Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel
Austeriana (2): o texto de Charlote
As folhas ainda estavam em minhas mãos enquanto olhava fixamente o papel em vez de encarar Charlote. Era minha maneira de refletir a respeito do que li sem que ela percebesse ativamente meus pensamentos. Embora a narrativa fosse centrada nela como pessoa e personagem, me reconheci em algumas linhas, calculando que esta era sua sensação ao se reconhecer nas minhas.
Austeriana (2): o texto de Charlote
As folhas ainda estavam em minhas mãos enquanto olhava fixamente o papel em vez de encarar Charlote. Era minha maneira de refletir a respeito do que li sem que ela percebesse ativamente meus pensamentos. Embora a narrativa fosse centrada nela como pessoa e personagem, me reconheci em algumas linhas, calculando que esta era sua sensação ao se reconhecer nas minhas.
- Eu pareço assim tão, tão... – ela começou a rir e meneou a cabeça – idiota?
Mas me parecia mais do que isso. Talvez eu nunca tivesse compreendido totalmente como havia, naquele momento, a completude do autor, personagem, leitor. E de como as histórias poderiam se moldar de uma maneira que estes patamares, em tese separados, se tornassem um novelo enevoado.
- Normalmente, sim. Acho que tem a ver com a concepção de se sentir diferente por escrever. – ela mesma se atropelou nas palavras – eu sei o que vai dizer, nem todo mundo que escreve é um escritor, mas vou te considerar como um.
Depois de anos escrevendo, era como se eu não soubesse ainda o sentido total por trás das palavras. Não a busca sistemática por encontrar-se no texto ou buscar, a partir dele, uma razão universal, mas a motivação escondida nas escrituras. Ao menos de minhas narrativas.
Charlote continuava apreensiva. Procurei selecionar minhas palavras com cuidado.
- Você tem medo de ser uma personagem?
- Talvez. Acho que as lembranças tornam-se mais sensíveis com elas. Ou posso parecer exagerada, talvez tenha exagerado no texto também.
- Não. A equação muda de escritor para outro, mas o resultado é o mesmo. Projeção, imaginação, trabalho árduo. Se você dissecar o texto, a composição parece fácil. Mas são apenas personagens vivendo uma história, Charlote. Há quem sinta falta deles quando o final do livro se aproxima, porém, por mais que estas personagens me inspirem, continuam sendo personagens.
- ...
- Lhe falta sempre alguma coisa. A completude, o erro, o paladar. Falta a demência humana.
- E se forem um desses personagens românticos, eles não deveriam ser dementes também?
- Acho que se torna invariável. Admiro mais as personagens que os humanos por sua lineariedade. Atingem seus objetivos mesmo com grande dificuldade. São criadas para irem de um lado para outro em uma história e são bem sucedidas, enquanto na vida real tudo é mais falho. Gosto do entusiasmo das personagens.
- ...
- E parte da força de um escritor vem de uma superioridade de se achar no direito de conhecer suas personagens ou de saber compreender uma parcela da alma humana. Gosto de acreditar que te conheço, embora saiba que não. Mesmo que especule que conheço a personagem e que a admire, isso é um engano. O reflexo é ela, não você. Mas, às vezes, para o leitor, isso não é claro, por isso as personagens criam vida.
- E existe outra Charlote por aí, da mesma maneira que existo. Mas ela não sabe sobre mim.
- É um tanto metafísico, mas pode se pensar por aí. Mas eu dizia que nem sempre um texto demonstra suas intenções iniciais. A criação primordial do autor pode se modificar. Se você lesse um “eu te amo” em uma narrativa, poderia imaginar que fosse uma declaração apaixonada se essa for sua interpretação, ou talvez seja a tendência momentânea de seu entusiasmo. Outro, frustrado, poderia achar uma ironia. Metade da narrativa está escondida em quem lê.
Não havia mais o que lhe dizer a respeito. Era este um dos conceitos da própria composição literária e, somente quando me tornei uma personagem, pude compreender. A urgência de histórias que precisam ser despejadas no papel, o desespero que muitos o fazem e o mesmo desespero que estas palavras são devoradas.
- Não se preocupe com isso, Charlote. Você, como personagem, será confundida um milhão de vezes com outras pessoas. O reflexo não é funcional como um espelho. É, continuando nessa ideia de um jogo de luz e sombras, uma imagem à meia luz. Se reconhecer em uma personagem é o mesmo que caminhar em uma noite escura. Às vezes passam vultos por nós e, até sabermos se conhecemos ou não alguém que passa ao nosso lado, é necessário um prazo de análise e compreensão. Nem sempre a Charlote personagem vai ser você mesma. Vai se transmutar entre outras pessoas que vão jurar que a personagem nasceu para ela.
- Eu gosto da personagem como eu gosto de mim, de alguma maneira.
- Agradeço pela sua boa vontade. Você é muito gentil.
Charlote e eu conversaríamos sobre literatura mais algumas vezes. Mesmo que tentássemos evitar a ideia romântica, debruçaríamos sobre o argumento como se fosse um mistério. Sabíamos que, no fundo, autores não são tão imortais quanto suas obras. E talvez por isso desejássemos nos transformar também em personagens. Para, mesmo que de uma maneira ínfima, viver à beira da morte sem nunca perecer propriamente.
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