Jonathan estava sentado na cadeira de madeira, um móvel
bem trabalhado e confortável, há tempos não se sentia tão descontraído, na
verdade, apesar da companhia do que parecia ser toda a família de sua namorada.
Era difícil, em Londres, encontrar uma casa tão grande e tantas pessoas com
laço de sangue no mesmo lugar sem iniciar uma guerra civil. A grande família
constituía uma cena rara: estavam todos ao redor da mesa enorme, diversas
bandeijas dos mais variados pratos ingleses; vinho e cerveja nos copos,
refrigerante e suco para as crianças. Em algum lugar da geladeira, sobremesas
variadas esperavam para comparecer ao jantar. Conversas animadas se cruzavam
por toda a sala de jantar e Jonathan apenas escutava, sentado na cadeira
confortável, observando como Monica se entrosava entre os parentes. Ele sorria,
o que raramente fazia.
Em uma das pontas
da mesa, sentado em clara posição de destaque, o pai de Monica apoiva os
cotovelos na madeira, cobrindo a boca com as mãos. Seu rosto parecia escupido
em pedra, com traços duros e bem definidos, calvo e com hirsuta barba cobrindo
o hemisfério abaixo do nariz aquilino. Ele estudava o rapaz com olhos afiados.
Olhos como o de uma águia esperando pelo vacilo de sua presa. “O que você sabe
sobre a guerra Jack?”
“É John, papai”,
disse Monica, aborrecida. Ela esperava esse comportamento do patriarca, mas
mesmo assim ficava chateada com os testes de seu pai. Sabia que não deveria
apresentar seu namorado naquela data específica.
Jonathan ficou
calado por algum tempo, buscando todas as informações que seu cérebro mergulhado
em hormônios adolescentes conseguia juntar. Não era muita coisa. “Qua...”, fez
um ruído estranho ao limpar a garganta e seu rosto explodiu em escarlate, “qual
guerra?”
“A única que foi
combatida por razões legítimas, qual outra?”, ele deu uma risada sínica e olhou
para a mulher. Ela disfarçava o embaraço que sentia, encarando o peixe frito no
próprio prato. Um silêncio pesado caiu sobre a mesa.
“Papai, não comece,
por favor.”
“Conte a história
do vovô, papai!”, pediu umas das irmãs de Monica. A mesa toda concordou em uníssono.
O velho descobriu a
boca e a limpou com um guardanapo, assumindo uma linguagem corporal totalmente
diferente. Agora ele sorria com o canto dos lábios finos. “John”, ele parecia cuspir a palavra, “vou te contar sobre meu pai.
Ele nasceu em uma época de homens duros, de vida dura. Os fortes venciam, os
fracos morriam, era simples assim. Não havia essas porcarias eletrônicas das
quais vocês sobrevivem hoje em dia. Nada de celulares, computadores, cento e
cinquenta canais na porcaria da televisão ou as coisinhas todas com a marca da
maçã. Vocês crianças parecem zumbis! Uma guerra faria bem para sua geração,
ouça o que estou dizendo.” Ele parou e terminou o vinho que estava na taça.
Pegou uma garrafa qualquer e bebeu diretamente dela. Um fio vermelho escorreu
pelo canto dos lábios finos do velho. Para Jonathan, o vinho que escorria
parecia sangue. “Uma vez por ano eu conto a história de meu pai e como ele
sacrificou sua vida por aquilo que acreditava. Eu gostaria de contar ao redor
de uma fogueira, vestindo o uniforme que ele usava e depois disparar algumas
balas nas árvores da floresta em sua homenagem, acompanhado apenas das pessoas
que amo... mas agora você é família, independente de minha opinião. Então,
escute e aprenda algo de útil.”
Segurando um copo
de cerveja, Jonathan sentiu o suor tomar conta da palma de sua mão.
O velho ficou de pé
e começou a narrar: “Meu pai estava em na linha de batalha há um ano e quatro
meses quando morreu. Conseguia disparar um rifle cinco vezes mais por minuto do
que os soldados bem treinados normalmente conseguiam. Algumas cartas que irmãos
de arma escreveram sobre ele dão a impressão de que era uma máquina perfeita,
um soldado ideal para seu país. Eu me lembro do dia em que ele foi embora,
mamãe chorava e meu irmão mais novo ainda estava no colo dela. Não entendíamos
o que estava acontecendo e porque meu pai tinha que ir embora. ‘Para lutar
contra os homens maus’, foi a última coisa que ele me disse. Depois disso,
sumiu pela porta e nunca mais voltou para nós. Quando ele foi para a guerra,
nossa casa não era mais a mesma, acho que isso aconteceu em todos os lares
tocados pela guerra... em todas as guerras, para todos os países. A terrível
ausência, o silêncio da falta. Escutávamos pelo rádio as notícias da guerra e vivíamos
os desesperos de algumas pessoas que recebiam a mais temida das notícias,
quando uma carta avisava que apenas um corpo, quando muito, retornaria para
casa. No dia que minha mãe recebeu a carta anuncianado a morte dele, ela não
chorou: reuniu todos os filhos e explicou como o pai daquelas crianças fora um
soldado honrado e que não deveríamos chorar, se não por orgulho e compaixão por
todos aqueles que ainda sofriam por toda a Europa. Ele morreu em julho de 44,
sabe do que estou falando, certo?”
Jonathan negou
timidamente, com movimentos lentos de sua cabeça.
“Sempre os
melhores, eh, Monica?”, o velho balançava a cabeça junto com o jovem do outro
lado da mesa. “Segunda Guerra Mundial. Hitler, nazistas, Dia D... Você precisa
ler mais. Meu pai lutou no Dia D. No dia da invasão da Normandia, dia seis de
junho de 1944, as tropas norte-americanas de paraquedistas pulou às cegas e
praticamente todos os soldados ficaram longe dos alvos anteriormente planejados;
enquanto milhares de vidas acabavam entre as marés daquele dia, outros milhares
de soldados vagavam aleatóriamente entre fazendas e pastos. O caos tomou conta
do interior da França. Soldados americanos, britânicos, alemães... todos eles
vagando entre as pequenas cidades sem armas, sem provisões, sem seus
companheiros de treinamento. Desconhecemos o tempo que papai ficou vagando
sozinho, mas sabemos que ele morreu nos primeiros dias que seguiram o Dia D e
por todo esse tempo ele lutou contra o inimigo, servindo sua pátria e suas
crenças. Acho que na manhã do dia sete ele se encontrava completamente armado,
com um rifle, uma baioneta e duas granadas de mão, mas na confusão da noite
anterior, ele estava sozinho no meio de um bosque. Ele escapou de facas e
balas, a única baixa fora seu cantil, que tomou uma bala para salvar a perna
esquerda e, provavelmente, sua vida. Sua garganta devia estar seca, raspando; o
estômago roncando; as forças ameançando escapar de suas pernas a cada passo, a
cada metro percorrido. Consegue imaginar isso rapaz? Foi quando ele escutou uma
arma sendo engatilhada. Antes que pudesse achar cobertura, estava cercado por
cinco soldados inimigos. Apenas um deles estava armado. Papai não hesitou:
disparou três balas rapidamente e, quando o cartucho vazio pulou da câmara,
três inimigos estavam mortos, entre eles o que estava com o rifle. Com a
baioneta, abriu o abdômen do quarto homem e perseguiu o último inimigo, abrindo
sua garganta quando o alcançou. Eles tinham mais munição, um pouco de ração,
água e mais três granadas. Assim ele passou o dia, escondido entre as árvores
do bosque, matando inimigos. Pequenos agrupamentos se formavam na área, mas
logo eram dizimados por um único soldado. Até hoje dizem que o espírito de meu
pai habita aquelas árvores e, nas noites calmas, é possível escutar o grito de
terror dos jovens com as tripas espalhadas pelo chão.”
“Que horrível,
papai!” Monica estava pálida. “Que tipo de homem você quer mostrar para John?
Que homem é capaz de fazer essas atrocidades?”
O velho esmurrou a
mesa com os dois punhos antes que ela pudesse soltar mais uma única palavra. A
mãe de Monica soltou um pequeno grito, uma garrafa de vinho virou e esparramou
o líquido na toalha branca, o que fez John pensar em sangue derramado em um
amontoado de folhas podres. Os convidados não sabiam para onde olhar; no outro
cômodo, um bebê começou a chorar e uma mãe pediu licença da mesa de reunião.
Apenas uma chama viva naquela casa havia: os olhos de um homem que admirava a
força de um soldado determinado.
“Atrocidades?” Ele
tentou se acalmar em vão e gritou a mesma palavra, cuspindo gotas de saliva que
se misturavam ao vinho derramado: “Atrocidades?
Ele estava em uma situação de vida ou morte! Você sabe o que ficar cercado por
inimigos e lutar para viver, sem saber se verá a próxima lua ou até mesmo até a
próxima refeição?”
“Você sabe?” Ela
retorquiu em um tom desafiador.
O velho desabou na
cadeira, reprimindo rapidamente um esgar no rosto. Uma lágrima solitária caiu
de seu rosto. “Não... não é como se ele gostava do que fazia. Apenas entendia a
situação em que estava. Um soldado, quando perdido em território hostil, tem
duas opições, filha: ou deixa as sombras de seu coração tomarem conta de quem
ele é ou ele se deixa abater e, na melhor das hipóteses, se torna um
prisioneiro de guerra, o que também significará sua morte na maioria das vezes.
Ele lutou, isso é um fato, puro e simples. E me orgulho disso, você deveria
também.” Desvirou uma taça e a encheu de vinho. Dois longos goles lavaram sua
garganta cansada.
O cérebro de
Jonathan lutava para organizar o saber fragmentado que tinha sobre história.
Deus, como era ignorante!
“Ele escreveu para
seu bisavô, Monica. Pouco antes de morrer, talvez no último momento de calmaria
em que fora poupado dos terrores da guerra. Ele dizia que olhava para os
mortos, via os olhos abertos, sem vida, sem enxergar a beleza do bosque que os
cercava. Pensou em quantas irmãs iriam chorar sobre o corpo dos valentes
irmãos, de quantas crianças ele tinha roubado a chance de nascer. Por fim, se
perguntou quantos amigos teria feito entre os mortos, fosse outra a situação.
Meu pai sempre teve certeza da necessidade de lutar, de expurgar tudo que havia
de errado em sua nação e, em parte, no mundo todo. Mas naqueles momentos ele
fraquejava. Acho que qualquer penamento muda quando nossas mãos estão sujas de
sangue. Na manhã do que pode ter sido o Dia D mais quatro, um grupo de amigos
entrou no bosque. Ah, que reunião deve ter sido! Como seu pobre coração saboreou
os olhares livre de julgamento. Pelo contrário! Olhares de orgulho e admiração!
Ele escreveu essa última carta e, poucas horas depois uma tropa inimiga invadiu
o território. Centenas de homens fechando o cerco sobre dez, quinze soldados.
Organizaram uma defesa precária e protegeram cada centímetro que tinham. Bang, bang, bang.” O velho segurava um
rifle invisível, fazendo mira com um único olho enquanto disparava suas balas
mentais. “Trinta inimigos estavam no chão e treze deles ainda resistiam, atirando,
arremessando granadas, protegendo-se mutuamente, sobrevivendo. Aposto que a maioria deles pensava em algum bolo de
carne que estaria nas mesas de sua cozinha, quentes e saborosos, tenros como
uma boa carne é; pensavam na voz de suas mães, no delicioso cheiro que escapava
do cabelo de suas amantes... até mesmo no ladrilho do banheiro de suas casas,
lugar para o qual nunca voltariam. Todos eles, excluindo seu avô, ignoravam
pelo quê lutavam, apenas lutavam porque os homens poderosos mandaram cartas
para suas casas. Seu avô, Monica vestia as cores da bandeira e tinha convicção
em seu líder. Não era a guerra deles, mas morreriam por ela. Quando restava
apenas ele, sei disso porque os sobreviventes do outro lado da batalha contaram
depois da guerra, papai ficou de joelhos na terra úmida de sangue, braços
caídos, ombros baixos e queixo encostado no peito, como morto. Quando soldados
inimigos estavam perto dele, tirou o pino de uma granada que roubara no
primeiro dia que passou escondido nas moitas do bosque e se explodiu com outros
oito homens. Setenta e cinco inimigos mortos para eliminar quinze bons homens
de nossa pátria.” Mais lágrimas caíam agora. “Por isso, todo ano nos reunímos
no primeiro sábado depois do dia seis de junho para lembrar de meu pai. Esteja
bem, velho, onde estiver. Esteja bem.”
Jonathan enclinou
na direção de Monica e sussurrou: “Não deveríamos ir para o túmulo de seu avô e
dizer umas palavras?”
O velho se levantou
da mesa e andou até o namorado novo de sua adorada filha.
“Não dá”, Monica
respondeu, “a ossada foi levada para a Argentina quando ele ganhou uma
cerimônia por lá. Mas não podemos entrar mais na Argentina, depois eu te
explico melhor”.
John, filho de
judeus e ignorante dos fatos históricos, apenas concordou com a cabeça e se
levantou, apertando as mãos firmes de seu sogro. Ele se perguntou se ela era
judia, seus pais ficariam felizes. Monica parecia um nome judeu, afinal.
“Espero que esteja
de acordo com nossas crenças, mesmo morando aqui na Inglaterra. Espero que
partilhe nosso ideal”, disse o velho.
“Claro, claro”, ele
respondeu com determinação na voz. Ele ainda tentava se lembrar sobre o que
tinha estudado do Nazismo para uma prova de História.
Excelente!!! Concordo com a infancia corronpida de hoje em dia,
ResponderExcluirCom as consequencias negativas das guerras sobre os individuos,
Sobre as familias e sobre o planeta. Senti revolta me
Lembrando do passado criminoso de homens que se
Corrompem usando a sua inteligencia e abuso de poder pra praticar a maldade ao inves de praticar O bem, distribuindo amor e conhecimento! Parabens mais uma vez! Meliza