“A curiosidade matou o gato.” Olhavam para a geladeira,
ambos sem coragem para abrir a porta branca e enferrujada do eletrodoméstico
antigo. Ímãs com propagandas de pizzarias, padarias ou videotecas se espalhavam
pelo branco sujo, ímãs de todos tamanhos e formatos. Havia até mesmo o número
de uma prostituta. Juravam que não sabiam quando ou quem tinha colocado aquele exemplar
na geladeira. Schrödinger tinha a voz rouca, parecida com a voz dos
investigadores de polícia nos filmes preto & branco que passavam na
televisão durante a madrugada. Ele gostava da própria voz e achava que os anos
com três maços de cigarro diários tinham deixado ao menos aquilo de bom. Uma voz
forte, com um quê sexy. Pelo telefone ele conseguiria qualquer mulher, tinha
certeza. Afinal, era difícil ver aquela barriga redonda e dura pelos fios da
comunicação em massa.
“O que é agora? Que
merda é essa sobre o gato? Não estou vendo gato algum.” Ele lambia os lábios.
Sempre que passava por algum stress ficava com os lábios secos. Odiava aquela
sensação: coração parecendo bateria de alguma banda de metal, os ataques
sucessivos de piscadelas no olho direito, o suor que escorria pela testa
enrugada. Logo teria que tomar algo para controlar a pressão. Merda. Esse suspense ainda me mata. Ao
menos não tinha a veia pulsante de Schrödinger.
O sol não entrava
suavemente pela janela do apartamento. Ah, o sol explodia pelas janelas do
apartamento, sem qualquer misericórdia, sem piedade. Ele estava lá para ter
certeza de que ninguém ficaria confortável. Se deixassem as cortinas fechadas
estariam suando como dois porcos gordos em poucos minutos. Precisavam do pouco
vento que entrava nos cômodos, ainda que morno e carregado pelo cheiro ácido
das pessoas que passavam na rua. A geladeira, pobre máquina que lutava contra
seus anos de fabricação chinesa, funcionava quando conseguia. Quando não,
suportava alguns chutes em seu motor e acordava novamente... talvez pela última
vez.
“O gato... você
sabe, o gato do meu tio-avô.” Sempre que podia ele lembrava as pessoas que
vinha da linhagem do famoso físico, principalmente agora que todos falavam
sobre o gato. “Sempre acreditei que essa expressão surgiu por causa do E”,
tentava não se irritar da forma como falava do verdadeiro Schrödinger com tanta
proximidade. Erwin era simplesmente ‘E’ nas suas histórias. Como se fossem
melhores amigos. Talvez ele tanha ficado com o famoso físico apenas uma única
vez em toda sua vida. Quando era bebê. E provavelmente estava dormindo. “Pense
comigo. O E escreveu que se você colocar um gato com um frasco de veneno em uma
caixa e a fechar, o gato pode tanto estar vivo quanto pode estar morto, certo?”
De novo a história do maldito gato. Suor escorria por todo seu corpo. Estava em uma cozinha ou dentro de um
forno? “Sim, eu sei do paradoxo, você contou milhares de vezes.” Pegou a toalha
que tinha pendurada no pescoço e enxugou o rosto. O tecido fedia sua própria
essência.
“Paradoxo não!
Paradoxo é quando algo não deveria acontecer mas acontece... como viagens no
tempo. Nesse caso nós temos duas possibilidades. O gato está vivo e está morto, percebe? Se não abrirmos a
caixa, isso dentro da janela de tempo em que o felino levaria para morrer de
inanição, o bichano pode ter estourado o compartimento de veneno e estará
espumando por todos os buracos, morto, morto, mortinho. Mas, e esse é um
grande, gra-aa-ande mas, o gato pode
ter ficado esse tempo todo apenas dormindo, como um anjinho. O veneno no frasco,
e o bicho pula para o mundo na primeira fresta.”
“Sim, sim.
Repetições, considere sua queda para contar a história do Gato de Schrödinger.
Eu sei das possibilidades, sei da maravilha quântica da incerteza paradoxal. O
que não compreendo é o que tem a curiosidade de culpa na morte do seu gato.”
“O gato não é meu.
Como poderia ser? É um gato hipotético!” Lançou contra o amigo em uma voz
aguda. “O gato está lá, vivendo sua vida ou morrendo sua morte e, excluindo o
fato de termos colocado o veneno em um ambiente herméticamente isolado, não
temos culpa de nada. Até que a curiosidade nos force a abrir a caixa. Pronto. A
curiosidade matou o gato. O gato que estava vivo e morto pode estar morto com
certeza. Logo, a curiosidade matou o gato.”
“Tecnicamente seu
tio-avô matou o gato. Pra quê colocar veneno com o animal, coitado.” Esticou a
mão e agarrou com firmeza o metal frio, pronto para abrir a porta, mas sentiu
os musculos retesarem. Por fim, limitou-se a enxugar o rosto novamente com a
imunda toalha.
Os dois homens
poderiam estar, não fosse o medo terrível que sentiam de enfrentar a verdade,
sentados confortavelmente no sofá, refrescando o corpo com cervejas geladas, o
frescor descendo pelas gargantas agradecidas, um filme antigo com John Wayne na
pequena televisão. Do outro lado da moeda, poderiam estar em desespero,
condenado a cruzar o tórrido deserto que era aquela tarde insuportavelmente
quente sem qualquer gota do néctar tão precioso e vital.
“A Geladeira de Schrödinger”,
disse Schrödinger sorrindo. “Você realmente não se lembra se temos mais
cerveja?”
“Não. Acho que vi.
Eu vi... não, não tenho tenho certeza.”
“Podemos ter
cervja... podemos não ter cerveja. Temos refrigerante? Suco? Chá gelado?”
“Não, não e nunca.”
Ele engoliu em
seco. Que dia terrível. “Temo... água?”
O outro apenas
abanou a cabeça em negativo.
Schrödinger segurou
na borracha que vedava o ar gelado. Quase abriu a porta, revelando por fim seu
destino e quebrando a penosa dúvida, mas a coragem lhe falhou no último
momento.
Minutos mais tarde,
sentados no couro das poltronas e completamente melados no próprio suor, os
dois homens tomavam água morna da torneira. As possibilidades continuavam e
ambos estavam inseguros se queriam pagar o preço da certeza. Por fim, o neto de
Douglas Adams perguntou, apenas para acordar a veia saltitante na testa do
distante parente de Schrödinger: “Então, quantos gatos você acha que seu
tio-avô matou?”
Muito bom! Adorei. Vc arrasou Maurício. Ana Eliza.
ResponderExcluirhahahaha... parece comentário de redação da professora de português, mas é realmente muito bom. Vc me fez refletir (como sempre)... muitas vezes nos deparamos com situações semelhantes e nos detemos pela incerteza, pelo medo do que podemos encontrar. Vc abordou o tema de uma maneira descontraída e bem humorada.
ResponderExcluirEngracado, nunca me arrependo por ler os seus contos.
ResponderExcluirE nao sou a professora de Portugues!!! Kkkkkkkkkkk,
Parabens! Meliza