"Mãe, pega as crianças e vai pra longe. Pra casa da vó, se possível. O tio sabe o que fazer, vocês podem ficar lá um tempo cuidando da terra. Não vai faltar comida, e é fácil se proteger na fazenda se alguma coisa acontecer. O caseiro vai dar uma força. Os filhos dele são bons, dois eram do exército, o outro é enfermeiro. Vai dar tudo certo."
- Sai desse telefone, porra! Não podemos ficar isolados.
Joshua não gostava quando se penduravam no telefone velho, no telefone do Clube. Volta e meia alguém ligava para dar as más notícias, do tipo morreu-alguém, do tipo o-filho-é-teu, do tipo a-polícia-tá-indo-aí. Por isso ele não gostava de gente pendurada no fone, empacando ligação. Mas essa era a primeira vez que Joshua queria o telefone livre pra poder, caso preciso, ligar pra alguém. Naquela situação era sempre bom ficar informado.
"Não esperem por mim, mãe. Estou muito longe e acho que em poucas horas nenhum caminho vai ser seguro. Em poucos dias, com certeza nenhum caminho vai ser seguro. Quero vocês na fazenda ainda hoje, e não se preocupem comigo."
Na mesa do lado, perto do telefone, um casal brigava quando a mulher se tornou num monstro. O homem se apavorou, cadeira pra trás, caiu no chão. A mão que não segurava o fone segurava um canecão de cerveja forte, canecão pesado da Oktoberfest, 92. O caneco voou no coco, a mulher que já era zombie morreu ali, com cerveja escorrendo pelos seios fartos, pela pele podre. O homem caído no chão chorou. O do telefone só resmungou um pouco: Joshua!, outra cerveja por favor.
"As crianças sabem o que fazer, também. São mais espertas que o tio, mas o tio é mais forte. Diz pra elas que eu mandei um beijo e pedi pra tomarem cuidado, tomarem juízo e tomarem bastante coragem pra encarar o que vem aí. Elas são espertas, vão conseguir. Diz que um dia encontro com elas."
Um rapaz que estava bêbado agora estava morto, e trançava as pernas caminhando pro balcão. Bateu na jukebox, trombou, caiu, um disco lá de dentro começou a tocar música irônica e Joshua sorriu. Saiu de trás do balcão com um bom pé-de-cabra, arrebentou a cabeça bêbada caída ao chão e, puxando pelos pés do cidadão, jogou lá pra fora do bar.
Joana estava sentada sobre uma mesa, perto da saída de emergência. Fumava um cigarro, pernas cruzadas e cara de tédio. Na mesa de bilhar um velho gordo começava a virar zumbi. Ela conhecia o paquiderme, maldito cliente porco rico nojento e grosso, do tipo que faz piada com garçonete e acha que todas têm que gostar. Que todas têm que dar pra ele. Fumava um cigarro sem cara de tédio, agora. Pegou a pistola e mirou bem com calma. O gordo se transformava. Mirou. Cééérebros. Blam!
Gordo caiu.
Não demorou muito e Joshua já tinha jogado o balofo fora, também. Com o tiro, tirando o homem do telefone, no Clube não tinha ninguém. Tirando Joshua e Joana, é claro.
"E não esquece, mãe: não pode ter compaixão. Quando começa a doença, não tem mais jeito. Não tem mais jeito. Se vir alguém se transformar, se for a pequena Andrea, se for teu irmão, mãe, não tem jeito! É ele ou você. E você tem que cuidar das crianças, não esquece. Depois do vírus, sem compaixão. Acerte a cabeça."
Do lado de lá da linha o tempo de gravação acabou. A mãe não estava em casa, mas o recado talvez fosse ouvido. Ele não sabia. Fosse como fosse, não havia mais o que ser feito. Agora era pegar a estrada, pegar comida, pegar o resto de mundo que sobraria, dali pra frente. Sorriu. Era um bom dia.
- Tchau! Cuidem-se
- Você também - disse Joana.
Depois que o homem saiu, saiu do banheiro um zumbi. Joshua já estava cansado, deu a volta por trás do desmorto e o foi empurrando pra fora. Quando pisou na calçada, a porta do Clube fechou. Diante dos olhos tortos do homem morto um cenário novo se abria.
Era um bom dia.
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