segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Diário íntimo II

Quando se assumem éticas novas, religiosas, todos que te conhecem reagem da mesma forma: COMO? - eles dizem - Você não come carne? Nem frango? Nem nada? E peixe? Peixe não é carne, vá...

Mas tudo bem, a gente acostuma. E responde. Pois o lance não é só parar por parar de comer. É parar de matar. E daí que, ao parar de matar pra comer, o passo seguinte é parar de matar. Por matar.

Gritam nas multidões: matem os estupradores!, os vilões!, matem os pequenos trombadinhas marginais, fuzilem os antirrevolucionários, ya!

E gritam, no meio da sala, na cozinha, quando uma barata entra voando sozinha, em noite de calor: MATA!, MATA!, MATA! Mas não.

Eu não mato.

Não posso matar, sabe? Não posso matar, não posso ferir nem posso atacar. Não posso e, a partir do momento que “não se pode”, começa a fazer sentido o “não se deve”. É uma coisa que muda a coisa toda, parar de matar. Mesmo que seja uma barata. Que entre voando pela sacada. Mesmo que seja um bicho da gota, que tá ca moléstia, mesmo que seja.

Quando ela entrou, voando, brilhosa, dava até pra sentir a respiração. Ofegante. Eu via o casco em cansaço, parado na moldura do quadro. Tremi. Não matar pernilongo, muriçoca, tudo bem, basta concentração e entrega, desapego. Ele vem e vai te picar, levar teu sangue, fazer coçar, mas tudo bem. É fácil.

Mas barata? É nojenta, meu deus, é nojenta. Ô Buda, abre uma exceção, vai, eu até ofereço mais incensos no altar. Deixa eu matar?

Não.

É um bom exercício, é zen, rodar pela sala atrás da barata, fazê-la sair sem quebrar a carcaça. É sim. É feito um trabalho monástico, uma meditação: preste atenção, rapaz, preste atenção no momento, na ação, respire lenta e suavemente – NÃO!, não aperta a vassoura, não faz que ela morra, não... cuidado... vai, isso... cuidado.

Foi? Rendição? Barata alçou voo e voltou pra janela, pra noite, pra estrela, pro esgoto, lixão? Ótimo.

Buda, um incenso a menos pra você, meu amigo: desafio do dharma vencido.

3 comentários:

  1. entre o "não se pode" e o "não se deve", fico com o "não quero" :)
    simples e singelo Leandro, gostei.

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  2. Adorei o texto!

    Na verdade, eu tbm não mato, exatamente porque não quero e o "não quero" surgiu da ética religiosa que me fez refletir pela primeira vez sobre o assunto. Uma vida é uma vida. Não há argumentos.
    Meus amigos me acham louca (provavelmente estão certos) quando salvo as formigas da minha pia. Não me importo. E no caso delas, em que a vida dura pouquinho, acho ainda mais significativo.
    Parabéns pelo texto.

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