O historiador assoprou com força, levantando uma nuvem de
poeira e mofo. A câmara, iluminada apenas pelo fogo de duas tochas, era escura
para a leitura. Mas qual opção ele tinha? Sentado no banco milenar, dentro do
bolsão mais interior da gigantesca caverna, ele olhou, exasperado, para os
milhares de pergaminhos.
Isso não é uma coleção documental, ele pensou, é Alexandria! Estou na
biblioteca perdida. Puta que pariu! Respirava o ar carregado por milhares
de anos de isolamento. Mesmo conhecendo os procedimentos, retirou a máscara
branca que cobria a metade inferior de seu rosto. O pequeno monomotor estava no
fundo do rio, provavelmente. As cobras que haviam chegado em uma caixa em suas
acomodações quase o mataram, mas ele tivera sorte por estar cozinhando: a
lâmina de um cutelo era, afinal, mais
forte do que duas cascavéis. Mesmo assim, ele tivera sua dose de soros
antiofídico. As lanças, espadas, pistolas e até mesmo dois assassinos com lança
granadas. Ele estava vivo, superara todas as tentativas para barrar o
conhecimentos. Inclusive os dois aborígenes mortos na entrada da caverna.
Depois de alguns
dias perdido no labirinto escuro de estalagmites, e de quase ser atingido por
estactites que se desprendiam convenientemente apenas quando ele estava por
perto, ele havia encontrado as inscrições dos pergaminhos sobreviventes da
mítica biblioteca. ‘Para aquele que nos encontrar’, leu na língua morta, sinais
gravados diretamente na pedra da caverna, ‘volte para os seus, fique entre ele
e não volte para os papéis do Sol Negro. Aqui existe morte e morte apenas’. Riu
com escárnio após traduzir os complicados símbolos e continuou em seu caminho.
Finalmente estava
onde deveria estar. Todos os passos de sua vida só ganhavam importância por
levá-lo até este instante. Todo o resto, antes e depois, perdia a cor diante do
colorido mosaico de pergaminhos que observava com olhos gulosos.
Esticou o longo
pergaminho, produzindo uma nova nuvem de partículas provavelmente inexistente
no planeta há mais de séculos. O pergaminho era lindo, nos olhos do
historiador: desenhos góticos traçavam as bordas do couro animal, marcando o
texto com belas gravuras. O estilo, no entanto, não correspondia com a data
provável do documento. Anacronismos.
Interessante, pensou enquanto seus olhos percorriam rapidamente as linhas
arcaicas.
O historiador achou
uma postura mais confortável e leu. Minutos e horas se mesclaram; dia e noite
derreteram. Ele leu sobre a história da biblioteca de Alexandria, dos
pergaminhos misteriosos e dos perigos que rodeavam aqueles que a frequentavam.
Descobriu que o próprio Aristóteles havia incediado os papiros e pergaminhos
com o óleo grosso das lanternas, afirmando estar salvando o mundo de mistérios
que existiam para nunca ser revelados.
O mais impressionante é que há documentos de quase todos
os séculos, que provavelmente foram adicionados depois. Todos os segredos estão
aqui, ao meu alcance. Segredos que explicam o mundo além do nosso e das pessoas
que controlaram e ainda controlam os rumos dos acontecimentos. Ele sorria, imaginando que Indiana Jones estaria com inveja naquele
momento.
Colocou as mãos em
um livro costurado em um couro escuro. Um pentagrama estampava a capa do livro,
nada mais. Abriu o grande volume e começou a tentar traduzir os parágrafos. Uma
mistura entre latim e inglês antigos se alternava entre as páginas, mas o texto
fazia sentido... dentro dos padrões do próprio texto.
O livro contava
sobre os primeiros deuses, monstros amórficos que viviam no oceano abissal; terrores
da natureza que deixariam os homens loucos apenas com sua forma; seres
sobrenaturais que chegaram em pedras do espaço; entidades que eram origem para
mitologias inteiras. O historiador sentiu a própria sanidade fragilizada pelo
texto.
O texto avançava,
explicando a história dos homens e os momentos influentes no fluxo de
acontecimentos que mudavam o modo de viver e pensar da humanidade. Era um
prisma único, páginas que continham a verdade na mais pura forma. Conforme virava
as páginas, sem perceber o estômago roncando por alimento ou os músculos duros
e exaustos pelos dias de leitura constante, ele notou que o texto variava de
estilo gramatical e regional. O latim se transformou em alemão antigo. Centenas
de páginas depois, lia em italiano provinciano, depois algumas poucas páginas
em chinês (felizmente traduzidas no mesmo italiano carregado de gírias locais)
e, por fim, o velho e conhecido inglês, ainda que em sua forma pré-Shakespeare.
O livro estava
narrando um personagem que procurava pela coleção perdida no fogo de
Alexandria. Ele enfrentara os guardiões dos pergaminhos, sobrevivendo para
condenar os homens ao horror. Parou de ler, sentindo um frio na espinha.
O historidor leu
sobre estar lendo as linhas que narravam estar lendo as mesmas linhas.
Perdendo o controle
sobre os membros, ergueu com esforço um dos braços e leu mais um pouco. ‘Com
dificuldade, o historiador ergueu o braço direito e leu mais algumas frases.
Sabia ele que estaria acordando forças ancestrais?’
Ele sentiu o
coração disparar e conferiu o livro. Sim, estava escrito que seu coração
estaria em um ritmo rápido. O historiador, curioso nato, virou as páginas que
faltava para terminar o grande volume e leu as últimas linhas.
‘... fraco. Suas últimas forças foram
utilizadas para sussurrar os encantamentos esquecidos. Grhol’ar Araramath
Huorinthor! Ele disse. E os Terrores acordaram. O Sol escureceu, a Lua caiu e o
próprio céu sangrou. Florestas mudaram de lugar, desertos congelaram e Oceanos
evaporaram, matando bilhões em um só dia. Os homens ficaram loucos e sofreram.
Até o último deles. Outra Era começava, apagando com fogo e morte a raça logo
esquecida.”
Depois daquela
linhas, o livro estava em branco e muitas outras páginas se seguiam, igualmente
vazias de palavras. Ele tinha que continuar a escrever o livro.
Voltou para a
página marcada pelos dedos da outra mão e continuou a ler. Queria saber o que
iria acontecer entre o ponto em que estava e o final do livro costurado com
couro.
Em algum lugar das
prateleiras, achou ter escutado uma risada sinistra.
Mas resolveu
continuar a ler o mais rápido possível. As vozes em sua cabeça mandavam, ele
obedecia.
SENSACIONAL. Me encanta seu estilo literario Mauricio. Neste conto, é deliciosa a "sobreposicao" de historiador/escritor. Conhecimento, aprendizado, criatividade e emocao sao apenas alguns dos ingredientes de tudo que voce escreve. Nao sou a mesma depois de ler voce. Continue filho... Parabens. Ana Eliza.
ResponderExcluirSENSAZIONALE. Mi piace il tuo stilo letterario Mauricio. In questo racconto, è piacevole per "sovrapporre", lo storico / scrittore. Conoscenza, apprendimento, creatività ed emozione sono solo alcuni degli ingredienti di tutto quello che scrivi. Io non sono la stessa dopo leggere cosa scrivi. Continua figlio mio ... Cumplimenti. Ana Eliza.