sexta-feira, 3 de maio de 2013

As Brumas do Farol 12 - Final - "The Rain Song"

Assim para o prefácio, "A Lanterna", todo o Brumas é dedicado para Ana Eliza. Obrigado por tudo.
Link para todas as partes: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/search/label/Brumas


Paul ficou surpreendido com a pele quebradiça do homem que surgira do nada, do puro ar - era um órgão sem vida, translúcida e opaca. Estranho, estranho, estranho. Ele estava magro e o garoto podia contar os ossos distinguíveis, se quisesse. O garoto cogitou entregar um de seus doces para o homem, mas o Guia pareceu ler sua mente e o impediu.
“Você provavelmente iria matá-lo,” disse com uma voz grave, “o corpo dele não está pronto para tanto açúcar, garoto, o açúcar vai parar de vez o organismo deste homem. Vamos, vamos ajudá-lo a se levantar, acho que isso vai chacoalhar a poeira… ao menos um pouco.”
“Eles… eles estão soltos.” O homem barbudo começou a chorar como uma criança. Paul sentiu milhares de facas despedaçarem o seu coração. Era uma visão triste presenciar o estado deplorável do homem, completamente vulnerável e privado de forças; chorava copiosamente. Um choro de culpa. “Os Pe-pe-pesadelos…,” fungou um catarro amarelado que escapava das narinas ressecadas, “os Pesadelos estão soltos e é tudo culpa minha, por quebrar a lanterna. Eu quebrei a lanterna e machuquei o velho.” Lágrimas caíam no chão do Farol e Paul achou que o homem viraria um amontoado de pó depois de perder mais água. “Eles me prenderam e escaparam. Escaparam, vocês entendem? Eu os soltei!”
“Calma, calma. Não há nada que não possamos arrumar,” o Guia mudou a voz para um tom mais calmo. Eles sabiam que o desespero nos olhos do homem desmentiam as palavras calmas, mas o homem pareceu se acalmar de fato. Paul segurou um dos braços magros e o ajudou a sentar, encostado na lanterna do Farol.
O garoto então parou para olhar ao redor. Observou a beleza majestosa do Bosque, as árvores colossais que erguiam os galhos e folhas ao céu azul e límpido; pássaros exóticos mergulhavam entre a vegetação e voltavam com pequenos mamíferos nos bicos, aproveitando o largo campo de visão reconquistado. Havia magia naquele cenário, Paul tinha certeza, algo natural e antigo, enterrado na memória de culturas sem escrita, confundida por mitologia para as outras civilizações. Sentia uma estranha familiaridade, agora que a Bruma estava dissipada, uma nostalgia que tomava conta de seu coração, como se ele fosse parte daquele cenário, tão parecido com os mundos dos livros que lia escondido de seus pais. Duna, Terra Média, Nárnia, a cidade de Tanelorn e a Roda do Tempo… por que sinto que nada disso é apenas literatura? Acho… acho que sou parte do Bosque.
Um barulho cortou seus pensamentos e Paul virou a cabeça. Jimmy e Robert entraram pela pequena porta de metal e andaram até eles, analisando o cenário, alertas por causa da destruição do lugar.
“O Dragão?” Paul e o Guia perguntaram em perfeita sincronia.
“Não será mais um problema,” Robert respondeu. Cortou o passo que dava e desembainhou alguns centímetros da katana presa à sua cintura. “Quem é esse homem?”
“Este homem foi o que causou o caminho de vocês.” Ele achou uma posição mais confortável e enxugou as lágrimas que ainda caíam pela face angular. “O que vocês sabem sobre esse lugar?”
Paul sentou na frente do homem e respodeu: “Não muito. Um velho nos parou na volta da escola e aqui estamos. Tudo que precisávamos fazer era atravessar a Bruma com o Guia e recuperar o Fogo do Farol.” Olhou para a própria barriga. E agora eu sou o Farol, pensou, sentindo um sopro surreal no estômago.
“O velho achou vocês também. Ele é a chave da porta que impede o mundo como conhecemos de vazar para outras realidades, ele mantém cada sala fechada, cada mundo em seu próprio território. Assim as realidades não encostam umas nas outras, ficam em seu devido lugar, evitando catástrofes em escala inimaginável. Ao menos era o que ele fazia até todos nós esquecermos nossos papéis. Eu sou o Guardião… era o Guardião. Seguia meus dias em um trabalho massacrante, entediado e cego para quem era. Até que os sonhos começaram. Todas as noites eu sonhava com uma porta. Os lugares mudavam, quem eu era no sonho também mudava, mas sempre havia uma porta e ele teria de ser aberta. Antes de conseguir, toda santa noite, antes de conseguir abrir a porta, uma luz me tirava do sonho e eu acordava às duas ou três da manhã e não conseguia dormir mais. Isso começou a acumular dentro da minha paciência. As noites mal dormidas, a sensação de que alguém atrás da porta me chamava, clamava por socorro. Eu precisava espiar atrás da porta! Mas o velho com a lanterna na minha cara… eu pensava que ele era meu inimigo, meu obstáculo final… até o dia em que o encontrei no trem. O mesmo velho, vestido com o uniforme de sempre, portando a longa lanterna que me acordava noite após noite. Eu o ataquei e quebrei a lanterna.” Novas lágrimas molhavam suas bochechas. “Naquela noite eu abri a porta e soltei os Pesadelos no mundo.”
Normalmente, Paul desviaria daquele homem, tentando ao máximo ignorar sua existência. Ele podia ver a cena, voltando para casa com a mochila carregada de livros, formando um arco na calçada para ficar fora da área de alcance do bêbado barbudo sentado na calçada. Pelos céus, Paul provavelmente mudaria de calçada apenas para fugir do cheiro de urina. Mas naquele lugar ele era a peça central. “Como você adquiriu o conhecimento?” Quando ficava sério, Paul tendia a ser formal e ele acabava falando de vários modos, mas nunca como uma criança.
“Depois de um tempo no mundo dos Pesadelos tudo voltou em minha mente, claro como um quadro que esteve em uma sala escura esse tempo todo. Eu simplesmente acendi a luz, rapaz. Eu, você… todos nós. Nós somos parte do alicerce de toda a realidade, somos agentes deste universo, se preferir. O Guia tem uma função que apenas ele pode realizar. Ele encontra o caminho, porque seus olhos já viram mais de uma realidade e ele aprendeu a ver além dos obstáculos mundanos; você pode carregar o Fogo do Farol pois mantém a mesma natureza em qualquer realidade. Aquele garoto” - apontou para Jimmy - “é a porta que nos liga às Terra Distantes e o mundo do sonho pode nos levar para qualquer outra passagem. Cada um de nós carrega um papel único. E isso é verdade para cada um dos seres vivos. Tudo está ligado e para girar, o universo precisa de todas as peças. Cada uma delas. Quando uma cessa o movimento, tudo desmorona. E o nosso Escritor parou de escutar a voz, rapazes, ele está deixando nossa memória morrer. Pelo que entendi, e posso estar totalmente - totalmente - errado, o Escritor mantém a mágica fluindo. Nossos papéis são definidos por ele, nossos poderes melhorados por sua escrita e nosso caminho praticamente traçado. O problema é que ele parou de escrever. E um escritor somente pode ser chamado como tal quando escreve. Por isso nossas memórias se enfraqueceram e morreram. O velho tinha a lanterna, um lembrete de sua natureza e assim conservou suas tarefas. Mas eu… eu ignorei meu papel e fiz exatamente aquilo que deveria impedir.” Sua voz estava fraca e ele se cansava apenas por falar. “Quando fiquei preso no mundo dos Pesadelos, percorrendo um mundo escuro e vazio, gélido como uma noite no meio do inverno, eu vi novamente uma luz me guiando. O Farol. Vocês me tiraram de lá. E acho que é nosso dever prender novamente as abominações que libertei. Depois, precisamos fazer o escritor voltar a criar.”
Ficaram em silêncio absoluto. O Farol deveria ser a linha de chegada e significaria o fim da loucura, o fim do Bosque e o retorno para casa.
“Bem,” Robert quebrou o silêncio, “acho que sentiria falta da katana, de qualquer forma. Conte comigo.” Jimmy colocou a mão sobre um dos ombros do samurai, apoiando a decisão e pesando seu voto.
O Guia moveu a arma dentro do coldre. Sentir seu peso o acalmava. “De quantos Pesadelos estamos falando?”
“Eu não sei. Eu vi marinheiros escapando pela abertura que criei, frutos dos navios à deriva, de homens mortos pela inanição terrível quando os ventos pararam de soprar em suas velas; krakens, orcs, dragões, palhaços assassinos… o pesadelo de milhares de crianças… moscas gigantes… uma mulher que conseguia voltar no tempo… Eu realmente não sei quantos ou como encontrá-los.”
“Ou como pará-los.”
“Ou como pará-los,” concordou. “Vamos para as Terras Distantes. Lá poderei me curar mais rapidamente e vamos ter uma noção melhor de onde procurar. Só assim poderei reparar meu erro.”
“Vamos,” Paul concordou. Ele era o Fogo. Não poderia voltar para a Londres cinzenta. O garoto sentia que teria ataques de raiva e enjôos cada vez que olhasse pela janela e encontrasse o nevoeiro da capital inglesa. Não queria mais olhar para o céu escuro. Ele era, afinal, o Fogo do Farol.
O homem que vivia outra vida também não tinha escolha. O grupo precisava de sua habilidade de encontrar caminhos e os levar do ponto A para o ponto B. Ele já não tinha uma casa de verdade… sequer um mundo de verdade. Talvez fosse um caminho para casa. Talvez estivesse preso ao seu próprio pesadelo. Suspirou profundamente e atravessou Jimmy, entrando nas Terras Distantes.
Paul, Robert e o Guardião começaram a seguir o Guia. Apenas John permaneceu parado no lugar. Atagarasu disse que corvos são criaturas solitárias. E o garoto que era um pássaro começou a acreditar nas palavras do Corvo de três patas, uma pata para cada revelação, uma garra afiada para cada verdade que o machucava profundamente. John não iria com o grupo. Corvos eram criaturas solitárias, de fato.
Pela primeira vez, o pássaro pôde sentir os olhos de Jimmy. No Farol restava apenas os dois amigos e no olhar do Corvo um brilho de despedida.
Jimmy assentiu com a cabeça e desapareceu.
O Corvo bateu as asas e deixou o Bosque para trás.

Um sol fraco brilhava no céu, além do topo de algumas árvores. Em algum lugar, latidos de cachorros ecoavam e faziam com que pássaros disparassem rapidamente por todas as direções. Ele moveu os braços, queria acompanhar os animais que voavam livremente. Por todo seu corpo, pontos de dor explodiam com o mais simples dos movimentos. Palavras. As vozes que ouvia estavam longe a apenas um leve toque das palavras chegavam até ele, fracas o suficiente para não ter sentido. Uma luz atingiu seu rosto e ele esperou acordar de um pesadelo, coberto de suor no conforte de sua cama. Ficou desnorteado quando o mundo continuou e o tempo prosseguiu. Por que não acordei?
Por que o mundo continuava?
Logo outra voz se juntou à primeira. E mais uma. E mais uma. Em poucos minutos, o garoto estava cercado por homens e mulheres de jaleco amarelo, dois cachorros farejavam e latiam para ele. Uma maca e algumas dezenas de jornalistas depois, ele estava em uma ambulância.
Era notícia mundial. Dos quatro garotos desaparecidos no bosque, apenas um retornou para casa. Um dos irmãos, a mídia mundial ressaltou. Encontrado deitado em uma vala, perto da entrada de uma caverna nunca antes notada, ele estava desnutrido e semi-consciente. Mais notícias depois do intervalo.
Não lembrava de muita coisa, não sabia como havia entrado ou saído da caverna, ou onde os outros estavam. Sua história foi o mistério do ano e bateria após bateria de interrogatórios e sessões psiquiátricas, nada mais foi revelado. Ele foi alvo de filmes, músicas, investigações profissionais e três médiuns que diziam ter sonhado com corvos.
Mas ele simplesmente não tinha memórias do que acontecera. Mal lembrava do próprio irmão, como poderia se lembrar de outras duas crianças desconhecidas?
Todos o chamavam de Alice, pois entrara no buraco do coelho. Britânicos têm um humor estranho. Ele, no entanto, gostava de se chamar de Bilbo. Lá e de volta outra vez. Mesmo sem saber exatamente onde ou o porquê. Ele fora e voltara. Missão feita, olhar para o futuro.
A história ganhou pó; o quarto de seu irmão foi desmontado e seus pais nunca mais tocaram no assunto. A mídia se cansou do garoto e os microfones se viraram para o próximo adolescente drogado que atirou em um casal de idosos para roubar dez libras. Ele cresceu. Aprendeu na escola e arrumou brigas, namoradas. Usou drogas e roubou carros; depois, conseguiu um diploma e vestiu um terno, seguiu o caminho dos justos, costumava dizer. Por toda a vida, manteve duas paixões: a primeira eram os pássaros. Ele tinha cartazes colados em todos os cômodos da casa e o predileto, um cartaz originado d’Os Pássaros, de Hitchcock, em um quadro acima da cabeceira de sua cama. A segunda paixão era a música. Ele tinha qualquer coisa que havia encontrado sobre o Led Zeppelin. Algo na voz de Robert Plant e na guitarra de Jimmy Page construía uma magia absurda, que rodava no conforto do baixo de John Paul Jones.
Sentia-se, entretanto, isolado do resto do mundo. Parte sua, ele sabia sem saber o quanto, estava em outro lugar. Talvez em outros mundos, pensava com um sorriso no canto da boca. Uma sombra em seu peito dizia que não estava onde deveria estar e corvos se juntavam em grandes círculos toda vez que ele permanecia muito tempo em um mesmo lugar. Passava as noites acordado, olhando a chuva caindo sobre a grama fresca, escutando a música das florestas, escutando seu chamado. O mundo continuou e ele queria descobrir porque.
Até que os sonhos vieram, anos mais tarde. Sempre corvos. Sonhava com os pássaros negros todas as noites. Eles grasnavam algo importante, mas não podia entender aquela língua e, em fúria, os animais atacavam seu rosto, arrancando olhos, nariz e lábios. Noite após noite após noite, um Prometeu moderno.
Os sonhos se transformaram em pesadelos.
E o menino, agora um homem, voltou a ser corvo.

Um comentário:

  1. INCRÍVEL. Doze semanas de magia sem fim, com muita ação e criatividade descritas de uma maneira desenvolta e graciosa. Final surpreendente que causa arrepios. PARABÉNS Mau e muito, muito obrigada pela dedicatória, você me levou às lagrimas. Te amo filho. E mais uma vez muito obrigada. Continue sempre...

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