sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Voz de Capote


Larry entrou no quarto abafado. O cheiro do mofo impregnou imdediatamente em suas narinas e ele teve de suprimir uma urgência de espirrar, tampando o nariz com os dedos polegar e opositor, enchendo seus olhos de lágrimas.
“Desculpe pelo cheiro”, o homem disse com uma voz aguda.
“Não se preocupe. Eu convivo com essa alergia desde criança... é o mofo, essa cidade inteira está tomada pela maldita umidade”, Larry respondeu, abrindo o zíper do casaco.
A mão rápida do homem gordo voou para o coldre em seu peito e Larry congelou, travando cada músculo do corpo. “Devagar, rapaz.” Ele ergueu lentamente uma das mãos, mostrando a palma limpa e continuou a baixar o zíper, desta vez com calma, quase um trinco por vez. Pensou em um pequeno trem percorrendo lentamente um deserto devastado. “É estupido”, constatou a voz fina.
“O que é estúpido?”
“Alguém intolerante ao mofo morar em uma ilha. Você é estúpido.”
Larry terminou de abrir o casaco e mostrou o envelope preso ao cinto. “Não posso contra-argumentar. Colocado assim, parece estupidez, realmente.” Estudou o outro homem. Romsey era o tipo de pessoa que não parecia ter nascido pela vagina de uma mulher, mas talhado em uma pedra. O queixo quadrado fazia o professor pensar nas cabeças da Ilha de Páscoa e os olhos pequenos pareciam perdido no meio do rosto angular. As orelhas eram duas pequenas bolas nas laterais da larga cabeça e o cabelo estava raspado, dando espaço para um lustroso couro cabeludo. O professor considerou se estava diante da pessoa certa e puxou pela memória o número do quarto. Viraria uma lenda urbana, tinha certeza, seria para sempre o cara que entrou em um quarto de motel para contratar um assassino profissional e acabou trancado com um homossexual masoquista. O corpo musculoso e gordo de Romsey ficava de certa forma deslocado com as roupas que vestia: calças bem cortadas, uma camiseta branca por baixo de um colete de algodão verde e suspensórios. Larry via, pendurado no cabideiro, a parte de cima do terno de riscas de giz. Romsey era gordo, mas muito, muito, forte, ele percebeu. O homem era largo e a gordura cobria um armário de músculos capazes de impressionante demonstrações de força bruta. A voz, no entanto, era o mais curioso naquele homem. Larry ouvira as atrocidades das quais era capaz de realizar por dinheiro - um mercenário contemporâneo, Ron havia dito – e presumiu uma voz ao menos mais... máscula. Romsey tinha a voz de uma garota, fina e frágil, até mesmo trêmula. Seria divertido, Ron afirmara. E Romsey de fato parecia capaz de promover diversão. O professor estava estagnado em sua rotina estéril e precisava de alguma emoção para voltar um pouco da felicidade dos dias antigos, quando parecia que precisava correr por sua vida. Ei, aquele cara, um mercenário dos dias atuais, o faria correr por sua vida! Tudo na segurança das regras do jogo. Um jogo, afinal, precisa de regras e não da morte de seu protagonista. Será divertido, pensou enquanto estudava o assassino, ele deve acrescentar uma realidade impressionante na brincadeira.
“Sei no que está pensando”, Romsey disse e só então Larry percebeu o tempo em que estava calado, com os olhos vivos nas órbitas do crânio, estudando cada aspecto do rosto esculpido, parado como um imbecil com os quarenta mil dólares no envelope pardo. Abriu a boca, mas nada disse. “Eu fiz o terno sobre medida, um homem precisa parecer decente nesse mundo poluído.” Olhou com um sorriso para o professor. “Você deveria procurar um médico, há tratamentos para sua alergia. Além do mais, é suposto que tiremos proveito do tempo em que vivemos.” Romsey retirou um cigarro do bolso da calça e o acendeu com um isqueiro dourado. “Então”, continuou enquanto sentava-se na cama, “conte-me as especificações.”
“O joelho direito do alvo não está muito bom e o ombro esquerdo sofreu uma lesão da qual nunca se recuperou totalmente. Ele corre bastante e consegue se esquivar das bolas quando joga futebol. Não é um tolo sem qualquer coordenação, é o que quero dizer. Muito ágil, na verdade, grande habilidade corporal.”
“Sabe lutar?”
“Kung Fu. Fez uns anos de aula quando era adolescente.”
“E nada mais?”, peguntou com a voz de Capote.
“Nada mais.”
“Sem golpes chiques de Kung Fu quando chegar a hora; sem surpresas, certo?”
“Certo. Ele está mais enferrujado do que o esqueleto do Bruce Lee, se é isso que você quer saber.” O cigarro estava caminhando para a metade.
“Alguma arma?”
“O quê?”, a voz dele é realmente engraçada.
“Revólver, espingarda, metralhadoras, um F-16, tacos de baseball, raquetes de tênis, rolo para massa. Armas, cacete. O objetivo porta ferramentas de ataque e defesa? Preciso ser mais claro?” Quando ele gritava, Larry percebeu, a voz se tornava ainda mais estridente. Parecia que seus ouvidos iriam sangrar.
“Não, sem armas, acredite.” Ele disse e sufocou um sorriso com dificuldade. Seria embaraçoso explicar que estava rindo da voz aguda do homem, além de explicar que não estaria mentindo sobre a pergunta. Era melhor não rir diante de um assassino profissional, aprendeu com o filme do Jean Reno.
“Devo perguntar uma vez mais”, o homem disse, apagando o cigarro no cinzeiro. “Você tem certeza de que quer isso? Quando você pisar para fora deste quarto, não haverá volta e irei cair sobre o contrato com a fúria de mil deuses indianos, daqueles com oito braços cada um. Eu vou pegar pesado, vou implodir o mundo do filho da puta nomeado pelo contrato.”
“É exatamente o que eu quero. Não hesite, derrube seu mundo sobre o cara. Essa é a emoção do jogo, certo?”
“Jogo?”, ele parou para pensar. Por fim, sorriu sinceramente. “Sim, acho que você pode colocar dessa forma. O cara nunca vai saber o que está acontecendo, apenas que tudo que lhe é sagrado será queimado com C-4... e quando tudo for destruído, aí sim eu dou o tiro final”, ele bateu dois dedos gordos no centro da testa. “Dizem que quando você atira na testa de alguém, a pessoa ainda sente dor antes de morrer. É minha assinatura profissional, gosto de saber que meu alvo morreu em agonia. É um jogo mental com um final glorioso. É um jogo, sim.”
Que autenticidade! Larry já podia sentir a adrenalina percorrer seu corpo. Seria caçado como um animal, teria de correr, se esconder, fugir. E lutar de volta. Essa era a idéia: acurralado por um predador muito mais forte que ele. Essa era a emoção do jogo. Ron já participara quatro vezes. “Aqui estão os detalhes. Horários, dados de familiares, senhas de e-mail, do banco... tudo que você precisa saber sobre o alvo”, entregou o pen-drive com absolutamente tudo que havia sobre sua própria vida para o assassino. Alea jacta est, pensou. Que os jogos comecem!
Romsey pegou o envelope com o dinheiro e levantou-se da cama, estendendo a mão forte para o professor. “Isso será interessante, Larry. Você é um cara curioso.”
Larry sentiu o aperto firme do mercenário. Sim, sou curioso, acho. Quarenta mil é uma quantia boa, espero que esteja contratando um cara bom para o jogo. O professor fechou o casaco e saiu pela porta. Sem volta, agora tenho que ficar de prontidão 24 horas. Desceu pelas escadas do velho motel e passou pelo recepcionista gordo sem dizer nada. D ma da No te, dizia o letreiro gasto. O motel em estado de abandono, o assassino profissional peculiar, esperando em um quarto escuro... a brincadeira estava no início e Larry sentia a emoção de todo o projeto. Andava sem prestar atenção para onde ia e bateu o ombro, cuja lesão nunca havia curado plenamente, em outra pessoa. Virou-se para pedir desculpa para o outro homem quando viu que um envelope caiu aberto no chão, espalhando centenas de notas verdes. O dinheiro molhado no chão, o envelope pardo, o rosto assustado e fragilizado do homem que se apressava em pegar todas as notas e sair daquele estacionamento...
Um clique foi acionado no cérebro do professor.
Suas pernas tentaram acompanhar a urgência de sua mente e o joelho ruim falhou no meio da escada e ele caiu alguns degraus. Sentiu sangue escorrer por sua perna. Quando chegou no quarto em que estava, chutou a porta, abrindo-a com um estrondo. Vazio. No quarto, apenas a fumaça do cigarro semi-fumado e o cabide sem parte do terno.
“Você é o Larry?”, escutou e deu um pulo. Um homem magro de óculos grossos perguntava, parado na porta ao lado. Ele parecia um lagarto com aquele rosto fino e olhos esbugalhados pelas lentes de correção. Larry andou até ele e empurrou-o com violência, entrando no cômodo vizinho. Viu, com crescente desespero e cruel clareza mental, um par de metralhadoras e pistolas repousadas na cama. Elas pareciam reais, não fossem os sacos de bola de tinta ao lado. “Elas parecem reais, não é?”, o homem magro fez eco de sua mente, com um sorriso orgulhoso. “O jogo é bem legal, você verá!”
‘Irei cair sobre o contrato com a fúria de mil deuses indianos, daqueles com oito braços cada um. Eu vou pegar pesado, vou implodir o mundo do filho da puta nomeado pelo contrato’, escutou a voz feminina do assassino em sua cabeça.
Olhou do parapeito do corredor. O homem com o envelope estava saindo com um carro escuro, sumindo do campo de visão em poucos segundos. O homem com o envelope certo... porra! Com o nome certo para Romsey, Larry pensou. Minha vida acaba com uma bala na testa e a porra da voz do Truman Capote!
Ele tentou planejar o que fazer.
“Está tudo bem, Larry?”, o homem magro perguntou.
Larry então percebeu o que estava acontecendo. O jogo havia começado. O homem do estacionamento, o quarto vazio... o jogo já começara. “Começou, não é? O jogo... o jogo já está acontecendo, certo?”
O outro homem arrumou os óculos grossos no rosto e o olhou com indagação estampada no olhar, perdido, confuso.
“Certo?”, Larry perguntou novamente, com uma voz aguda e trêmula, um pouco parecida com o Capote. Ou com Romsey.

2 comentários:

  1. Bela descrição do cenário! Só eu me lembrei do Concorrente, do Stephen King? Mandou muito bem, Mau!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vini, o concorrente é uma novela do Livro de Bachman? Eu li 2 novelas das 4, acho que pulei o concorrente... Falta ele e o Longa Marcha.
      Obrigado por ler =)

      Excluir