“Eu prefiro o Corpo Fechado.” Estavam sentados em lados
opostos da apertada mesa de fórmica branca, apesar do material estar amarelado
pelos anos de existência e de panos de limpeza portadores de higiene duvidosa.
Os bancos eram espaçosos, estofados com couro vermelho, gastos pelo tempo e,
ele examinou as marcas, pelas centenas de bundas gordas que ficaram sentadas
exatamente onde ele estava; clientes de todos os biotipos e raças que
consumiram os mais variados pratos. Pousada ao lado de seu pé estava a mala
trancada, protegida e esquecida por baixo da mesa.
“Como assim? ‘Eu
prefiro Corpo Fechado’”, ficava irritado quando Beth imitava sua voz, fazendo
mímica com as duas mãos como as de uma múmia nos filmes da década de quarenta;
sentia-se um retardado na pior conotação da palavra. Beth continuou: “Sexto
Sentido é muito melhor. Aliás, é o único filme dele que presta. O resto é lixo.
As pessoas encheram os cinemas esperando por outras histórias como a do moleque
que enxergava pessoas mortas, mas foram outras... não sei, abordagens? Não,
estou procurando outra palavra. Ah, o diretor apenas não entregou filmes tão
bons quanto Sexto Sentido, é o que acho.”
Ele sorveu um pouco
da bebida no copo. O refrigerante causou o agrado de costume em seu estômago. “Isso
porque você vai com as massas, meu velho amigo. Seu gosto, ainda não entendo como,
é altamente manipulado pela mídia, corporativista ou não. Desde quando você ama
vampiros?”, falava calmamente, sentado em uma posição rigidamente ereta,
comendo o enorme lanche com as duas mãos e em mordidas contidas. Aleph quase
nunca se exaltava e mantinha uma pose de estilo próprio, apesar da estupidez de
Beth.
“Hum...”, ele
apoiou o queixo em uma das mãos: a outra procurava por uma batata frita
extra-crocante. “Há dois anos, acho.”
“Mais ou menos
quando os romances adolescentes sobre vampiros voltaram para assombrar
namorados forçados a assistir péssimos filmes com suas respectivas namoradas de
mal gosto, certo?”, falou rápido, sem pausar para respirar.
“Não mude de
assunto, Aleph. Pode ser que sou influenciado um pouco por adolescentes
bobinhas, mas tenho certeza de que O Sexto Sentido foi o melhor filme do...
do...”, Beth estava fazendo aquele som irritante com os dedos indicador e o
polegar. Aleph achava que algum dia as manias do amigo seriam sua causa mortis. E ele próprio o culpado.
“Shyamalan. Preste
atenção. Primeiro: Sinais. Sinais é um filme fantástico! Você não pode começar
a ver o filme esperando uma história à John Woo, pode ter certeza. Nada daquela
baboseira de disco voadores gigantes e explosões devastadoras na Casa Branca,
correria e morte para todos os lados, o que você vai saborear é uma história
sobre crenças. São várias crenças,
gente que acredita em sinais nos milharais por todo o mundo, gente que acredita
em um ser todo poderoso que escuta suas orações todas as noites e até mesmo
sobre coincidências. Pensa só nisso, no começo do filme você tem um punhado de
gente esquisita. Um religioso que perdeu a fé porque sua mulher foi cortada no
meio, no meio, por uma camionete desgovernada;
um asmático chato; um louco com chapéu de papel aumínio e uma menina mimada que
não consegue terminar um único copo d’água. Mas tudo tem um propósito, tudo
caminha para um ápice. No final do filme, a asma tem uma função, as dezenas de
copos espalhados pela casa, cheios pela metade com água pura, também.”, ele
entrelaçou os dedos das mãos para ilustrar seu ponto de vista. “Todos os
elementos em colisão. É lindo.”
“Pode ser. Mas o
filme é um saco.” Beth agora mordia um hambúrguer saboroso. Gordura escorria
pelo pão e alcançava os cantos da boca vermelha. Aleph olhava para o
companheiro com asco.
“Corpo Fechado é o
melhor filme dele.” Disse, talvez justificando para si mesmo. “No fundo, é uma
analogia para a filosofia chinesa. O cara é indestrutível, ele tem, como no
título, Corpo Fechado. Nunca ficou doente ou se machucou, sua pele é impossível
de ser rompida. No outro lado temos o Samuel, incrível no papel, que é a
definição última da fragilidade.” Ele tinha as duas mãos esticadas com as
palmas para cima, como se estivesse exibindo dois objetos diferentes. “Eles são
opostos extremos. No Tao, os opostos são justificativas mútuas de existência. O
baixo só existe por causa do que é alto; o quadrado se justifica na diferença
com o círculo. Todas as coisas, o fogo, a terra, os pássaros, o sal... a
própria vida, poxa, tem um oposto. Você, para jogar um pouco em outras
filosofias, se define por tudo aquilo que não é, certo? Por exemplo, você não é
inexistente, logo existe. Você não é mortal, por isso estamos aqui. Então sua
própria matéria está justificada. O legal é que o Sam, podemos chamá-lo assim,
não faz um personagem essencialmente mal por natureza, não senhor. Ele gostava
de ler quadrinhos, amava a mãe... qualquer pessoa que passe muito tempo
absorvendo conceitos e valores das histórias em quadrinhos enquanto toma leite
preparado pela mãe tem de crescer para se tornar numa boa pessoa, anote o que
eu digo. Mas ele quebra fácil, literalmente. Seus osso são praticamente feitos
de vidro. E ele precisa, talvez para não ficar louco, achar uma explicação para
sua condição. Quando ele explode trens e aviões, ele está procurando por algo
indestrutível, seu extremo oposto. Quando ele acha o Bruce, um cara bonzinho, o
herói da história, ele percebe seu papel de vilão. Veja, ele não é mal, mas precisa
ser mal simplesmente porque esse é seu papel! Ele não está apenas achando seu
papel em um plano maior: ele está fortalecendo a existência do herói! Essa é a
moral do filme.” Ele olhava para Beth com um ar superior enquanto molhava a
garganta com mais refrigerante.
“Suas batatas estão
esfriando”, respondeu. Nunca continuava as análises de Aleph, flhava em exergar
tal necessidade quando ele simplesmente nunca calava a boca. Às vezes queria
gritar com ele, perguntar se cada palavra de sua mente era tão importante que
ele não poderia, pelo menos uma vez, guardar para seus próprios pensamentos. O
pior, e Beth sabia isso há mais de mil anos, era a resposta negativa. As
palavras nas mentes dos dois seres sentados nos bancos vermelhos eram
importantes e não poderia ficar caladas para sempre. Por fim, Beth puxou a
pequena travessa de batatas fritas para seu lado da mesa, espalhou maionese em
um dos cantos e começou a comer.
“A Vila pode ser
visto como um analogia social, pura e simples. Você é uma leitra de seu quando
e seu onde.” Apontou para um adolescente sentado na mesa ao lado. O garoto
vestia uma camiseta de banda (com alguns representantes de uma seita diabólica
em pleno coito) e calça jeans rasgada em ambos os joelhos. Cabelos compridos
caíam sobre os ombros, e era possível escutar a música que saia do fone de
ouvido branco. “Ele seria assim se tivesse crescido em outro país ou em outro
século? Gostaria, se tivesse nascido daqui vinte ou trinta anos das mesmas
bandas ou do mesmo estilo de música?”
“Esse filme tem uma
história fraca, é só. Promete muito e não fala nada. Ainda gosto muito mais
do...”
“Sexto Sentido,
sei, sei”, interrompeu Aleph. “Aliás, acho que é ele, estamos aqui pelo garoto.
Vamos?”
Beth olhou para o
garoto com explícita dúvida. Decidiu que Aleph estava certo, como sempre, e
começou a comer mais rápido. “Deixe...”, engoliu batata e carne mal mastigadas,
“deixe-me terminar meu almoço. Dama na Água?”
“Conto de fadas
moderno e o Giamatti em um dos papéis de maior carisma em sua carreira. Apesar
que gostei dele naquele filme sobre traficantes de almas russos.” Aleph
respondeu enquanto colocava a pasta sobre a mesa, acertando as duas senhas que
protegiam o conteúdo.
“Fim dos Tempos?”,
ele falou com a boca cheia. Era quase impossível entender as palavras.
“Sobre a natureza e
a fragilidade da existência humana. Os homens têm esse planeta apenas e
deveriam tratá-lo melhor. A ‘macrofísica’ demonstra leis sobre a raridade e
preciosidade da existência da vida orgânica. Uma única mudança na trajetória da
Terra ou de seu astro e puf, adeus
mundo. Pronto?” Beth engoliu com dificuldade o que restava de comida e deu dois
socos no peito, encorajando o alimento a continuar em seu caminho natural.
Os dois deuses se
levantaram em simultaneidade e caminharam até o jovem vestido com a camiseta
pornográfica. Aleph abriu a mala e deixou as histórias se mostrarem. Eles amavam suas criações. Haviam, afinal, presenteado os Fenícios com a
mágica das palavras escritas para que pudessem contar histórias mais
elaboradas. Na mala, pequenas esferas representavam histórias criadas por eles,
mas que poderiam ser contadas de humanos para humanos apenas e os deuses
perseguiam indivíduos com grande poder receptivo para suas narrativas. Não
sabiam o porquê construíam belas histórias e as presenteavam para a humanidade,
mas tinham a certeza de que faziam parte de um plano maior, algo que até mesmo
deuses menores, como eles, não conseguiam entender. Cada história tinha uma voz
própria e os deuses olharam com orgulho as esferas em cacofonia eterna Beth
selecionou quatro esferas brilhantes e as inseriu na cabeça do adolescente,
forçando-as gentilmente pela testa. As histórias achariam seu caminho na mente
do rapaz e o manipulariam até serem escritas. “Suficiente?”, perguntou.
“Claro. Ele vai
pegar gosto pela profissão e vai escrever por conta própria. O importante é ele
contar nossas histórias.” Aleph fechou a mala escura.
O garoto nunca
notou o que os deuses fizeram. Os quatro primeiros livros que iria escrever
dentro de oito anos, fizeram enorme sucesso. Depois deles, a revelação iria
experimentar a decadência e, com ela, o abuso de drogas pesadas e várias
acusações de violência contra prostituta. Antes de destruir a parte de trás da
própria cabeça com um tiro de uma .12 de cano serrado, ele se perguntou de onde
tinha tirado as ótimas idéias para os quatro primeiros livros, e por que nunca
mais havia criado outro livro bom. Mas essa é outra história.
Satisfeitos, Aleph
e Beth saíram pela porta e entraram chamaram um taxi. Segurando a mala, Aleph
perguntou: “Quem é o próximo?”
Beth fechou os
olhos e se concentrou. “Zack”, disse com uma voz suave. “Na próxima cidade,
barman e dono da Jukebox”.
“A jukebox, você quer dizer?”
Um carro amarelo
encostou no meio fio e os dois entraram pela mesma porta. Beth disse o nome da
rua da próxima cidade e o taxista apertou alguns botões na máquina que mostrava
o caminho.
“Sim. Será
interessante. B-42.” Beth respirou e continuou a falar, com um sorriso
sarcástico no rosto. “O Último Mestre do Ar?”
Aleph fechou os
olhos em uma expressão de dor. Esse era o ponto fraco de seu argumento. “Não...
esse filme é um lixo”.
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