de cinco anos, cada ciclo era marcado por um jogo. Depois do xadrez, foi o gamão e, cinco anos mais tarde, a dama. Cada jogo era ultrapassado depois que ele sumia por dois dias inteiros, algumas vezes mais. Durante o período de cinco anos do ludo, Marta faleceu e Robert afundou-se no mundo do jogo ainda mais. Esquecia-se de comer, jogava partidas inteiras sozinho, assumindo uma cadeira diferente para cada cor do jogo pueril.
Go, pachisi, xadrez chinês e buraco. Robert já somava mais de um século de vida, mas parecia que seu corpo havia estacionado no sexagésimo aniversário.
Observe, leitor, veja o ancião parado diante da porta vermelha no centro velho da cidade. Esta chovendo torrencialmente e o vento castiga o rosto do simpático Robert, molhando seus óculos além de qualquer possibilidade de visão. Em suas mãos, como de costume, um tabuleiro permanecia seco por camadas de tecido e sacolas plásticas. É o fim de uma era, caro e fiel leitor, o encerramento de mais cinco anos. Ajeite-se em sua poltrona favorita e abra bem os olhos.
“Entre logo, Robert. Não morra afogado nessa chuva”, chama a voz fina do outro lado da porta antes de soltar uma risada que fez a alma do velho se encolher. Odiava quando ela soltava aquela risada, um barulho parecido com ossos se batendo dentro de um saco de pano. “Eu já coloquei a mesa.”
Ele suspirou e entrou, mal conseguindo suprimir a empolgação que tomava conta de seu corpo. O lugar estava confortavelmente quente e ele viu uma mesa no centro do cômodo simples. Havia duas dúzias de cerveja em um isopor cheio de gelo; pacote de petiscos e um rádio, que tocava Tommy, do The Who. Robert desembrulhou o tabuleiro e o colocou no centro da mesa, secando as lentes antes de se sentar. “Estou escutando esse disco há mais de um ano, sem parar um segundo”, ela disse com a voz fina, quase cômica. “Depois que falei com o Keith Moon, simplesmente não consegui parar de ouvir essa banda. Eles são ótimos.” Cantarolou um pouco da letra.
“Você é estranha”, disse Robert. “Eu queria conhecer o Moon, gostava dele durante minha época. Estava com saudades de você.” Estava sendo sincero: adorava a companhia daquela mulher… até onde ela poderia ser ela. E - bom Deus! - como jogava bem! Era uma oponente à sua altura, como poucos poderiam ousar jogar contra o velho Robert. Na verdade, havia emoção apenas quando estava jogando contra ela.
“Eu também estava, velho. Sabia que esse é o ponto alto dos meus dias? Algumas vezes… ate torço por você”, abriu uma cerveja e bebeu.
“Como está a minha Marta?” Alcançou uma cerveja gelada.
“Aguardando. Ela queria vir, mas achei que iria te atrapalhar.”
“Fez bem, fez bem.” Gostaria de vê-la, mas a presença da falecida companheira iria realmente tirar sua atenção. Aquela era uma partida importante, leitor, não julgue o velho protagonista.
Robert tirou o tabuleiro da caixa de papelão e montou as peças com minucioso zelo. “Sabe jogar esse?”, ele perguntou para ela e estudou seu rosto, surpreendente comum e cheio de energia. Bochechas rosadas e gordas balançavam conforme ela falava.
“O Jogo da Vida?”, perguntou Morte, “Como ninguém!”, e sorriu novamente.
“Então vamos a isso logo. Mais cinco anos?”, barganhou.
“É o nosso acordo, não? Escute, Robert, o que você vai fazer se perder desta vez?”
“Morrer, não é?” Ela concordou sem hesitar. “E acho que assombrar tabuleiros de Ouija, o que mais poderia fazer?”
Ela soltou novamente aquela terrível risada e começaram a partida, como dois velhos amigos.

3 comentários:

  1. Conto muito bem bolado Mauricio. Da uma vontade danada de ver logo o final, que por sua vez é muuuito bom. Parabéns. Ana Eliza.

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  2. Muito bom, o final é ótimo. O primeiro parágrafo me incomoda um pouco, não sei dizer o motivo exato, mas parece ser a escolha de palavras, em especial quando fala da característica. Porém pode se apenas algo meu, admito. Sério, o final é muito bom.

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    1. Raphael, obrigado por ter lido e pela crítica. Também não gostei muito do começo, vou reescrevê-lo. Quase parei na metade, não estava achando a voz do texto. Mas acho que ele acaba engrenando, principalmente no segundo quarto.

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