sexta-feira, 8 de junho de 2012

A Curiosidade Bebeu a Cerveja


“A curiosidade matou o gato.” Olhavam para a geladeira, ambos sem coragem para abrir a porta branca e enferrujada do eletrodoméstico antigo. Ímãs com propagandas de pizzarias, padarias ou videotecas se espalhavam pelo branco sujo, ímãs de todos tamanhos e formatos. Havia até mesmo o número de uma prostituta. Juravam que não sabiam quando ou quem tinha colocado aquele exemplar na geladeira. Schrödinger tinha a voz rouca, parecida com a voz dos investigadores de polícia nos filmes preto & branco que passavam na televisão durante a madrugada. Ele gostava da própria voz e achava que os anos com três maços de cigarro diários tinham deixado ao menos aquilo de bom. Uma voz forte, com um quê sexy. Pelo telefone ele conseguiria qualquer mulher, tinha certeza. Afinal, era difícil ver aquela barriga redonda e dura pelos fios da comunicação em massa.
“O que é agora? Que merda é essa sobre o gato? Não estou vendo gato algum.” Ele lambia os lábios. Sempre que passava por algum stress ficava com os lábios secos. Odiava aquela sensação: coração parecendo bateria de alguma banda de metal, os ataques sucessivos de piscadelas no olho direito, o suor que escorria pela testa enrugada. Logo teria que tomar algo para controlar a pressão. Merda. Esse suspense ainda me mata. Ao menos não tinha a veia pulsante de Schrödinger.
O sol não entrava suavemente pela janela do apartamento. Ah, o sol explodia pelas janelas do apartamento, sem qualquer misericórdia, sem piedade. Ele estava lá para ter certeza de que ninguém ficaria confortável. Se deixassem as cortinas fechadas estariam suando como dois porcos gordos em poucos minutos. Precisavam do pouco vento que entrava nos cômodos, ainda que morno e carregado pelo cheiro ácido das pessoas que passavam na rua. A geladeira, pobre máquina que lutava contra seus anos de fabricação chinesa, funcionava quando conseguia. Quando não, suportava alguns chutes em seu motor e acordava novamente... talvez pela última vez.
“O gato... você sabe, o gato do meu tio-avô.” Sempre que podia ele lembrava as pessoas que vinha da linhagem do famoso físico, principalmente agora que todos falavam sobre o gato. “Sempre acreditei que essa expressão surgiu por causa do E”, tentava não se irritar da forma como falava do verdadeiro Schrödinger com tanta proximidade. Erwin era simplesmente ‘E’ nas suas histórias. Como se fossem melhores amigos. Talvez ele tanha ficado com o famoso físico apenas uma única vez em toda sua vida. Quando era bebê. E provavelmente estava dormindo. “Pense comigo. O E escreveu que se você colocar um gato com um frasco de veneno em uma caixa e a fechar, o gato pode tanto estar vivo quanto pode estar morto, certo?”
De novo a história do maldito gato. Suor escorria por todo seu corpo. Estava em uma cozinha ou dentro de um forno? “Sim, eu sei do paradoxo, você contou milhares de vezes.” Pegou a toalha que tinha pendurada no pescoço e enxugou o rosto. O tecido fedia sua própria essência.
“Paradoxo não! Paradoxo é quando algo não deveria acontecer mas acontece... como viagens no tempo. Nesse caso nós temos duas possibilidades. O gato está vivo e está morto, percebe? Se não abrirmos a caixa, isso dentro da janela de tempo em que o felino levaria para morrer de inanição, o bichano pode ter estourado o compartimento de veneno e estará espumando por todos os buracos, morto, morto, mortinho. Mas, e esse é um grande, gra-aa-ande mas, o gato pode ter ficado esse tempo todo apenas dormindo, como um anjinho. O veneno no frasco, e o bicho pula para o mundo na primeira fresta.”
“Sim, sim. Repetições, considere sua queda para contar a história do Gato de Schrödinger. Eu sei das possibilidades, sei da maravilha quântica da incerteza paradoxal. O que não compreendo é o que tem a curiosidade de culpa na morte do seu gato.”
“O gato não é meu. Como poderia ser? É um gato hipotético!” Lançou contra o amigo em uma voz aguda. “O gato está lá, vivendo sua vida ou morrendo sua morte e, excluindo o fato de termos colocado o veneno em um ambiente herméticamente isolado, não temos culpa de nada. Até que a curiosidade nos force a abrir a caixa. Pronto. A curiosidade matou o gato. O gato que estava vivo e morto pode estar morto com certeza. Logo, a curiosidade matou o gato.”
“Tecnicamente seu tio-avô matou o gato. Pra quê colocar veneno com o animal, coitado.” Esticou a mão e agarrou com firmeza o metal frio, pronto para abrir a porta, mas sentiu os musculos retesarem. Por fim, limitou-se a enxugar o rosto novamente com a imunda toalha.
Os dois homens poderiam estar, não fosse o medo terrível que sentiam de enfrentar a verdade, sentados confortavelmente no sofá, refrescando o corpo com cervejas geladas, o frescor descendo pelas gargantas agradecidas, um filme antigo com John Wayne na pequena televisão. Do outro lado da moeda, poderiam estar em desespero, condenado a cruzar o tórrido deserto que era aquela tarde insuportavelmente quente sem qualquer gota do néctar tão precioso e vital.
“A Geladeira de Schrödinger”, disse Schrödinger sorrindo. “Você realmente não se lembra se temos mais cerveja?”
“Não. Acho que vi. Eu vi... não, não tenho tenho certeza.”
“Podemos ter cervja... podemos não ter cerveja. Temos refrigerante? Suco? Chá gelado?”
“Não, não e nunca.”
Ele engoliu em seco. Que dia terrível. “Temo... água?”
O outro apenas abanou a cabeça em negativo.
Schrödinger segurou na borracha que vedava o ar gelado. Quase abriu a porta, revelando por fim seu destino e quebrando a penosa dúvida, mas a coragem lhe falhou no último momento.
Minutos mais tarde, sentados no couro das poltronas e completamente melados no próprio suor, os dois homens tomavam água morna da torneira. As possibilidades continuavam e ambos estavam inseguros se queriam pagar o preço da certeza. Por fim, o neto de Douglas Adams perguntou, apenas para acordar a veia saltitante na testa do distante parente de Schrödinger: “Então, quantos gatos você acha que seu tio-avô matou?”

3 comentários:

  1. Muito bom! Adorei. Vc arrasou Maurício. Ana Eliza.

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  2. hahahaha... parece comentário de redação da professora de português, mas é realmente muito bom. Vc me fez refletir (como sempre)... muitas vezes nos deparamos com situações semelhantes e nos detemos pela incerteza, pelo medo do que podemos encontrar. Vc abordou o tema de uma maneira descontraída e bem humorada.

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  3. Engracado, nunca me arrependo por ler os seus contos.
    E nao sou a professora de Portugues!!! Kkkkkkkkkkk,
    Parabens! Meliza

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