sexta-feira, 29 de junho de 2012

Palavras do Sol Negro


O historiador assoprou com força, levantando uma nuvem de poeira e mofo. A câmara, iluminada apenas pelo fogo de duas tochas, era escura para a leitura. Mas qual opção ele tinha? Sentado no banco milenar, dentro do bolsão mais interior da gigantesca caverna, ele olhou, exasperado, para os milhares de pergaminhos.
Isso não é uma coleção documental, ele pensou, é Alexandria! Estou na biblioteca perdida. Puta que pariu! Respirava o ar carregado por milhares de anos de isolamento. Mesmo conhecendo os procedimentos, retirou a máscara branca que cobria a metade inferior de seu rosto. O pequeno monomotor estava no fundo do rio, provavelmente. As cobras que haviam chegado em uma caixa em suas acomodações quase o mataram, mas ele tivera sorte por estar cozinhando: a lâmina de um cutelo era, afinal, mais forte do que duas cascavéis. Mesmo assim, ele tivera sua dose de soros antiofídico. As lanças, espadas, pistolas e até mesmo dois assassinos com lança granadas. Ele estava vivo, superara todas as tentativas para barrar o conhecimentos. Inclusive os dois aborígenes mortos na entrada da caverna.
Depois de alguns dias perdido no labirinto escuro de estalagmites, e de quase ser atingido por estactites que se desprendiam convenientemente apenas quando ele estava por perto, ele havia encontrado as inscrições dos pergaminhos sobreviventes da mítica biblioteca. ‘Para aquele que nos encontrar’, leu na língua morta, sinais gravados diretamente na pedra da caverna, ‘volte para os seus, fique entre ele e não volte para os papéis do Sol Negro. Aqui existe morte e morte apenas’. Riu com escárnio após traduzir os complicados símbolos e continuou em seu caminho.
Finalmente estava onde deveria estar. Todos os passos de sua vida só ganhavam importância por levá-lo até este instante. Todo o resto, antes e depois, perdia a cor diante do colorido mosaico de pergaminhos que observava com olhos gulosos.
Esticou o longo pergaminho, produzindo uma nova nuvem de partículas provavelmente inexistente no planeta há mais de séculos. O pergaminho era lindo, nos olhos do historiador: desenhos góticos traçavam as bordas do couro animal, marcando o texto com belas gravuras. O estilo, no entanto, não correspondia com a data provável do documento. Anacronismos. Interessante, pensou enquanto seus olhos percorriam rapidamente as linhas arcaicas.
O historiador achou uma postura mais confortável e leu. Minutos e horas se mesclaram; dia e noite derreteram. Ele leu sobre a história da biblioteca de Alexandria, dos pergaminhos misteriosos e dos perigos que rodeavam aqueles que a frequentavam. Descobriu que o próprio Aristóteles havia incediado os papiros e pergaminhos com o óleo grosso das lanternas, afirmando estar salvando o mundo de mistérios que existiam para nunca ser revelados.
O mais impressionante é que há documentos de quase todos os séculos, que provavelmente foram adicionados depois. Todos os segredos estão aqui, ao meu alcance. Segredos que explicam o mundo além do nosso e das pessoas que controlaram e ainda controlam os rumos dos acontecimentos. Ele sorria, imaginando que Indiana Jones estaria com inveja naquele momento.
Colocou as mãos em um livro costurado em um couro escuro. Um pentagrama estampava a capa do livro, nada mais. Abriu o grande volume e começou a tentar traduzir os parágrafos. Uma mistura entre latim e inglês antigos se alternava entre as páginas, mas o texto fazia sentido... dentro dos padrões do próprio texto.
O livro contava sobre os primeiros deuses, monstros amórficos que viviam no oceano abissal; terrores da natureza que deixariam os homens loucos apenas com sua forma; seres sobrenaturais que chegaram em pedras do espaço; entidades que eram origem para mitologias inteiras. O historiador sentiu a própria sanidade fragilizada pelo texto.
O texto avançava, explicando a história dos homens e os momentos influentes no fluxo de acontecimentos que mudavam o modo de viver e pensar da humanidade. Era um prisma único, páginas que continham a verdade na mais pura forma. Conforme virava as páginas, sem perceber o estômago roncando por alimento ou os músculos duros e exaustos pelos dias de leitura constante, ele notou que o texto variava de estilo gramatical e regional. O latim se transformou em alemão antigo. Centenas de páginas depois, lia em italiano provinciano, depois algumas poucas páginas em chinês (felizmente traduzidas no mesmo italiano carregado de gírias locais) e, por fim, o velho e conhecido inglês, ainda que em sua forma pré-Shakespeare.
O livro estava narrando um personagem que procurava pela coleção perdida no fogo de Alexandria. Ele enfrentara os guardiões dos pergaminhos, sobrevivendo para condenar os homens ao horror. Parou de ler, sentindo um frio na espinha.
O historidor leu sobre estar lendo as linhas que narravam estar lendo as mesmas linhas.
Perdendo o controle sobre os membros, ergueu com esforço um dos braços e leu mais um pouco. ‘Com dificuldade, o historiador ergueu o braço direito e leu mais algumas frases. Sabia ele que estaria acordando forças ancestrais?’
Ele sentiu o coração disparar e conferiu o livro. Sim, estava escrito que seu coração estaria em um ritmo rápido. O historiador, curioso nato, virou as páginas que faltava para terminar o grande volume e leu as últimas linhas.
... fraco. Suas últimas forças foram utilizadas para sussurrar os encantamentos esquecidos. Grhol’ar Araramath Huorinthor! Ele disse. E os Terrores acordaram. O Sol escureceu, a Lua caiu e o próprio céu sangrou. Florestas mudaram de lugar, desertos congelaram e Oceanos evaporaram, matando bilhões em um só dia. Os homens ficaram loucos e sofreram. Até o último deles. Outra Era começava, apagando com fogo e morte a raça logo esquecida.
Depois daquela linhas, o livro estava em branco e muitas outras páginas se seguiam, igualmente vazias de palavras. Ele tinha que continuar a escrever o livro.
Voltou para a página marcada pelos dedos da outra mão e continuou a ler. Queria saber o que iria acontecer entre o ponto em que estava e o final do livro costurado com couro.
Em algum lugar das prateleiras, achou ter escutado uma risada sinistra.
Mas resolveu continuar a ler o mais rápido possível. As vozes em sua cabeça mandavam, ele obedecia.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

João

Durante muito tempo de minha vida acreditei que balas eram uma licença poética. Um recurso estilizado como um catalisador de uma mudança. Até ver aquela arma fria em minha frente e o homem de máscara. Quando ele foi embora que minha pressão baixou mas estranhamente eu tinha consciência de tudo. Eu de pé, João baleado.

Li em uma história em quadrinhos sobre um assassino pintor. Ou pintor assassino, escolham como preferirem. Dizia ele que nenhuma tinta tinha a beleza da coloração do sangue. Então matava para pintar suas telas. Mas nada é tão bonito quando seu melhor amigo tem um pedaço de metal que atravessou o braço. O sangue espirra, escorre. O que mais me marcou foi seus gritos de agonia. A saliva produzia bolhas enquanto ele desesperava.

Foi quando parei de sair de casa e de gostar de armas. Se via alguém assistindo um desses filmes de ação, não importa qual fosse, entrava em pânico. Vestia as roupas do carola e dava um sermão. Mas eu chorava por dentro. Lembrava de mim, João, do sangue, da agonia, dos minutos que pareceram horas até o socorro chegar e das horas que pareceram dias para prestar depomento na polícia.

Seis meses dentro de casa, que deixei até a barba crescer, quando meu estômago reijeitava violentamente qualquer comida pronta entrega da região, decidi sair. Fui na sacada de casa e olhei o mundo. Daqui não poderiam me atingir.

Chamei um taxi e ele me levou até o shopping. Na livraria, comprei todos os livros que meu dinheiro poderia obter sobre criminalística, crimes, assassinos, assassinatos, latrocínios e justificativas psicológicas que levam um ser humana a: primeiro, roubar. Segundo, atirar em alguém.

Então, lembrei-me de um antigo conhecido na polícia. Entrei em contato e lhe pedi uma arma. Não sei porque preferi um policial do que procurar uma arma no tráfico. Descobri, porém, que eu não queria um arma. Desejava apenas o confronto. E foi o que fizemos.

Coloquei a arma na mão e senti um conforto insuperável. Compreendi a potência da destruição e gostei. Tive prazer. Mais que com dinheiro. Mas que com mulheres. Aquilo era o tudo e o nada. Nirvana. O transcendentalismo.

Talvez eu quisesse uma arma para me matar. Quando mais novo eu tinha sonhos de me dar um tiro e sobreviver. E que no sangue que estampasse minha sala – talvez a tal pintura da história em quadrinhos – todos os meus pecados e minhas dores iriam embora juntos. E eu levantaria, nobre e triufante cuspindo pedaços do meu coração. Mas deixei os grandes atos para o/utros.

Hoje fico feliz quando consigo transitar um pouco. Sem ataques de pânico, pois, após dois meses, depois dos seis meses, deixei de tomar os remédios. Eram um dinheiro gasto a toa e que não me dava a compensação necessária para viver. Tudo tornava-se ameno demais.

Quando vou a padaria a duas quadras de casa. Caminho pela praça. Arrisco um passeio de taxi nas redondezas, me sinto feliz. É pouco mas é tudo que posso fazer. João está bem, sadio, aprendeu a se virar com a esquerda mesmo não sendo canhoteiro. 

Em algum lugar eu fiquei. Com a bala. Com o medo. Com o sangue no rosto. Paralisado.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

versão do amor

- Eu lembro vagamente de 1964, quando a ditadura no Brasil começou - começou pra se alongar por mais tempo que devia. Lembro vagamente.

Ele falava com o copo na mão, meio levantado entre a mesa e a boca, os olhos no teto relembrando seu passado histórico. Historiográfico.

- Em maio de 68 a França explodiu, frenesi elétrico que só não foi mais alucinado que Londres em 67, o verão do amor na terra inglesa. Quase na Terra toda. França e Inglaterra, você sabe, muito perto uma da outra pra que alguém possa dizer "ah, não deu pra ir".

Joana olhava, interessada, a história contada pelo velho.

- Houve outras coisas estranhas, marcantes, houve sim. Olimpíadas de verão, Munique, 1972. Aqueles atentados terroristas que viraram filme. E pra não sair da Alemanha, aquela belezinha de queda/derrubada do Muro de Berlim, 1989.

Um gole. Um "ah!" de satisfação, estalo na língua e na memória.

- 1991, Impeachment de Fernando Collor, Brasil, caras pintadas... Em 90 o Cazuza tinha partido. Pena, foi antes do Collor.

"E 2001?", alguém perguntou.

- As torres? Gêmeas, mortas, sim, 2001. Todo mundo sabe. Dava pra ver a merda vindo. E depois Afeganistão, Iraque, todas essas guerras bonitas dos anos 2000, da década de 10, tudo isso.

"E... e você estava lá, nesses lugares, em todos esses momentos?", dizia a voz curiosa e um tanto envergonhada da jovem sentada na mesa ao lado.

- Eu!? Ah, mas claro que não - e o velho ria - Não saio desta cidade deste 1952. Tenho uma perna que não me deixa subir escadas e uma fazenda pra cuidar. Além do mais, pra que eu deveria estar nesses lugares? Pitando fumo, quieto em casa, eu tenho a vida toda.

E acendeu seu velho cachimbo velho.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Mister Noite


“Eu prefiro o Corpo Fechado.” Estavam sentados em lados opostos da apertada mesa de fórmica branca, apesar do material estar amarelado pelos anos de existência e de panos de limpeza portadores de higiene duvidosa. Os bancos eram espaçosos, estofados com couro vermelho, gastos pelo tempo e, ele examinou as marcas, pelas centenas de bundas gordas que ficaram sentadas exatamente onde ele estava; clientes de todos os biotipos e raças que consumiram os mais variados pratos. Pousada ao lado de seu pé estava a mala trancada, protegida e esquecida por baixo da mesa.
“Como assim? ‘Eu prefiro Corpo Fechado’”, ficava irritado quando Beth imitava sua voz, fazendo mímica com as duas mãos como as de uma múmia nos filmes da década de quarenta; sentia-se um retardado na pior conotação da palavra. Beth continuou: “Sexto Sentido é muito melhor. Aliás, é o único filme dele que presta. O resto é lixo. As pessoas encheram os cinemas esperando por outras histórias como a do moleque que enxergava pessoas mortas, mas foram outras... não sei, abordagens? Não, estou procurando outra palavra. Ah, o diretor apenas não entregou filmes tão bons quanto Sexto Sentido, é o que acho.”
Ele sorveu um pouco da bebida no copo. O refrigerante causou o agrado de costume em seu estômago. “Isso porque você vai com as massas, meu velho amigo. Seu gosto, ainda não entendo como, é altamente manipulado pela mídia, corporativista ou não. Desde quando você ama vampiros?”, falava calmamente, sentado em uma posição rigidamente ereta, comendo o enorme lanche com as duas mãos e em mordidas contidas. Aleph quase nunca se exaltava e mantinha uma pose de estilo próprio, apesar da estupidez de Beth.
“Hum...”, ele apoiou o queixo em uma das mãos: a outra procurava por uma batata frita extra-crocante. “Há dois anos, acho.”
“Mais ou menos quando os romances adolescentes sobre vampiros voltaram para assombrar namorados forçados a assistir péssimos filmes com suas respectivas namoradas de mal gosto, certo?”, falou rápido, sem pausar para respirar.
“Não mude de assunto, Aleph. Pode ser que sou influenciado um pouco por adolescentes bobinhas, mas tenho certeza de que O Sexto Sentido foi o melhor filme do... do...”, Beth estava fazendo aquele som irritante com os dedos indicador e o polegar. Aleph achava que algum dia as manias do amigo seriam sua causa mortis. E ele próprio o culpado.
“Shyamalan. Preste atenção. Primeiro: Sinais. Sinais é um filme fantástico! Você não pode começar a ver o filme esperando uma história à John Woo, pode ter certeza. Nada daquela baboseira de disco voadores gigantes e explosões devastadoras na Casa Branca, correria e morte para todos os lados, o que você vai saborear é uma história sobre crenças. São várias crenças, gente que acredita em sinais nos milharais por todo o mundo, gente que acredita em um ser todo poderoso que escuta suas orações todas as noites e até mesmo sobre coincidências. Pensa só nisso, no começo do filme você tem um punhado de gente esquisita. Um religioso que perdeu a fé porque sua mulher foi cortada no meio, no meio, por uma camionete desgovernada; um asmático chato; um louco com chapéu de papel aumínio e uma menina mimada que não consegue terminar um único copo d’água. Mas tudo tem um propósito, tudo caminha para um ápice. No final do filme, a asma tem uma função, as dezenas de copos espalhados pela casa, cheios pela metade com água pura, também.”, ele entrelaçou os dedos das mãos para ilustrar seu ponto de vista. “Todos os elementos em colisão. É lindo.”
“Pode ser. Mas o filme é um saco.” Beth agora mordia um hambúrguer saboroso. Gordura escorria pelo pão e alcançava os cantos da boca vermelha. Aleph olhava para o companheiro com asco.
“Corpo Fechado é o melhor filme dele.” Disse, talvez justificando para si mesmo. “No fundo, é uma analogia para a filosofia chinesa. O cara é indestrutível, ele tem, como no título, Corpo Fechado. Nunca ficou doente ou se machucou, sua pele é impossível de ser rompida. No outro lado temos o Samuel, incrível no papel, que é a definição última da fragilidade.” Ele tinha as duas mãos esticadas com as palmas para cima, como se estivesse exibindo dois objetos diferentes. “Eles são opostos extremos. No Tao, os opostos são justificativas mútuas de existência. O baixo só existe por causa do que é alto; o quadrado se justifica na diferença com o círculo. Todas as coisas, o fogo, a terra, os pássaros, o sal... a própria vida, poxa, tem um oposto. Você, para jogar um pouco em outras filosofias, se define por tudo aquilo que não é, certo? Por exemplo, você não é inexistente, logo existe. Você não é mortal, por isso estamos aqui. Então sua própria matéria está justificada. O legal é que o Sam, podemos chamá-lo assim, não faz um personagem essencialmente mal por natureza, não senhor. Ele gostava de ler quadrinhos, amava a mãe... qualquer pessoa que passe muito tempo absorvendo conceitos e valores das histórias em quadrinhos enquanto toma leite preparado pela mãe tem de crescer para se tornar numa boa pessoa, anote o que eu digo. Mas ele quebra fácil, literalmente. Seus osso são praticamente feitos de vidro. E ele precisa, talvez para não ficar louco, achar uma explicação para sua condição. Quando ele explode trens e aviões, ele está procurando por algo indestrutível, seu extremo oposto. Quando ele acha o Bruce, um cara bonzinho, o herói da história, ele percebe seu papel de vilão. Veja, ele não é mal, mas precisa ser mal simplesmente porque esse é seu papel! Ele não está apenas achando seu papel em um plano maior: ele está fortalecendo a existência do herói! Essa é a moral do filme.” Ele olhava para Beth com um ar superior enquanto molhava a garganta com mais refrigerante.
“Suas batatas estão esfriando”, respondeu. Nunca continuava as análises de Aleph, flhava em exergar tal necessidade quando ele simplesmente nunca calava a boca. Às vezes queria gritar com ele, perguntar se cada palavra de sua mente era tão importante que ele não poderia, pelo menos uma vez, guardar para seus próprios pensamentos. O pior, e Beth sabia isso há mais de mil anos, era a resposta negativa. As palavras nas mentes dos dois seres sentados nos bancos vermelhos eram importantes e não poderia ficar caladas para sempre. Por fim, Beth puxou a pequena travessa de batatas fritas para seu lado da mesa, espalhou maionese em um dos cantos e começou a comer.
“A Vila pode ser visto como um analogia social, pura e simples. Você é uma leitra de seu quando e seu onde.” Apontou para um adolescente sentado na mesa ao lado. O garoto vestia uma camiseta de banda (com alguns representantes de uma seita diabólica em pleno coito) e calça jeans rasgada em ambos os joelhos. Cabelos compridos caíam sobre os ombros, e era possível escutar a música que saia do fone de ouvido branco. “Ele seria assim se tivesse crescido em outro país ou em outro século? Gostaria, se tivesse nascido daqui vinte ou trinta anos das mesmas bandas ou do mesmo estilo de música?”
“Esse filme tem uma história fraca, é só. Promete muito e não fala nada. Ainda gosto muito mais do...”
“Sexto Sentido, sei, sei”, interrompeu Aleph. “Aliás, acho que é ele, estamos aqui pelo garoto. Vamos?”
Beth olhou para o garoto com explícita dúvida. Decidiu que Aleph estava certo, como sempre, e começou a comer mais rápido. “Deixe...”, engoliu batata e carne mal mastigadas, “deixe-me terminar meu almoço. Dama na Água?”
“Conto de fadas moderno e o Giamatti em um dos papéis de maior carisma em sua carreira. Apesar que gostei dele naquele filme sobre traficantes de almas russos.” Aleph respondeu enquanto colocava a pasta sobre a mesa, acertando as duas senhas que protegiam o conteúdo.
“Fim dos Tempos?”, ele falou com a boca cheia. Era quase impossível entender as palavras.
“Sobre a natureza e a fragilidade da existência humana. Os homens têm esse planeta apenas e deveriam tratá-lo melhor. A ‘macrofísica’ demonstra leis sobre a raridade e preciosidade da existência da vida orgânica. Uma única mudança na trajetória da Terra ou de seu astro e puf, adeus mundo. Pronto?” Beth engoliu com dificuldade o que restava de comida e deu dois socos no peito, encorajando o alimento a continuar em seu caminho natural.
Os dois deuses se levantaram em simultaneidade e caminharam até o jovem vestido com a camiseta pornográfica. Aleph abriu a mala e deixou as histórias se mostrarem. Eles amavam suas criações. Haviam, afinal, presenteado os Fenícios com a mágica das palavras escritas para que pudessem contar histórias mais elaboradas. Na mala, pequenas esferas representavam histórias criadas por eles, mas que poderiam ser contadas de humanos para humanos apenas e os deuses perseguiam indivíduos com grande poder receptivo para suas narrativas. Não sabiam o porquê construíam belas histórias e as presenteavam para a humanidade, mas tinham a certeza de que faziam parte de um plano maior, algo que até mesmo deuses menores, como eles, não conseguiam entender. Cada história tinha uma voz própria e os deuses olharam com orgulho as esferas em cacofonia eterna Beth selecionou quatro esferas brilhantes e as inseriu na cabeça do adolescente, forçando-as gentilmente pela testa. As histórias achariam seu caminho na mente do rapaz e o manipulariam até serem escritas. “Suficiente?”, perguntou.
“Claro. Ele vai pegar gosto pela profissão e vai escrever por conta própria. O importante é ele contar nossas histórias.” Aleph fechou a mala escura.
O garoto nunca notou o que os deuses fizeram. Os quatro primeiros livros que iria escrever dentro de oito anos, fizeram enorme sucesso. Depois deles, a revelação iria experimentar a decadência e, com ela, o abuso de drogas pesadas e várias acusações de violência contra prostituta. Antes de destruir a parte de trás da própria cabeça com um tiro de uma .12 de cano serrado, ele se perguntou de onde tinha tirado as ótimas idéias para os quatro primeiros livros, e por que nunca mais havia criado outro livro bom. Mas essa é outra história.
Satisfeitos, Aleph e Beth saíram pela porta e entraram chamaram um taxi. Segurando a mala, Aleph perguntou: “Quem é o próximo?”
Beth fechou os olhos e se concentrou. “Zack”, disse com uma voz suave. “Na próxima cidade, barman e dono da Jukebox”.
A jukebox, você quer dizer?”
Um carro amarelo encostou no meio fio e os dois entraram pela mesma porta. Beth disse o nome da rua da próxima cidade e o taxista apertou alguns botões na máquina que mostrava o caminho.
“Sim. Será interessante. B-42.” Beth respirou e continuou a falar, com um sorriso sarcástico no rosto. “O Último Mestre do Ar?”
Aleph fechou os olhos em uma expressão de dor. Esse era o ponto fraco de seu argumento. “Não... esse filme é um lixo”.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Café Instantâneo


Nas quintas – feiras, e em nenhum outro dia, venho tomar café nessa padaria. Minha esposa está de folga, portanto, dorme até o almoço. Não me sinto motivado para preparar um desjejum para uma pessoa.

Quando chego, aguardo por volta de cinco minutos para que chegue essa mulher desconhecida. Acompanho-a com o olhar pelo vidro de fora e peço meu café somente quando ela também escolhe. Usa cabelos presos de uma maneira que, mesmo assim, eles caiam tanto na frente quanto atrás dos ombros.

Usa sempre azul. Pode ser sua cor favorita, a roupa tradicional de quinta – feira ou um sistema. Recomendação do horóscopo, da televisão ou de quem quer que seja. Sempre coloca a bolsa na cadeira da frente, fazendo-me deduzir que não espera ninguém, retira o casaco e senta. Uma postura ereta que destaca o alinhamento das costas.

A roupa sem mangas deixa o braço nu. Enquanto ela se movimenta para abrir o jornal na página desejada vejo seus músculos se mexerem. Ela é magra, mais baixa que minha estatura de um metro e oitenta, esguia. Não consigo não ter simpatia por essa mulher.

Apenas trocamos cordialidades. Digo Olá e recebo seu sorriso de volta. Dependendo do dia, é um misto de felicidade e angústia revelada em apenas um gesto. Pedimos nossos cafés e voltamos a contemplar nossos abismos. Deixaria minha vida naquelas mãos em um suspiro.

Sapatilhas vermelhas, jeans nivelado ao corpo e a blusa azul. Os cafés chegam ao mesmo tempo e desejo saúde a ela erguendo minha xícara para o alto. Ela me lembra alguém. Me lembra alguém que já esqueci. A moça do café me lembra de uma memória que parece trazer a tona um pensamento que não me recordo. Uma mensagem dentro de uma garrafa que precisa ser decifrada.

Ela me olha enquanto escrevo essa mensagem. Seus olhos parecem cúmplices do meu como se eu precisasse concordar com o café matinal todas as quintas – feiras. Sim, tudo está tranquilo. Foi um bom café.

Me apaixono por ela todas as quintas pela manhã e a tarde o mundo se equilibra novamente. Ela é apenas uma figura que por algumas horas deixa meu norte um pouco mais para o leste. E, então, na próxima quinta feira ela retorna. A mesma postura, a roupa azul, a cumplicidade de estranhos que tomam seu café em silêncio em uma das cidades mais movimentadas do país.  

segunda-feira, 18 de junho de 2012

de televisão?

- Não. Sou só apresentador. Assim, apresentador, nada de tevê nem de rádio, nem de programa na net, nem nada. Só apresentador.

- Mas, diabos, o que então você apresenta?

- Pessoas, meu bem, pessoas. Eu sou um apresentador de gentes, de gente que não sabe falar pra gente que não sabe ouvir, mas que a despeito disso estariam muito bem juntas. Você ficaria espantado com a quantidade de gente que não sabe se mostrar, e mais espantado com a quantidade de gente que não sabe ver.

- Ouvir.

- Como?

- Ouvir. As pessoas num geral não sabem ver e também não sabem ouvir.

- É. E sabe o motivo?

- Do que?

- De não ouvirem.

- Hm... não. Quer dizer, desculpa, eu estava pensando em outra coisa. O motivo de quê, mesmo?

Israel sorriu. Ele era um apresentador, fazia isso com o pé nas costas.

- Por isso ninguém sabe ouvir, por isso ninguém se apresenta. Pior: por isso ninguém sabe receber quem aparece. Porque todo mundo está pensando em outra coisa, em si mesmo, nos próprios problemas. Na própria apresentação.

- Ah...

- "Ah", é. Foi o que pensei.

Na jukebox alguém coloca uma ficha e aperta dois botões: linha e coluna. B-42. Era um disco antigo, mas por algum motivo a máquina não desceu a agulha no lugar certo. Ficou ali, pendurada, tocando silêncio no Clube por alguns segundos, até que o dono da ficha fez algo que o botaria pra fora do bar - deu um tapa na lateral da jukebox, como se fosse máquina de pinball.

Joshua deu um tapa nele e mandou dali pra fora, mas a ação já fora tomada. A jukebox começou a tocar um disco antigo, mas que não era o da posição B-42. Ficaria pra outro dia, o colapso dos multiversos...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O Conto do Bosque


Jonathan estava sentado na cadeira de madeira, um móvel bem trabalhado e confortável, há tempos não se sentia tão descontraído, na verdade, apesar da companhia do que parecia ser toda a família de sua namorada. Era difícil, em Londres, encontrar uma casa tão grande e tantas pessoas com laço de sangue no mesmo lugar sem iniciar uma guerra civil. A grande família constituía uma cena rara: estavam todos ao redor da mesa enorme, diversas bandeijas dos mais variados pratos ingleses; vinho e cerveja nos copos, refrigerante e suco para as crianças. Em algum lugar da geladeira, sobremesas variadas esperavam para comparecer ao jantar. Conversas animadas se cruzavam por toda a sala de jantar e Jonathan apenas escutava, sentado na cadeira confortável, observando como Monica se entrosava entre os parentes. Ele sorria, o que raramente fazia.
Em uma das pontas da mesa, sentado em clara posição de destaque, o pai de Monica apoiva os cotovelos na madeira, cobrindo a boca com as mãos. Seu rosto parecia escupido em pedra, com traços duros e bem definidos, calvo e com hirsuta barba cobrindo o hemisfério abaixo do nariz aquilino. Ele estudava o rapaz com olhos afiados. Olhos como o de uma águia esperando pelo vacilo de sua presa. “O que você sabe sobre a guerra Jack?”
“É John, papai”, disse Monica, aborrecida. Ela esperava esse comportamento do patriarca, mas mesmo assim ficava chateada com os testes de seu pai. Sabia que não deveria apresentar seu namorado naquela data específica.
Jonathan ficou calado por algum tempo, buscando todas as informações que seu cérebro mergulhado em hormônios adolescentes conseguia juntar. Não era muita coisa. “Qua...”, fez um ruído estranho ao limpar a garganta e seu rosto explodiu em escarlate, “qual guerra?”
“A única que foi combatida por razões legítimas, qual outra?”, ele deu uma risada sínica e olhou para a mulher. Ela disfarçava o embaraço que sentia, encarando o peixe frito no próprio prato. Um silêncio pesado caiu sobre a mesa.
“Papai, não comece, por favor.”
“Conte a história do vovô, papai!”, pediu umas das irmãs de Monica. A mesa toda concordou em uníssono.
O velho descobriu a boca e a limpou com um guardanapo, assumindo uma linguagem corporal totalmente diferente. Agora ele sorria com o canto dos lábios finos. “John”, ele parecia cuspir a palavra, “vou te contar sobre meu pai. Ele nasceu em uma época de homens duros, de vida dura. Os fortes venciam, os fracos morriam, era simples assim. Não havia essas porcarias eletrônicas das quais vocês sobrevivem hoje em dia. Nada de celulares, computadores, cento e cinquenta canais na porcaria da televisão ou as coisinhas todas com a marca da maçã. Vocês crianças parecem zumbis! Uma guerra faria bem para sua geração, ouça o que estou dizendo.” Ele parou e terminou o vinho que estava na taça. Pegou uma garrafa qualquer e bebeu diretamente dela. Um fio vermelho escorreu pelo canto dos lábios finos do velho. Para Jonathan, o vinho que escorria parecia sangue. “Uma vez por ano eu conto a história de meu pai e como ele sacrificou sua vida por aquilo que acreditava. Eu gostaria de contar ao redor de uma fogueira, vestindo o uniforme que ele usava e depois disparar algumas balas nas árvores da floresta em sua homenagem, acompanhado apenas das pessoas que amo... mas agora você é família, independente de minha opinião. Então, escute e aprenda algo de útil.”
Segurando um copo de cerveja, Jonathan sentiu o suor tomar conta da palma de sua mão.
O velho ficou de pé e começou a narrar: “Meu pai estava em na linha de batalha há um ano e quatro meses quando morreu. Conseguia disparar um rifle cinco vezes mais por minuto do que os soldados bem treinados normalmente conseguiam. Algumas cartas que irmãos de arma escreveram sobre ele dão a impressão de que era uma máquina perfeita, um soldado ideal para seu país. Eu me lembro do dia em que ele foi embora, mamãe chorava e meu irmão mais novo ainda estava no colo dela. Não entendíamos o que estava acontecendo e porque meu pai tinha que ir embora. ‘Para lutar contra os homens maus’, foi a última coisa que ele me disse. Depois disso, sumiu pela porta e nunca mais voltou para nós. Quando ele foi para a guerra, nossa casa não era mais a mesma, acho que isso aconteceu em todos os lares tocados pela guerra... em todas as guerras, para todos os países. A terrível ausência, o silêncio da falta. Escutávamos pelo rádio as notícias da guerra e vivíamos os desesperos de algumas pessoas que recebiam a mais temida das notícias, quando uma carta avisava que apenas um corpo, quando muito, retornaria para casa. No dia que minha mãe recebeu a carta anuncianado a morte dele, ela não chorou: reuniu todos os filhos e explicou como o pai daquelas crianças fora um soldado honrado e que não deveríamos chorar, se não por orgulho e compaixão por todos aqueles que ainda sofriam por toda a Europa. Ele morreu em julho de 44, sabe do que estou falando, certo?”
Jonathan negou timidamente, com movimentos lentos de sua cabeça.
“Sempre os melhores, eh, Monica?”, o velho balançava a cabeça junto com o jovem do outro lado da mesa. “Segunda Guerra Mundial. Hitler, nazistas, Dia D... Você precisa ler mais. Meu pai lutou no Dia D. No dia da invasão da Normandia, dia seis de junho de 1944, as tropas norte-americanas de paraquedistas pulou às cegas e praticamente todos os soldados ficaram longe dos alvos anteriormente planejados; enquanto milhares de vidas acabavam entre as marés daquele dia, outros milhares de soldados vagavam aleatóriamente entre fazendas e pastos. O caos tomou conta do interior da França. Soldados americanos, britânicos, alemães... todos eles vagando entre as pequenas cidades sem armas, sem provisões, sem seus companheiros de treinamento. Desconhecemos o tempo que papai ficou vagando sozinho, mas sabemos que ele morreu nos primeiros dias que seguiram o Dia D e por todo esse tempo ele lutou contra o inimigo, servindo sua pátria e suas crenças. Acho que na manhã do dia sete ele se encontrava completamente armado, com um rifle, uma baioneta e duas granadas de mão, mas na confusão da noite anterior, ele estava sozinho no meio de um bosque. Ele escapou de facas e balas, a única baixa fora seu cantil, que tomou uma bala para salvar a perna esquerda e, provavelmente, sua vida. Sua garganta devia estar seca, raspando; o estômago roncando; as forças ameançando escapar de suas pernas a cada passo, a cada metro percorrido. Consegue imaginar isso rapaz? Foi quando ele escutou uma arma sendo engatilhada. Antes que pudesse achar cobertura, estava cercado por cinco soldados inimigos. Apenas um deles estava armado. Papai não hesitou: disparou três balas rapidamente e, quando o cartucho vazio pulou da câmara, três inimigos estavam mortos, entre eles o que estava com o rifle. Com a baioneta, abriu o abdômen do quarto homem e perseguiu o último inimigo, abrindo sua garganta quando o alcançou. Eles tinham mais munição, um pouco de ração, água e mais três granadas. Assim ele passou o dia, escondido entre as árvores do bosque, matando inimigos. Pequenos agrupamentos se formavam na área, mas logo eram dizimados por um único soldado. Até hoje dizem que o espírito de meu pai habita aquelas árvores e, nas noites calmas, é possível escutar o grito de terror dos jovens com as tripas espalhadas pelo chão.”
“Que horrível, papai!” Monica estava pálida. “Que tipo de homem você quer mostrar para John? Que homem é capaz de fazer essas atrocidades?”
O velho esmurrou a mesa com os dois punhos antes que ela pudesse soltar mais uma única palavra. A mãe de Monica soltou um pequeno grito, uma garrafa de vinho virou e esparramou o líquido na toalha branca, o que fez John pensar em sangue derramado em um amontoado de folhas podres. Os convidados não sabiam para onde olhar; no outro cômodo, um bebê começou a chorar e uma mãe pediu licença da mesa de reunião. Apenas uma chama viva naquela casa havia: os olhos de um homem que admirava a força de um soldado determinado.
“Atrocidades?” Ele tentou se acalmar em vão e gritou a mesma palavra, cuspindo gotas de saliva que se misturavam ao vinho derramado: “Atrocidades? Ele estava em uma situação de vida ou morte! Você sabe o que ficar cercado por inimigos e lutar para viver, sem saber se verá a próxima lua ou até mesmo até a próxima refeição?”
“Você sabe?” Ela retorquiu em um tom desafiador.
O velho desabou na cadeira, reprimindo rapidamente um esgar no rosto. Uma lágrima solitária caiu de seu rosto. “Não... não é como se ele gostava do que fazia. Apenas entendia a situação em que estava. Um soldado, quando perdido em território hostil, tem duas opições, filha: ou deixa as sombras de seu coração tomarem conta de quem ele é ou ele se deixa abater e, na melhor das hipóteses, se torna um prisioneiro de guerra, o que também significará sua morte na maioria das vezes. Ele lutou, isso é um fato, puro e simples. E me orgulho disso, você deveria também.” Desvirou uma taça e a encheu de vinho. Dois longos goles lavaram sua garganta cansada.
O cérebro de Jonathan lutava para organizar o saber fragmentado que tinha sobre história. Deus, como era ignorante!
“Ele escreveu para seu bisavô, Monica. Pouco antes de morrer, talvez no último momento de calmaria em que fora poupado dos terrores da guerra. Ele dizia que olhava para os mortos, via os olhos abertos, sem vida, sem enxergar a beleza do bosque que os cercava. Pensou em quantas irmãs iriam chorar sobre o corpo dos valentes irmãos, de quantas crianças ele tinha roubado a chance de nascer. Por fim, se perguntou quantos amigos teria feito entre os mortos, fosse outra a situação. Meu pai sempre teve certeza da necessidade de lutar, de expurgar tudo que havia de errado em sua nação e, em parte, no mundo todo. Mas naqueles momentos ele fraquejava. Acho que qualquer penamento muda quando nossas mãos estão sujas de sangue. Na manhã do que pode ter sido o Dia D mais quatro, um grupo de amigos entrou no bosque. Ah, que reunião deve ter sido! Como seu pobre coração saboreou os olhares livre de julgamento. Pelo contrário! Olhares de orgulho e admiração! Ele escreveu essa última carta e, poucas horas depois uma tropa inimiga invadiu o território. Centenas de homens fechando o cerco sobre dez, quinze soldados. Organizaram uma defesa precária e protegeram cada centímetro que tinham. Bang, bang, bang.” O velho segurava um rifle invisível, fazendo mira com um único olho enquanto disparava suas balas mentais. “Trinta inimigos estavam no chão e treze deles ainda resistiam, atirando, arremessando granadas, protegendo-se mutuamente, sobrevivendo. Aposto que a maioria deles pensava em algum bolo de carne que estaria nas mesas de sua cozinha, quentes e saborosos, tenros como uma boa carne é; pensavam na voz de suas mães, no delicioso cheiro que escapava do cabelo de suas amantes... até mesmo no ladrilho do banheiro de suas casas, lugar para o qual nunca voltariam. Todos eles, excluindo seu avô, ignoravam pelo quê lutavam, apenas lutavam porque os homens poderosos mandaram cartas para suas casas. Seu avô, Monica vestia as cores da bandeira e tinha convicção em seu líder. Não era a guerra deles, mas morreriam por ela. Quando restava apenas ele, sei disso porque os sobreviventes do outro lado da batalha contaram depois da guerra, papai ficou de joelhos na terra úmida de sangue, braços caídos, ombros baixos e queixo encostado no peito, como morto. Quando soldados inimigos estavam perto dele, tirou o pino de uma granada que roubara no primeiro dia que passou escondido nas moitas do bosque e se explodiu com outros oito homens. Setenta e cinco inimigos mortos para eliminar quinze bons homens de nossa pátria.” Mais lágrimas caíam agora. “Por isso, todo ano nos reunímos no primeiro sábado depois do dia seis de junho para lembrar de meu pai. Esteja bem, velho, onde estiver. Esteja bem.”
Jonathan enclinou na direção de Monica e sussurrou: “Não deveríamos ir para o túmulo de seu avô e dizer umas palavras?”
O velho se levantou da mesa e andou até o namorado novo de sua adorada filha.
“Não dá”, Monica respondeu, “a ossada foi levada para a Argentina quando ele ganhou uma cerimônia por lá. Mas não podemos entrar mais na Argentina, depois eu te explico melhor”.
John, filho de judeus e ignorante dos fatos históricos, apenas concordou com a cabeça e se levantou, apertando as mãos firmes de seu sogro. Ele se perguntou se ela era judia, seus pais ficariam felizes. Monica parecia um nome judeu, afinal.
“Espero que esteja de acordo com nossas crenças, mesmo morando aqui na Inglaterra. Espero que partilhe nosso ideal”, disse o velho.
            “Claro, claro”, ele respondeu com determinação na voz. Ele ainda tentava se lembrar sobre o que tinha estudado do Nazismo para uma prova de História.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

por toda a parte

Um homem entra no Clube. Roupa alinhada. Desespero no rosto. Aproxima-se de Joana, quero uma caixa de fósforos. Olha as prateleiras de bebida e completa, e a bebida mais forte que tiver. Ela olha de esguelha, mas a nota da onça amarela brilha no balcão sujo e a convence.

Ele tromba na saída com Jakis, outro frequentador do Clube que tem nome americano, embora seja mais brasileiro que a caipirinha. Curioso e preocupado, acompanha o trajeto do homem que dá a volta no local, rumo a queimada carcaça de caminhão nos fundos.

No emaranhado de lata agonizante há uma pilha de papéis. Joga a bebida sobre eles, deixando Jakis depressivo pelo desperdício, e acende um, dois, três palitos de fósforo. O fogo ilumina o ambiente. Alguém no mictório do clube os observa pela janela. O homem ri desenfreadamente, dança em círculos.

Jakis decide se aproximar, o homem antecipa o encontro e o abraça. As roupas alinhadas não anulam os dias sem banho. O homem não parece bêbado, apenas alterado de alguma maneira.

"Pronto, pronto. Está feito", ele diz, olhando nos olhos de Jakis, como se ele fosse testemunha de um acontecimento único.

"O que, meu velho? Para mim você gastou só uma boa bebida", responde a ele.

O homem lhe entrega o que sobrou da garrafa como saudação. Prossegue. "Encontrei duas... Não, não, três caixas de minhas anotações feitas há mais de seis anos atrás. E, por Deus, são horríveis. Eu precisava dar um jeito nisso imediatamente. Olhe, olhe, deixei esse pedaço como recordação" e estica na sua frente uma página rabiscada. Jakis se esforça para ler na escuridão: "Caminho nas ruas imaginando que com uma das mãos aceno para as pessoas e, na outra, empunho uma arma fictícia. Escudo que tenta me proteger dos outros. Proteger a alma que nunca se fecha." Ergue os ombros, tanto faz. Não entende aquilo que leu.

"O problema, meu amigo, é que há muitas histórias no mundo, entendeu?" Jakis meneia com a cabeça, pensando na garrafa que está segurando. Dá um gole aproveitando o silêncio que fica no ambiente. O homem ergue a mão como quem ignora o comentário e começa a jornada de volta para casa.

Jakis volta ao clube, percebendo que ficou com o papel ofertado pelo homem. Senta no balcão, conta a Joana o acontecido e a entrega o texto. Ela lê rapidamente, dobra-o e coloca dentro do sutiã.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

do mundo, uni-v

- Você já reparou no muro pra lá da janela, no banheiro aqui do Clube? Tem uma janela específica, em cima de um dos mictórios, e dela se vê um muro. Há qualquer coisa escrita em letra corrida, marcada, com tinta indignada. Um tipo de protesto, creio. É possível ler "nheiros, lutemos contra o Est.../ ento da dívid.../ der é nosso! Vamos, trabal.../ r um mundo nov..."

A cerveja esquentava.

- Não, nunca reparei. Que tem demais?

- Nada, na verdade. É que na frente desse muro há um caminhão estacionado. Estacionado pra sempre, rest in peace, porque a caçamba foi toda queimada e a cabine está derretida pela metade. Dá pra ver, através do parabrisa que não existe, o volante derretido, feito vela velha com a cera pendurada, estalactite de borracha. E os bancos, também, molas pulando através do couro rasgado, chamuscado. Carroceria enferrujada por sob a fuligem.

- E que tem?

- É que por mais importante que venha a ser a mensagem do muro, não consigo deixar de olhar o caminhão. Dá pra imaginar o quanto de histórias passaram nele? Aquele incêndio, a dor, a morte, a carga perdida, congestionamento, estradas manchadas de óleo vazado. Ou, de repente, só o fogo começando ali, num caminhão estacionado. Sem chance pra se defender.

- Ou o homem escrevendo no muro tacou fogo no caminhão que conduzia policiais que faziam campana pra prender qualquer um que escrevesse num muro na noite fria e escura de um tempo antigo, sabe como é.

- É. Sei.

- Há histórias por toda parte.

domingo, 10 de junho de 2012

Joana Nas Alturas

Se Joshua fosse inteligente, realmente inteligente, não seria dono de um bar. Dificilmente saberia que Joana chegava antes do expediente, enquanto ele estava no escritório fazendo contas, e retirava uma nota pequena da caixa de emergências.

Mesmo que evitasse beber nas horas de trabalho, o ambiente esfumaçado e alcoólico deixava o clube etério. Nunca sabia ao certo a quantia que estava na caixa e, por via das dúvidas, colocava mais algumas notas lá dentro.

Joana, com óculos de sol grande e bem redondo, utilizava sua chave da porta lateral e permanecia a espreita. Certificava-se de que Joshua estava no escritório e, quase na penumbra, tateava a caixa e retirava o dinheiro. Para ela, o dono sabia dessa rotina, mas o que poderia fazer, pensava.

Ao menos duas vezes por mês ela precisava desse dinheiro para comprar maquiagem de emergência. Esconder as marcas que o marido deixava em seu rosto. Para ela, o patrão reconhecia os dias de pintura excessiva. Mas se estava realizando bem o seu trabalho, não era de sua alçada intervir em nenhum problema.

Talvez fosse por isso que Joana fosse Joana. A garçonete querida e desejada do Clube, que tratava os homens como nem mesmo suas mães o tratavam. Não a toa, boa parte dos bêbados ocasionais do lugar marcavam sua presença pelo afago caloroso que, mesmo sem tocá-los, ela produzia no ambiente.

Então, duas horas antes do expediente ela ia para o Clube, roubava o dinheiro necessário para a maquiagem do dia, comprava as cores na farmácia mais próxima e passava meia hora no banheiro feminino escondendo a destruição que o marido causava. E nesse pequeno espaço de tempo ela se transformava daquela mulher violentada pelo marido na mulher que todos conheciam.

No espelho confirmava seu talento para maquiagem. Sabendo que somente ela via as marcas que estavam embaixo. Como era comum, avisava a Joshua que estava no trabalho colocando a primeira música da noite na jukebox. Deixava que o som inaugural daquela noite lavasse sua alma e os pecados do marido. Agora ela era Joana. Ponto Final.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A Curiosidade Bebeu a Cerveja


“A curiosidade matou o gato.” Olhavam para a geladeira, ambos sem coragem para abrir a porta branca e enferrujada do eletrodoméstico antigo. Ímãs com propagandas de pizzarias, padarias ou videotecas se espalhavam pelo branco sujo, ímãs de todos tamanhos e formatos. Havia até mesmo o número de uma prostituta. Juravam que não sabiam quando ou quem tinha colocado aquele exemplar na geladeira. Schrödinger tinha a voz rouca, parecida com a voz dos investigadores de polícia nos filmes preto & branco que passavam na televisão durante a madrugada. Ele gostava da própria voz e achava que os anos com três maços de cigarro diários tinham deixado ao menos aquilo de bom. Uma voz forte, com um quê sexy. Pelo telefone ele conseguiria qualquer mulher, tinha certeza. Afinal, era difícil ver aquela barriga redonda e dura pelos fios da comunicação em massa.
“O que é agora? Que merda é essa sobre o gato? Não estou vendo gato algum.” Ele lambia os lábios. Sempre que passava por algum stress ficava com os lábios secos. Odiava aquela sensação: coração parecendo bateria de alguma banda de metal, os ataques sucessivos de piscadelas no olho direito, o suor que escorria pela testa enrugada. Logo teria que tomar algo para controlar a pressão. Merda. Esse suspense ainda me mata. Ao menos não tinha a veia pulsante de Schrödinger.
O sol não entrava suavemente pela janela do apartamento. Ah, o sol explodia pelas janelas do apartamento, sem qualquer misericórdia, sem piedade. Ele estava lá para ter certeza de que ninguém ficaria confortável. Se deixassem as cortinas fechadas estariam suando como dois porcos gordos em poucos minutos. Precisavam do pouco vento que entrava nos cômodos, ainda que morno e carregado pelo cheiro ácido das pessoas que passavam na rua. A geladeira, pobre máquina que lutava contra seus anos de fabricação chinesa, funcionava quando conseguia. Quando não, suportava alguns chutes em seu motor e acordava novamente... talvez pela última vez.
“O gato... você sabe, o gato do meu tio-avô.” Sempre que podia ele lembrava as pessoas que vinha da linhagem do famoso físico, principalmente agora que todos falavam sobre o gato. “Sempre acreditei que essa expressão surgiu por causa do E”, tentava não se irritar da forma como falava do verdadeiro Schrödinger com tanta proximidade. Erwin era simplesmente ‘E’ nas suas histórias. Como se fossem melhores amigos. Talvez ele tanha ficado com o famoso físico apenas uma única vez em toda sua vida. Quando era bebê. E provavelmente estava dormindo. “Pense comigo. O E escreveu que se você colocar um gato com um frasco de veneno em uma caixa e a fechar, o gato pode tanto estar vivo quanto pode estar morto, certo?”
De novo a história do maldito gato. Suor escorria por todo seu corpo. Estava em uma cozinha ou dentro de um forno? “Sim, eu sei do paradoxo, você contou milhares de vezes.” Pegou a toalha que tinha pendurada no pescoço e enxugou o rosto. O tecido fedia sua própria essência.
“Paradoxo não! Paradoxo é quando algo não deveria acontecer mas acontece... como viagens no tempo. Nesse caso nós temos duas possibilidades. O gato está vivo e está morto, percebe? Se não abrirmos a caixa, isso dentro da janela de tempo em que o felino levaria para morrer de inanição, o bichano pode ter estourado o compartimento de veneno e estará espumando por todos os buracos, morto, morto, mortinho. Mas, e esse é um grande, gra-aa-ande mas, o gato pode ter ficado esse tempo todo apenas dormindo, como um anjinho. O veneno no frasco, e o bicho pula para o mundo na primeira fresta.”
“Sim, sim. Repetições, considere sua queda para contar a história do Gato de Schrödinger. Eu sei das possibilidades, sei da maravilha quântica da incerteza paradoxal. O que não compreendo é o que tem a curiosidade de culpa na morte do seu gato.”
“O gato não é meu. Como poderia ser? É um gato hipotético!” Lançou contra o amigo em uma voz aguda. “O gato está lá, vivendo sua vida ou morrendo sua morte e, excluindo o fato de termos colocado o veneno em um ambiente herméticamente isolado, não temos culpa de nada. Até que a curiosidade nos force a abrir a caixa. Pronto. A curiosidade matou o gato. O gato que estava vivo e morto pode estar morto com certeza. Logo, a curiosidade matou o gato.”
“Tecnicamente seu tio-avô matou o gato. Pra quê colocar veneno com o animal, coitado.” Esticou a mão e agarrou com firmeza o metal frio, pronto para abrir a porta, mas sentiu os musculos retesarem. Por fim, limitou-se a enxugar o rosto novamente com a imunda toalha.
Os dois homens poderiam estar, não fosse o medo terrível que sentiam de enfrentar a verdade, sentados confortavelmente no sofá, refrescando o corpo com cervejas geladas, o frescor descendo pelas gargantas agradecidas, um filme antigo com John Wayne na pequena televisão. Do outro lado da moeda, poderiam estar em desespero, condenado a cruzar o tórrido deserto que era aquela tarde insuportavelmente quente sem qualquer gota do néctar tão precioso e vital.
“A Geladeira de Schrödinger”, disse Schrödinger sorrindo. “Você realmente não se lembra se temos mais cerveja?”
“Não. Acho que vi. Eu vi... não, não tenho tenho certeza.”
“Podemos ter cervja... podemos não ter cerveja. Temos refrigerante? Suco? Chá gelado?”
“Não, não e nunca.”
Ele engoliu em seco. Que dia terrível. “Temo... água?”
O outro apenas abanou a cabeça em negativo.
Schrödinger segurou na borracha que vedava o ar gelado. Quase abriu a porta, revelando por fim seu destino e quebrando a penosa dúvida, mas a coragem lhe falhou no último momento.
Minutos mais tarde, sentados no couro das poltronas e completamente melados no próprio suor, os dois homens tomavam água morna da torneira. As possibilidades continuavam e ambos estavam inseguros se queriam pagar o preço da certeza. Por fim, o neto de Douglas Adams perguntou, apenas para acordar a veia saltitante na testa do distante parente de Schrödinger: “Então, quantos gatos você acha que seu tio-avô matou?”

segunda-feira, 4 de junho de 2012

in your head

"Mãe, pega as crianças e vai pra longe. Pra casa da vó, se possível. O tio sabe o que fazer, vocês podem ficar lá um tempo cuidando da terra. Não vai faltar comida, e é fácil se proteger na fazenda se alguma coisa acontecer. O caseiro vai dar uma força. Os filhos dele são bons, dois eram do exército, o outro é enfermeiro. Vai dar tudo certo."

- Sai desse telefone, porra! Não podemos ficar isolados.

Joshua não gostava quando se penduravam no telefone velho, no telefone do Clube. Volta e meia alguém ligava para dar as más notícias, do tipo morreu-alguém, do tipo o-filho-é-teu, do tipo a-polícia-tá-indo-aí. Por isso ele não gostava de gente pendurada no fone, empacando ligação. Mas essa era a primeira vez que Joshua queria o telefone livre pra poder, caso preciso, ligar pra alguém. Naquela situação era sempre bom ficar informado.

"Não esperem por mim, mãe. Estou muito longe e acho que em poucas horas nenhum caminho vai ser seguro. Em poucos dias, com certeza nenhum caminho vai ser seguro. Quero vocês na fazenda ainda hoje, e não se preocupem comigo."

Na mesa do lado, perto do telefone, um casal brigava quando a mulher se tornou num monstro. O homem se apavorou, cadeira pra trás, caiu no chão. A mão que não segurava o fone segurava um canecão de cerveja forte, canecão pesado da Oktoberfest, 92. O caneco voou no coco, a mulher que já era zombie morreu ali, com cerveja escorrendo pelos seios fartos, pela pele podre. O homem caído no chão chorou. O do telefone só resmungou um pouco: Joshua!, outra cerveja por favor.

"As crianças sabem o que fazer, também. São mais espertas que o tio, mas o tio é mais forte. Diz pra elas que eu mandei um beijo e pedi pra tomarem cuidado, tomarem juízo e tomarem bastante coragem pra encarar o que vem aí. Elas são espertas, vão conseguir. Diz que um dia encontro com elas."

Um rapaz que estava bêbado agora estava morto, e trançava as pernas caminhando pro balcão. Bateu na jukebox, trombou, caiu, um disco lá de dentro começou a tocar música irônica e Joshua sorriu. Saiu de trás do balcão com um bom pé-de-cabra, arrebentou a cabeça bêbada caída ao chão e, puxando pelos pés do cidadão, jogou lá pra fora do bar.

Joana estava sentada sobre uma mesa, perto da saída de emergência. Fumava um cigarro, pernas cruzadas e cara de tédio. Na mesa de bilhar um velho gordo começava a virar zumbi. Ela conhecia o paquiderme, maldito cliente porco rico nojento e grosso, do tipo que faz piada com garçonete e acha que todas têm que gostar. Que todas têm que dar pra ele. Fumava um cigarro sem cara de tédio, agora. Pegou a pistola e mirou bem com calma. O gordo se transformava. Mirou. Cééérebros. Blam!

Gordo caiu.

Não demorou muito e Joshua já tinha jogado o balofo fora, também. Com o tiro, tirando o homem do telefone, no Clube não tinha ninguém. Tirando Joshua e Joana, é claro.

"E não esquece, mãe: não pode ter compaixão. Quando começa a doença, não tem mais jeito. Não tem mais jeito. Se vir alguém se transformar, se for a pequena Andrea, se for teu irmão, mãe, não tem jeito! É ele ou você. E você tem que cuidar das crianças, não esquece. Depois do vírus, sem compaixão. Acerte a cabeça."

Do lado de lá da linha o tempo de gravação acabou. A mãe não estava em casa, mas o recado talvez fosse ouvido. Ele não sabia. Fosse como fosse, não havia mais o que ser feito. Agora era pegar a estrada, pegar comida, pegar o resto de mundo que sobraria, dali pra frente. Sorriu. Era um bom dia.

- Tchau! Cuidem-se
- Você também - disse Joana.

Depois que o homem saiu, saiu do banheiro um zumbi. Joshua já estava cansado, deu a volta por trás do desmorto e o foi empurrando pra fora. Quando pisou na calçada, a porta do Clube fechou. Diante dos olhos tortos do homem morto um cenário novo se abria.

Era um bom dia.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Dez Minutos dos Mortos


O telefone tocou. Ela pulou da cadeira e correu o mais rápido que conseguia até a sala, derrubando a cadeira onde estava e um vaso no caminho até o aparelho. Normalmente o som do telefone ficava no segundo nível, alto o suficiente para ser notado, mas em um tom que não ameaçava destruir a existência de vida na Terra todas as vezes que alguém ligava para ela. Mas havia algo naquela ligação que fazia o telefone berrar no tom mais alto que seus pulmões mecânicos conseguiam suportar. Quem usa telefone hoje em dia?, ela se perguntou. Que coisa dos anos 90!
“Vo... você está com a televisão ligada?” A voz que vinha do outro lado da linha (em um celular, ela notou... como qualquer pessoa normal), estava trêmula. No fundo ela ouvia pessoas gritando e vidros sendo quebrados.
“Não.” Ela respondeu e ficou parada. Viu que a água que estava no vaso derrubado se espalhava pelo chão da sala, junto com terra e pétalas dos girassóis. Os gritos vindos do aparelho continuavam, mais altos e longos a cada segundo, gritos de desespero e dor.
“Ligue logo! Canal 21”, a voz buscava por ar entre as palavras. Ele devia estar correndo. Faça algo! Seu cérebro gritou, forçando seus músculos a, finalmente, se movimentarem. Achou o controle da televisão e ligou. A imagem piscou na tela de plasma antes de se estabelecer. O que ela viu afundou seu coração. De repente seu estômago estava de ponta cabeça e a gravidade se desligou por um único segundo. Ela se apoiou no sofá para não rachar a testa no piso duro.
A imagem era confusa, muita coisa acontecia ao mesmo tempo em uma sobreposição de camadas que formavam um cenário completamente caótico. A primeira coisa que ela notou foi o carro pegando fogo no canto esquerdo da tela. Ao lado do automóvel, havia um corpo estendido, sangue ainda fresco escorria no asfalto do mesmo modo que água com terra se espalhava em direção ao tapete branco de sua mãe. Pessoas passavam correndo ao fundo, carregando sacolas e malas. Um homem, ela viu em um estado surreal, portava um facão. Ele balançava o instrumento sobre sua cabeça e ameaçava qualquer um que estivesse ao seu lado. No centro da imagem estava uma repórter. A garota raramente ligava a televisão, usando-a principalmente para assistir reprises de filmes de horror, nunca para jornal. Jornais são depressivos demais, ela sempre dizia em sua cabeça. A mulher que segurava a o microfone vestia um terno rasgado em um dos ombros, onde a manga fora completamente descosturada. Ela sangrava no mesmo braço. Estava pálida e o batom vermelho que usava estava combinando com o sangue que manchava sua roupa.
Henry cruzou a tela, correndo com o celular em um dos ouvidos.
“Ligou a televisão?”, ele perguntou talvez pela décima vez.
“Sim... acho que vi você.”
“Escute... não faça mais nada... só escute o que eles estão falando.”
Ela subiu o volume apertando um botão no controle. “...us começou a se espalhar. Repito, cientistas não sabem quando o vírus começou a se espalhar, apenas que ele controla os infectados. Boletins da Europa e da Ásia também confirmam que os exércitos estão tomando as ruas para controlar o surto que, aparentemente, é global. Por favor, não saiam de casa, tranqu-”. A mulher se abaixou rapidamente, alguns instantes depois uma rajada de tiros tomou conta da cena; uma explosão sonora nas caixa da televisão.
Na faixa inferior da televisão ela leu: “Redes sociais são tomadas com alertas sobre a ‘Infecção Zumbi’...”
“Não pode ser sério”, ela disse baixo.
“Isso é tão sério quanto... bom, quanto poderia ser. Parece que-”, mais tiros. “Parece que mais de dez mil pessoas já estão infectadas. A merda é séria. Os que pegaram o vírus começam a atacar em menos de cinco minutos, mas nada de comer cérebros. Eles correm para sua jugular e fazem um banquete do seu corpo. Até as os intestinos, pelo que estão falando.”
“Onde você está?” Voz estável, batimento cardíaco normal.
“Uns... uns quinze minutos. Fique pronta, vamos sair da ilha, mas vamos ter de correr, nenhum carro conseguirá andar muito.”
“Estarei pronta em dez minutos... não morra.” Ela desligou o telefone.
Fechou os olhos e focou sua mente na própria respiração. Assim permaneceu por um minuto. Quando abriu os olhos, qualquer um poderia ver a determinação e força de vontade no brilho de suas retinas. Ela sabia o que fazer.
Foi até o banheiro e apanhou uma tesoura na segunda gaveta e com poucos cortes deixou grande parte de seu cabelo na pia. Cabelos compridos não combinavam com aquele cenário e ela não se importou com o sacrifício necessário, preferia ter uma cabeça raspada do que ser agarrada pelos longos cabelos.
Andou rapidamente até o armário do quarto principal e achou uma mochila de acampamento. Esvaziou-a de antigos papéis de viagem, amassando canhotos de passagens de ônibus e bilhetes de embarque em vôos internacionais. Havia um bilhete de trem. Empilhou latas de legumes e sardinhas, separou alguns litros de água potável e socou na mochila algumas roupas. Procurou pilhas para a lanterna, pegou caixas de palito de fósforos e a embrulhou cuidadosamente em um saco impermeável, antes de fechar o zíper, colocou uma foto de sua família. Sabia que era inútil se prender ao passado. Estavam todos longe e a probalidade de revê-los era agora muito remota.
De todo modo, ela sabia, eles iriam apenas diminuir suas chances de sobrevivência. Ela sabia que o vírus se espalhava rapidamente, ‘em progressão geométrica’, os especialhistas no cenário apocalíptico diziam constantemente. E, olhe só, eles estavam certos. Ela prontamente assumiu que todas as lendas sobre zumbis eram verdadeiras: secreções corporais transmitiam o vírus, o status da humanidade se igualava ao de ‘gado’ para os zumbis. Dois tiros na cabeça, manter a boa forma, cuidar do cardio, nunca ficar sozinha e sempre manter a contabilidade da munição. Ela sabia tudo. Por dentro, tentanva controlar uma felicidade aparentemente incontrolável.
Levantou o tapete branco da sala, sujo de lama em uma das extremidades e deslocou o chão falso. Sua boca salivou com a visão do conjunto de facas e do pequeno machado de aço puro. Quando testou o corte do machado, seu dedo sangrou com a leve pressão que colocou na lâmina. Prendeu o cinto especial em sua cintura e colocou cuidadosamente as facas em cada lugar específico, deixando o machado por último. Por fim, colocou as duas pistolas automáticas por baixo da calça e o saco com diversos pentes na mochila.
Estava pronta.
Seu objetivo era sobreviver. Sentia um incômodo alívio, alívio por não precisar mais se preocupar com empregos, com os absurdos da vida moderna. Adeus e-mails, adeus contas, até logo pessoas imbecis de suas redes sociais. Havia a morte em cada esquina, ela bem sabia. Mas um sentimento de alegria aos poucos tomava conta de seu peito.
Quando o telefone tocou novamente, um pressentimento horrível cruzou seu corpo. Aquela ligação, ela sabia, iria destruir sua vida.
“Alarme falso!” Ele gritou em seu ouvido, felicidade e alívio se misturavam nas palavras. “Parece que os boletins eram falsos... Está tudo uma bagunça por aqui, mas era tudo falso”, ele ria entre as frases.
Ela desligou o telefone e ligou a televisão no mudo. Na mesma barra inferior, leu dessa vez: “Ataque Zumbi foi a piada do século. Cinco franceses acusados de começar a brincadeira em uma mensagem para um amig...” As palavras não faziam sentido. Ela sentiu todo seu mundo ruir.
Tinha feito esgrima, aulas de tiros, treinamentos de resistência e agilidade. Estava pronta, mais pronta para o ataque zumbi do que para seu cotidiano, conseguir um emprego e criar uma família. Começou a desfazer a mochila, pensando no que iria cozinhar para o jantar. Sentia-se vazia.
Agora que não havia mais o fim da humanidade nas mãos de mortos-vivos, ela não sabia o que fazer com sua vida. Suspirou profundamente e colocou o pijama mais confortável. Em meia hora estava comendo sucrilhos enquanto jogava em seu computador, explodindo cabeças de zumbis com seu mouse.