sexta-feira, 29 de junho de 2012

Palavras do Sol Negro


O historiador assoprou com força, levantando uma nuvem de poeira e mofo. A câmara, iluminada apenas pelo fogo de duas tochas, era escura para a leitura. Mas qual opção ele tinha? Sentado no banco milenar, dentro do bolsão mais interior da gigantesca caverna, ele olhou, exasperado, para os milhares de pergaminhos.
Isso não é uma coleção documental, ele pensou, é Alexandria! Estou na biblioteca perdida. Puta que pariu! Respirava o ar carregado por milhares de anos de isolamento. Mesmo conhecendo os procedimentos, retirou a máscara branca que cobria a metade inferior de seu rosto. O pequeno monomotor estava no fundo do rio, provavelmente. As cobras que haviam chegado em uma caixa em suas acomodações quase o mataram, mas ele tivera sorte por estar cozinhando: a lâmina de um cutelo era, afinal, mais forte do que duas cascavéis. Mesmo assim, ele tivera sua dose de soros antiofídico. As lanças, espadas, pistolas e até mesmo dois assassinos com lança granadas. Ele estava vivo, superara todas as tentativas para barrar o conhecimentos. Inclusive os dois aborígenes mortos na entrada da caverna.
Depois de alguns dias perdido no labirinto escuro de estalagmites, e de quase ser atingido por estactites que se desprendiam convenientemente apenas quando ele estava por perto, ele havia encontrado as inscrições dos pergaminhos sobreviventes da mítica biblioteca. ‘Para aquele que nos encontrar’, leu na língua morta, sinais gravados diretamente na pedra da caverna, ‘volte para os seus, fique entre ele e não volte para os papéis do Sol Negro. Aqui existe morte e morte apenas’. Riu com escárnio após traduzir os complicados símbolos e continuou em seu caminho.
Finalmente estava onde deveria estar. Todos os passos de sua vida só ganhavam importância por levá-lo até este instante. Todo o resto, antes e depois, perdia a cor diante do colorido mosaico de pergaminhos que observava com olhos gulosos.
Esticou o longo pergaminho, produzindo uma nova nuvem de partículas provavelmente inexistente no planeta há mais de séculos. O pergaminho era lindo, nos olhos do historiador: desenhos góticos traçavam as bordas do couro animal, marcando o texto com belas gravuras. O estilo, no entanto, não correspondia com a data provável do documento. Anacronismos. Interessante, pensou enquanto seus olhos percorriam rapidamente as linhas arcaicas.
O historiador achou uma postura mais confortável e leu. Minutos e horas se mesclaram; dia e noite derreteram. Ele leu sobre a história da biblioteca de Alexandria, dos pergaminhos misteriosos e dos perigos que rodeavam aqueles que a frequentavam. Descobriu que o próprio Aristóteles havia incediado os papiros e pergaminhos com o óleo grosso das lanternas, afirmando estar salvando o mundo de mistérios que existiam para nunca ser revelados.
O mais impressionante é que há documentos de quase todos os séculos, que provavelmente foram adicionados depois. Todos os segredos estão aqui, ao meu alcance. Segredos que explicam o mundo além do nosso e das pessoas que controlaram e ainda controlam os rumos dos acontecimentos. Ele sorria, imaginando que Indiana Jones estaria com inveja naquele momento.
Colocou as mãos em um livro costurado em um couro escuro. Um pentagrama estampava a capa do livro, nada mais. Abriu o grande volume e começou a tentar traduzir os parágrafos. Uma mistura entre latim e inglês antigos se alternava entre as páginas, mas o texto fazia sentido... dentro dos padrões do próprio texto.
O livro contava sobre os primeiros deuses, monstros amórficos que viviam no oceano abissal; terrores da natureza que deixariam os homens loucos apenas com sua forma; seres sobrenaturais que chegaram em pedras do espaço; entidades que eram origem para mitologias inteiras. O historiador sentiu a própria sanidade fragilizada pelo texto.
O texto avançava, explicando a história dos homens e os momentos influentes no fluxo de acontecimentos que mudavam o modo de viver e pensar da humanidade. Era um prisma único, páginas que continham a verdade na mais pura forma. Conforme virava as páginas, sem perceber o estômago roncando por alimento ou os músculos duros e exaustos pelos dias de leitura constante, ele notou que o texto variava de estilo gramatical e regional. O latim se transformou em alemão antigo. Centenas de páginas depois, lia em italiano provinciano, depois algumas poucas páginas em chinês (felizmente traduzidas no mesmo italiano carregado de gírias locais) e, por fim, o velho e conhecido inglês, ainda que em sua forma pré-Shakespeare.
O livro estava narrando um personagem que procurava pela coleção perdida no fogo de Alexandria. Ele enfrentara os guardiões dos pergaminhos, sobrevivendo para condenar os homens ao horror. Parou de ler, sentindo um frio na espinha.
O historidor leu sobre estar lendo as linhas que narravam estar lendo as mesmas linhas.
Perdendo o controle sobre os membros, ergueu com esforço um dos braços e leu mais um pouco. ‘Com dificuldade, o historiador ergueu o braço direito e leu mais algumas frases. Sabia ele que estaria acordando forças ancestrais?’
Ele sentiu o coração disparar e conferiu o livro. Sim, estava escrito que seu coração estaria em um ritmo rápido. O historiador, curioso nato, virou as páginas que faltava para terminar o grande volume e leu as últimas linhas.
... fraco. Suas últimas forças foram utilizadas para sussurrar os encantamentos esquecidos. Grhol’ar Araramath Huorinthor! Ele disse. E os Terrores acordaram. O Sol escureceu, a Lua caiu e o próprio céu sangrou. Florestas mudaram de lugar, desertos congelaram e Oceanos evaporaram, matando bilhões em um só dia. Os homens ficaram loucos e sofreram. Até o último deles. Outra Era começava, apagando com fogo e morte a raça logo esquecida.
Depois daquela linhas, o livro estava em branco e muitas outras páginas se seguiam, igualmente vazias de palavras. Ele tinha que continuar a escrever o livro.
Voltou para a página marcada pelos dedos da outra mão e continuou a ler. Queria saber o que iria acontecer entre o ponto em que estava e o final do livro costurado com couro.
Em algum lugar das prateleiras, achou ter escutado uma risada sinistra.
Mas resolveu continuar a ler o mais rápido possível. As vozes em sua cabeça mandavam, ele obedecia.

Um comentário:

  1. SENSACIONAL. Me encanta seu estilo literario Mauricio. Neste conto, é deliciosa a "sobreposicao" de historiador/escritor. Conhecimento, aprendizado, criatividade e emocao sao apenas alguns dos ingredientes de tudo que voce escreve. Nao sou a mesma depois de ler voce. Continue filho... Parabens. Ana Eliza.

    SENSAZIONALE. Mi piace il tuo stilo letterario Mauricio. In questo racconto, è piacevole per "sovrapporre", lo storico / scrittore. Conoscenza, apprendimento, creatività ed emozione sono solo alcuni degli ingredienti di tutto quello che scrivi. Io non sono la stessa dopo leggere cosa scrivi. Continua figlio mio ... Cumplimenti. Ana Eliza.

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