sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A Lanterna


Para Ana Eliza

Joshua pisou na terra dura e cruzou os braços, abraçando o próprio corpo em uma vazia tentando de afastar o frio. Sentia o vento gelado fustigar seu rosto, como pequenas lâminas açoitando a pele macia das bochechas. Ele estava na Desolação, onde nada crescia há milênios e o próprio ar corrompia os pulmões. Estudou as nuvens púrpuras que navegavam o céu com incrível velocidade, quilômetros acima de onde estava. Colidiam em violenta mutação, provocando descargas elétricas não naturais, energia que havia perdido a capacidade de se transformar, existindo apenas para destruir e matar. Joshua pisou na terra manchada pelos resíduos tóxicos e procurou pela Porta. Avançou. Avançou por dias, semanas, eras inteiras. Passo após passo após passo, o jovem caminhou a distância e sobreviveu contra todas as probabilidades, para chegar até o lugar que guardava os segredos para salvar o que sobrava da humanidade. Retirou uma das luvas, puxando primeiro um dedo, depois outro e outro, até finalmente se ver livre do couro, e pousou a mão sobre o metal frio da maçaneta. A Porta era uma contradição à sua importância, pequena e frágil, quase deitada em um inclinação descampada, como se fosse a entrada para um porão.
“Você”, a palavra fez saltar seu coração e ele se virou, antes de ter a chance de girar a maçaneta que tocava. “Você não pode estar aqui na Desolação. Desapareça e fique longe daquilo que não sabe controlar!” Joshua encarou o velho - quase uma caricatura, vestindo uniformes do que parecia ser um maquinista ferroviário e monóculo, segurando uma longa lanterna em uma das mãos - e abriu a boca para dizer que estava onde deveria estar. No segundo que precedeu sua fala, no entanto, o velho apontou a lanterna para seu rosto e apertou o pequeno botão vermelho, criando uma brilhante coluna de luz contra o rosto de Joshua. Ele sentiu o calor da luz, como um milhão de pequenos sóis queimando contra sua pápebras fechadas. Sua pele começou a desmanchar, evaporando átomo por átomo, até desaparecer no vento gelado.
Ao longe, as nuvens seguiam seu curso radioativo.

O som da arma sendo engatilhada morreu rapidamente entre os disparos do outro lado do corredor. Josh descobriu um terço do corpo e disparou quatro vezes antes de saltar para a parede perpendicular. Seus pés foram ágeis e certeiros; os tiros abriram uma pequena janela de tempo e ele aproveitou. Joshua correu pelo laboratório e desviou, pela habilidade e pela sorte, dos projéteis que explodiam ao seu redor. Girou o corpo e se jogou para trás, caindo nas escadas enquanto disparava com as duas pistolas. Pousou com leveza e formou um arco com o corpo, aterrissando com graça e segurança. Estava com a vantagem, mas precisava agir rapidamente. Checou os pentes, sua última carga, e contou dezesseis balas entre as duas armas: longe de ser o suficiente.
Estava, no entanto, perto da saída e na mochila, o Protótipo XB-19 estava embalado na câmara de Anti-Matéria, pronto para ser carregado até o Outro Lado. Se ao menos ele pudesse atravessar o laboratório e emergir das profundezas do prédio… Aquele não era o momento para desejar, Josh sabia. Ouviu passos no escuro corredor que cortava seu caminho e disparou sete vezes, ouvindo dois corpos desabarem sem vida. Nove balas, pensou antes de iniciar uma corrida apressada até a porta. Parou repentinamente, utilizando todo seu equilíbrio perfeito para não cair, quando viu o velho parado perto da saida. Ele vestia o mesmo uniforme e portava a lanterna.
“Desista”, ele disse com a voz de corvo e apontou a lanterna para o rosto suado de Joshua. “Vá para casa e não volte. Escute-me, eu rogo.” A luz atingiu seus olhos e ele deixou de existir.

Ele se jogou no chão, sentindo a corrente de ar deslocada pela cauda do dinossauro. Quando a grossa couraça do réptil se chocou contra a parede lateral do prédio, Joshua sentiu a onda de energia atingindo seu corpo e rolou alguns metros para o lado, fugindo da nuvem de pó e entulho que se erguera dos escombros. Estava deitado sobre alguns corpos espalhados, sentia o sangue ainda quente ensopando sua roupa e amaldiçoou a criatura de outra Era. Colunas de fumaça e destruição se erguiam por onde o tiranossauro passara, gritos ecoavam no vento, carregando dor e desespero para ouvidos distantes.
Joshua precisava alcançar a segurança do subsolo.
O tiranossauro rugiu uma vez mais e deu outro passo, fazendo a cidade tremer novamente. Ele era colossal; prédios desabavam como castelos de cartas em seu caminho e tanques de guerra eram cortados por suas garras sem dificuldades, tanques de papel.
O homem esperou pelo momento exato e sincronizou seus passos com o movimento da besta, cruzando heroicamente a distância até as escadarias que o levariam para o subterrâneo. Ele desceu as escadas rapidamente, dançando com os pés para não cair e despencar os metros de degraus e acabar com o pescoço quebrado. Chegou perto de uma porta verde e viu a luz amarelada que escapava dos vãos da madeira contra a parede. Ele sentia a segurança daquela luz e a desejou profundamente.
O velho surgiu das sombras, empunhando a longa lanterna contra ele e disparou a linha de luz sem dizer palavra.
De Josh, nada sobrou.

“Eu não posso mais suportar”, lamentou enquanto segurava a caneca com uma das mãos e a banana descascada com a outra. “Depois que acordo, fico por horas rolando na cama, tentando acalmar meu coração e dormir novamente. Estou dormindo o quê? Duas, três horas por noite?”
“Você precisa procurar um médico, amor”, Elaine respondeu e deu um beijo suave em sua testa. Ela deu a volta na mesa e pousou a jarra perto dos copos. “O suco de laranja está delicioso.”
Joshua teve um impulso de esmurrar o rosto da esposa. Como ela podia estar tão calma enquanto ele sofria, todas as noites, com o velho da lanterna? Não conseguia mais dormir, não podia manter a mesma linha de pensamentos por mais de alguns segundos; perdera a habilidade de imaginar e sonhar. Sentia o esgotamento tomar conta de seu corpo e sua paciência. “Todas…”, respirou e controlou a ira carregada em sua voz, suavizando o tom antes de voltar a falar. “Todas as noites, Elaine, todas as malditas noites sou expulso dos meus sonhos por aquele desgraçado. Já são oito noites seguidas, oito vezes que ele joga luz sobre meus olhos e eu não consigo terminar um sonho ou dormir novamente. Você sabe o que e isso? Ser retirado com tamanha violência de um mundo que, naquele exato momento, é real? Repetidas vezes? Eu não preciso de um médico, amor”, ele cuspiu a palavra entre os dentes, “preciso de uma noite inteira de sono!” Quando percebeu o que estava fazendo já era demasiadamente tarde para conter os músculos. A caneca que estava em suas mãos - o melhor pai do mundo! estampava em letras vermelhas e garrafais - estilhaçou em centenas de fragmentos na parede atrás de Elaine, derrubando o relógio da cozinha. A mulher soltou um grito surpreso e protegeu o rosto com ambas as mãos. Joshua notou instantaneamente as lágrimas que escorriam dos olhos da mulher.
“Oh, meu bem, me desculpe, me desculpe… Estou cansado é só iss-”, Elaine correu para fora da cozinha e subiu as escadas, batendo a porta atrás de si.
Ótimo, ele pensou enquanto recolhia o relógio e os pedaços de porcelana do chão, agora você quebra canecas na parede da própria casa. Amanhã você botará um olho roxo nela? E seus filhos? Eles também tomarão sua parte nos seus problemas? Parabéns, imbecil. Estudou o próprio rosto refletido na janela perto da pia e viu as profundas marcas deixadas pela privação do sono. Se ao menos pudesse dormir depois de ser acordado pelo velho. Não. Sentia os sonhos interrompidos no fundo de sua cabeça, como vozes que precisavam contar algo importante, mas que eram interrompidas pelo… Velho maldito. Pro inferno ele e sua lanterna!
Olhou para o relógio e percebeu que estava atrasado. Correu para seguir o mesmo ritual de todas as manhãs: terminar de vestir o terno, pegar a maleta com seus papéis e almoço; correr até o metrô mais perto. Naquela manhã, os vagões estavam cheios e o odor do suor acumulado de algumas dezenas de pessoas provocava-lhe náuseas. Ele estava de pé, balançando conforme o trem cortava as estações, segurando o peso do próprio corpo com uma das mãos, enquanto firmava a pasta contra o peito, prevenindo qualquer tentativa de roubo. Fechou os olhos e deixou-se embalar pelo ritmo dos trilhos, sentindo o calor humano se distanciar lentamente, cedendo terreno para o cansaço que dominava sua mente e corpo, lentamente escorregando para fora do metrô, fora deste mundo…

“Bonaparte?”, perguntou com genuína empolgação. Napoleão concordou com um leve aceno da cabeça e cumprimentou o mais novo comandante de suas tropas.
“Estávamos todos esperando por você, Comandante Joshua B. Mallin.” Não acreditava que o grande general lhe dirigia a palavra. Ele realmente é baixo, pensou enquanto sufocava o riso que escalava para seus lábios. “Sua vitória nos mares do Atlântico ganhou tempo precioso, meu jovem. Wellington não se recuperará tão rápido e espero que ele seja esquartejado pela realeza!” Todos ecoaram a gargalhada de Bonaparte. “Seu espólio pessoal está atrás daquela porta, vá, vá e aproveite a melhor comida e as mais insaciáveis mulheres que a França pode oferecer”, ele piscou um dos olhos quando terminou de falar, disparando dois tapas amigáveis em seu ombro.
Joshua caminhou lentamente até as grossas portas de madeira e se preparou para revelar o que Napoleão havia preparado para seu mais confiável comandante, quando sentiu um leve toque em sua nuca. Virou-se e encarou novamente o velho, vestindo o mesmo uniforme anacrônico para aquele cenário. “Não, por favor, não”, implorou em vão.

Demorou alguns segundos para perceber que a luz ainda estava em seu rosto mesmo depois de acordar. Sentiu o calor horrível do vagão parado e entendeu que havia dormido de pé, segurando em uma barra de ferro. Mas o trem estava escuro e algumas pessoas se abanavam com uma revista ou jornal.
“Está tudo bem com você? O trem está com alguns problemas técnicos, mas em breve voltará a rodar”, assegurou o fiscal. Joshua protegeu os olhos da luz que saía da lanterna e reconheceu o velho de seus sonhos. O uniforme ferroviário, a lanterna. Foi um momento surreal, onde ele não tinha certeza se estava acordado ou preso em um sonho.
Joshua pulou sobre o velho e os dois rolaram sobre algumas pessoas que estava por perto. Uma garoto gritou do outro lado. Josh colocou as mãos sobre a lanterna e a bateu contra o piso do vagão repetidas vezes. “Eu quero meus sonhos de volta!”, gritou enquanto destruía o objeto no chão do trem. “Eu quero meu sono! Minha vida! Suma de minha vida, velho! Desapareça para sempre!” Um estilhaçar metálico o fez parar e ele viu que havia sangue em suas mãos e a lanterna estava completamente destruída.
O velho estava amparado por dois homens, olhando assustado para ele. Sangue escorria de sua testa e os olhos estavam brancos. “Você não tem idéia do que acaba de fazer, Joshua, de quantas vidas condenou além da sua”, disse com a voz de corvo, diferente do tom afável que usava quando o acordou. O trem andava, finalmente percebeu, e quando o velho terminou de falar, no mesmo momento em que chegaram em uma estação e dois seguranças caíram sobre ele, conseguiu escutar o velho uma última vez. “Ignore as portas”, alarmou em grave comando, “não entre nas portas ou desça as escadas, sua vida depende disso!”
Ele foi levado para uma sela, onde iria passar a noite com ladrões e assassinos. Havia um sorriso estranho no rosto daquele homem, alguns dos criminosos preso na mesma cela iriam depor mais tarde: ele dizia algo sobre finalmente poder ver os presentes de Napoleão. “Os olhos”, disse um deles, “a loucura estava naqueles olhos.”
Joshua dormiu profundamente naquela noite, ignorando o cheiro de urina e o banco duro em que estava. Sonhou um sono sem interferências. Sem velhos e sem lanterna. Sonhou com uma porta e desta vez, nada estava em seu caminho.
No sonho, ele apertou firmemente a maçaneta e a girou. Colocou um pé, depois o outro e atravessou a porta.
Joshua nunca mais acordou.

2 comentários:

  1. A gente tem que parar de matar os personagens, cara, o sindicato vai vir atrás da gente. Muito bom (:

    ResponderExcluir
  2. Sensacional... Muito bom. Li em um fôlego só. Filho, obrigada pelo presente. Continue nos deliciando com seus contos. Parabéns. Ana Eliza.

    ResponderExcluir