O telefone tocou. Ela pulou da cadeira e correu o mais
rápido que conseguia até a sala, derrubando a cadeira onde estava e um vaso no
caminho até o aparelho. Normalmente o som do telefone ficava no segundo nível,
alto o suficiente para ser notado, mas em um tom que não ameaçava destruir a
existência de vida na Terra todas as vezes que alguém ligava para ela. Mas
havia algo naquela ligação que fazia o telefone berrar no tom mais alto que
seus pulmões mecânicos conseguiam suportar. Quem
usa telefone hoje em dia?, ela se perguntou. Que coisa dos anos 90!
“Vo... você está
com a televisão ligada?” A voz que vinha do outro lado da linha (em um celular,
ela notou... como qualquer pessoa normal), estava trêmula. No fundo ela ouvia
pessoas gritando e vidros sendo quebrados.
“Não.” Ela
respondeu e ficou parada. Viu que a água que estava no vaso derrubado se
espalhava pelo chão da sala, junto com terra e pétalas dos girassóis. Os gritos
vindos do aparelho continuavam, mais altos e longos a cada segundo, gritos de
desespero e dor.
“Ligue logo! Canal
21”, a voz buscava por ar entre as palavras. Ele devia estar correndo. Faça algo! Seu cérebro gritou, forçando
seus músculos a, finalmente, se movimentarem. Achou o controle da televisão e
ligou. A imagem piscou na tela de plasma antes de se estabelecer. O que ela viu
afundou seu coração. De repente seu estômago estava de ponta cabeça e a
gravidade se desligou por um único segundo. Ela se apoiou no sofá para não
rachar a testa no piso duro.
A imagem era
confusa, muita coisa acontecia ao mesmo tempo em uma sobreposição de camadas
que formavam um cenário completamente caótico. A primeira coisa que ela notou
foi o carro pegando fogo no canto esquerdo da tela. Ao lado do automóvel, havia
um corpo estendido, sangue ainda fresco escorria no asfalto do mesmo modo que
água com terra se espalhava em direção ao tapete branco de sua mãe. Pessoas passavam
correndo ao fundo, carregando sacolas e malas. Um homem, ela viu em um estado
surreal, portava um facão. Ele balançava o instrumento sobre sua cabeça e
ameaçava qualquer um que estivesse ao seu lado. No centro da imagem estava uma
repórter. A garota raramente ligava a televisão, usando-a principalmente para
assistir reprises de filmes de horror, nunca para jornal. Jornais são
depressivos demais, ela sempre dizia em sua cabeça. A mulher que segurava a o
microfone vestia um terno rasgado em um dos ombros, onde a manga fora
completamente descosturada. Ela sangrava no mesmo braço. Estava pálida e o
batom vermelho que usava estava combinando com o sangue que manchava sua roupa.
Henry cruzou a
tela, correndo com o celular em um dos ouvidos.
“Ligou a
televisão?”, ele perguntou talvez pela décima vez.
“Sim... acho que vi
você.”
“Escute... não faça
mais nada... só escute o que eles estão falando.”
Ela subiu o volume
apertando um botão no controle. “...us começou a se espalhar. Repito,
cientistas não sabem quando o vírus começou a se espalhar, apenas que ele
controla os infectados. Boletins da Europa e da Ásia também confirmam que os
exércitos estão tomando as ruas para controlar o surto que, aparentemente, é
global. Por favor, não saiam de casa, tranqu-”. A mulher se abaixou
rapidamente, alguns instantes depois uma rajada de tiros tomou conta da cena;
uma explosão sonora nas caixa da televisão.
Na faixa inferior
da televisão ela leu: “Redes sociais são tomadas com alertas sobre a ‘Infecção
Zumbi’...”
“Não pode ser
sério”, ela disse baixo.
“Isso é tão sério
quanto... bom, quanto poderia ser. Parece que-”, mais tiros. “Parece que mais
de dez mil pessoas já estão infectadas. A merda é séria. Os que pegaram o vírus
começam a atacar em menos de cinco minutos, mas nada de comer cérebros. Eles
correm para sua jugular e fazem um banquete do seu corpo. Até as os intestinos,
pelo que estão falando.”
“Onde você está?”
Voz estável, batimento cardíaco normal.
“Uns... uns quinze
minutos. Fique pronta, vamos sair da ilha, mas vamos ter de correr, nenhum
carro conseguirá andar muito.”
“Estarei pronta em
dez minutos... não morra.” Ela desligou o telefone.
Fechou os olhos e
focou sua mente na própria respiração. Assim permaneceu por um minuto. Quando
abriu os olhos, qualquer um poderia ver a determinação e força de vontade no
brilho de suas retinas. Ela sabia o que fazer.
Foi até o banheiro
e apanhou uma tesoura na segunda gaveta e com poucos cortes deixou grande parte
de seu cabelo na pia. Cabelos compridos não combinavam com aquele cenário e ela
não se importou com o sacrifício necessário, preferia ter uma cabeça raspada do
que ser agarrada pelos longos cabelos.
Andou rapidamente
até o armário do quarto principal e achou uma mochila de acampamento.
Esvaziou-a de antigos papéis de viagem, amassando canhotos de passagens de
ônibus e bilhetes de embarque em vôos internacionais. Havia um bilhete de trem.
Empilhou latas de legumes e sardinhas, separou alguns litros de água potável e
socou na mochila algumas roupas. Procurou pilhas para a lanterna, pegou caixas
de palito de fósforos e a embrulhou cuidadosamente em um saco impermeável,
antes de fechar o zíper, colocou uma foto de sua família. Sabia que era inútil
se prender ao passado. Estavam todos longe e a probalidade de revê-los era
agora muito remota.
De todo modo, ela
sabia, eles iriam apenas diminuir suas chances de sobrevivência. Ela sabia que
o vírus se espalhava rapidamente, ‘em progressão geométrica’, os especialhistas
no cenário apocalíptico diziam constantemente. E, olhe só, eles estavam certos.
Ela prontamente assumiu que todas as lendas sobre zumbis eram verdadeiras:
secreções corporais transmitiam o vírus, o status da humanidade se igualava ao
de ‘gado’ para os zumbis. Dois tiros na cabeça, manter a boa forma, cuidar do
cardio, nunca ficar sozinha e sempre manter a contabilidade da munição. Ela
sabia tudo. Por dentro, tentanva controlar uma felicidade aparentemente
incontrolável.
Levantou o tapete
branco da sala, sujo de lama em uma das extremidades e deslocou o chão falso.
Sua boca salivou com a visão do conjunto de facas e do pequeno machado de aço
puro. Quando testou o corte do machado, seu dedo sangrou com a leve pressão que
colocou na lâmina. Prendeu o cinto especial em sua cintura e colocou
cuidadosamente as facas em cada lugar específico, deixando o machado por
último. Por fim, colocou as duas pistolas automáticas por baixo da calça e o
saco com diversos pentes na mochila.
Estava pronta.
Seu objetivo era
sobreviver. Sentia um incômodo alívio, alívio por não precisar mais se
preocupar com empregos, com os absurdos da vida moderna. Adeus e-mails, adeus
contas, até logo pessoas imbecis de suas redes sociais. Havia a morte em cada
esquina, ela bem sabia. Mas um sentimento de alegria aos poucos tomava conta de
seu peito.
Quando o telefone
tocou novamente, um pressentimento horrível cruzou seu corpo. Aquela ligação,
ela sabia, iria destruir sua vida.
“Alarme falso!” Ele
gritou em seu ouvido, felicidade e alívio se misturavam nas palavras. “Parece
que os boletins eram falsos... Está tudo uma bagunça por aqui, mas era tudo
falso”, ele ria entre as frases.
Ela desligou o
telefone e ligou a televisão no mudo. Na mesma barra inferior, leu dessa vez:
“Ataque Zumbi foi a piada do século. Cinco franceses acusados de começar a
brincadeira em uma mensagem para um amig...” As palavras não faziam sentido.
Ela sentiu todo seu mundo ruir.
Tinha feito
esgrima, aulas de tiros, treinamentos de resistência e agilidade. Estava
pronta, mais pronta para o ataque zumbi do que para seu cotidiano, conseguir um
emprego e criar uma família. Começou a desfazer a mochila, pensando no que iria
cozinhar para o jantar. Sentia-se vazia.
Agora que não havia
mais o fim da humanidade nas mãos de mortos-vivos, ela não sabia o que fazer com
sua vida. Suspirou profundamente e colocou o pijama mais confortável. Em meia
hora estava comendo sucrilhos enquanto jogava em seu computador, explodindo
cabeças de zumbis com seu mouse.
Arrasou!!! Estou sem folego...devorei o seu conto de hoje. Parabens!!! Meliza
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