quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Devagar

Otávio não me deixou fazer a limpeza da sala no final de semana. Atrasando minha estréia como escritor com uma sala própria para terça-feira. Limpei o local na segunda, pela manhã, e contemplando o vazio, novamente imaculado, do lugar senti um arrepio.

Me vi em um devaneio em que as personagens que criei apareciam diante de mim, olhando fixamente em meus olhos, esperando que eu tomasse alguma atitude. Lembre-me de diversos argumentos que esbocei e nunca cheguei ao fim. Seria possível que personagens incompletas agonizassem, como um ser vivo, acidentado, sem discernir real ou ficção?

Fechei meus olhos com força e ao abrir, novamente a emaculação do branco das paredes. Tudo não passava de um susto, talvez produzido pelos exercícios que fiz na ultima hora. Para quem passa boa parte de seu dia sentado em uma cadeira, tirar entulhos de um quarto e varrê-lo é uma breve morte.

A tarde, um amigo que convenci para me ajudar nos móveis, contrariou-me a respeito da escrivaninha. Evidente que meu desejo prevalesceu e ela ficou contra a parede de entrada, com uma luminária na ponta e itens básicos para um escritor. Notebook e papeis avulsos, comumente usados para escrever agressões próprias e pendurar pelas paredes.

Eram três horas da tarde quando o cursor do programa de texto piscava incessantemente. A mesma ladainha de sempre. A cadeira que comprei no final de semana era confortável e, como criança, fiquei a girar, falando com voz baixa, uma idéia, uma idéia, tenha uma idéia. Nada veio.

A garganta estava seca e sai da sala, rumo a de pacientes para pegar um copo d´agua. Seria necessário estocar alguns engradados de água, para evitar que eu saísse de lá o tempo todo. Como gostava também de refletir deitado, pensei em comprar um colchão para deixar no canto, mas tive medo que Otávio imaginasse que eu quisesse me hospedar ali. Ou que transformasse aquele local com água e um colchão no chão em um improvisado cativeiro.

Decidi que não era a hora exata para pensar a respeito. Com a sala montada, o local estaria definido. Oficialmente, começaria escrever amanhã assim Hilda abrisse o consultório.

Sai as cinco horas, Otávio ainda estava com pacientes. Não pudemos conversar mas, que diabo, ele estaria presente amanhã. Fui a loja da quadra seguinte e estava pronto. O cartão de visitas que pedi mais cedo. Era um prazer que dediquei a mim mesmo, caso precisasse, nunca se sabe.
Em papel marfim, levemente poroso, com letras pretas. Trazia meu nome, profissão e o telefone para contato. Um símbolo estúpido, confesso, mas que, para mim, significava muito. Além de um local para escrever, as pessoas poderiam me procurar para estabelecer contatos. Era o começo daquilo que gostaria de viver desde que era uma criança.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

moscas

Abro mais uma sentado aqui. O tampo de mármore dessa mesa gela meus dedos mais que a cerveja. Ouço um silêncio da porra, isso sim. Silêncio demais pra mim, até. Esse bar era melhor, tenho certeza disso. Tenho certeza.

Outra vez a porta se fecha. Nem me viro mais para olhar. Só o barulho acusa: um outro filho da puta deixou o salão. Pela reação da atendente a gorjeta foi pouca. Ninguém mais respeita ninguém, ninguém mais.

A cerveja acaba, já quente. No fundo do dente um pedaço de amêndoa resiste. É a única, casca grossa.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Antes de Começar

Entrei no corredor até a porta de ferro. Hilda, a secretária, a abriu com um clique eletrônico à distância. Eram três horas da tarde, pontual como um britânico. Sozinho na sala de espera, sons de máquinas agudas me diziam que o dentista ainda não acabara com o paciente das duas e meia. No teto, uma caixa de som embutida cantava músicas de elevador. Permaneci olhando a caixa oculta até ser chamado.

A consulta era mera rotina. Certificar-me que os dentes estavam em boas condições, como pareciam no espelho. Porém, a consulta não existira sem ela. Sem o momento de alegria rumo a estranhamento, de cinco dias atrás.

Era nossa primeira conversa íntima após muito tempo. Corpos que se aproximam cada vez mais, prestes a se colidir em um beijo. O que aconteceria naturalmente não fosse sua catastrófica halitose.

Meia hora depois dessa cena, sozinho na frente do espelho, fitava meu sorriso. Perguntava-me se haveria algo de errado com eles, algo oculto que, como ela, desse um mal hálito tão arrasador.

Cento e cinqüenta reais por um polimento e curetagem em placas de tártaro. “Não se preocupe, tudo está perfeito. Só encontrei problemas naturais onde a escovação é difícil, procedimento normal”. Um ponto para mim, zero para aquela garota.

Desde minha adolescência, Otávio é meu dentista. Seu profissionalismo e boa simpatia nunca fizeram-me procurar outro. Revê-lo sempre é uma boa experiência para conhecer novas histórias.

A clínica é a mesma há anos, salvos por demãos de tinta. Paredes de madeira antiga, sofás encostados na parede, a caixa de som no teto, do lado direito. Na parte esquerda da sala de espera, uma porta para um pequenino quintal a céu aberto.

Sempre fui intrigado por uma porta nesse quintal, menor que as demais, parecendo um pequeno quarto de brinquedo. Quando a consulta foi encerrada, lhe perguntei a respeito dos quartos. Era uma despensa quase vazia de caixas que precisavam ser jogadas fora.

A idéia de uma porta diferente chamou minha atenção. E num impulso perguntei se poderia ficar com a sala. Um aluguel barato pelo uso de uma sala desperdiçada. Um espaço para trabalhar.

Chegaria no horário que Hilda abrisse o consultório e iria embora no mesmo horário. Faria café, quando tivesse vontade, e não atrapalharia-o de maneira alguma. Usaria o espaço para escrever e, como uso um computador, não teria barulhos das letras da máquina de escrever.

Precavido, Otávio prometeu-me pensar. Mas eu sabia que aquela sala seria minha. Não haveria razão para não me acolher. Primeiro, pela amizade longa que tínhamos, mesmo profissional-paciente, e por um dinheiro extra que não faria mal a ninguém. Talvez a meu bolso.

Dias depois estava eu abaixando-me para entrar naquela porta, após retirar todas as tralhas que pareciam estar lá há anos. Sentei-me no chão visualizando como aproveitaria o espaço. Uma escrivaninha com cadeira no lado contrário da porta. Não precisava de mais.

Após a movimentação da mobília, de segunda a sexta feira eu me encontraria no quarto dos fundos da Clínica Orto Dental do centro sul da cidade, intentando escrever e trazer a tona a inspiração que eu acreditava possuir. Ter um novo espaço me parecia um bom começo, afinal.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

tri(ck)ste(r)

- Claro! Você acha que eu estaria aqui se não quisesse? Digo, olhe pra mim... eu não estaria aqui se não quisesse.

Ela deve estar certa. Sei lá. Se quisesse estar longe, estaria. Ela sabe que eu não iria atrás, de qualquer jeito. Talvez por isso tenha ficado já na primeira vez que pedi. Um convite despretensioso, confesso. Pensei que ela fosse embora...

- ... por causa disso. Claro! Sabe o que eu acho? Pois eu penso nisso todo dia e acho que...

Telefone toca. O do bar, não o meu: eu não tenho. Telefone toca e é pra mim. "Um segundo, meu amor, já volto aqui" e sigo lá para o balcão. Joana flerta comigo no caminho. Joshua pergunta "tá achando que esta merda é call center?". Na verdade não acho nada. Só estou achando estranho terem me encontrado aqui.

- Oye... oye!, amigo, soy Oscar. Sí, sí, estoy en Barcelona. Tengo una... lamentable... una noticia triste. Sí. Cálmate, te lo voy decirla... Es Marília. Ella... ella... se ha matado.

Vejo Joshua com o fone ao ouvido, falando em portunhol alguma coisa que eu não sei. Não sei. Tanto faz. Estou na mesa de novo, a menina me olha estranha e pergunta se tudo bem. "Tudo bem", respondo eu, "claro que tudo bem".

Por que não estaria?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

diálogo em branco

- Você se acha muito esperto. O que eu mais lamento, sinceramente, é isso: você se achar tão esperto. Poderia ser um tesão de vida, se você fosse mais humilde. Ah!, poderia. Meu deus, olhe só, você nem se aguenta em pé. Bêbado. Desgraçado. Estragou a minha vida inteira naquela igreja, pai do céu, por que não ouvi minha mãe? Ei! Odair! Volte aqui agora, Odair. Onde você está indo? ODAIR!

Eu, sentado a um canto, bebia meu outro whisky brindando a Odair.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Homem No Escuro

Fecho meus olhos e estou no clube. A dor cessa por uns instantes e música nasce nos ouvidos. Um homem toca um violão surrado, com barba por fazer e voz arranhada. Se não fosse um blues, sua voz estragaria tudo.

Passeio pelas mesas escolhendo qual delas vou prestar atenção hoje. Pedir uma bebida leve e observar cada mesa. É o que faço a maioria do tempo, observar as pessoas e escrever. Sou um escritor com pouca criatividade, preciso da realidade para tecer minhas fantasias.

Abro os olhos, a casa inerte. Fecho, e a bebida gelada escorre do copo. Meu cansaço não permite que encontre ninguém interessante. Ana está bêbada, como sempre. E não quero fode-la em pensamentos, bastou-me uma vez real. Meus amigos parecem felizes em seu canto, diferentemente de mim.

A noite está mais vazia por dentro do que fora. De olhos abertos, vendo as marcas podres do quarto, ao menos escuto um silêncio que me conforta mais. Meia hora dentro do pub, o velho do folk foi embora, dando espaço para um gordinho cheio de fazer falsetes. Decido ir embora.

Acabo a noite na frente de casa, acariciando um felino com um machucado no rosto. Seu miado são cordas desafinadas de violão. Caminhando para lá e para cá, nas minhas pernas, parece em sintonia comigo. Ficamos os dois lendo o silêncio.