sexta-feira, 10 de maio de 2013

Marte não pede por óculos (2)

Primeira parte: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/05/marte-nao-pede-por-oculos-1.html


Harry fechou os olhos e controlou os impulsos violentos que procuravam o controle de suas ações. “Brenda, querida, não podemos olhar para trás o tempo todo, as coisas vão melhorar, você vai ver. Estou entrando no último quarto do livro e você sabe o quanto escrevo rápido nesses finais. Está tudo pronto, o cenário já está montado, as pessoas sentadas do outro lado da cortina vermelha… tudo que preciso fazer é colocar as palavras certas nas bocas das pessoas e entregar um final memorável”, Brenda notou com um certo asco o tom condescende de Harry e teve vontade de jogar em seu rosto o que lhe sobrava de vinho. Tomou-o no entanto, não iria desperdiçar uma boa garrafa daquele jeito, não com aquele homem.
“Seus livros são…”, parou novamente.
“São o quê, brenda?” Ela olhou para longo, ignorando os olhos opacos do escritor. “Vamos, o que você ia dizer sobre meus livros?”
“Eu não quero brigar, deixe estar.”
“Não, não vou deixar. O que você tem a dizer sobre meus livros, Brenda?”, cuspiu o substantivo entre lábios cerrados.
Brenda fechou o Murakami com um baque abafado. “Ok, porra. Seus livros são difíceis de engolir, você não arrisca em suas histórias, não inova. Seus livros não farão novos fãs, Harry. É isso, eis o que você tem: fãs que morrerão entre um livro e outro, até que seu nome não consiga mais vender a bosta de uma revista de fofocas. Então não me venha com essa merda de que tudo vai melhorar no próximo outono, não, vocês venderão o que sempre venderam, talvez menos, e a gente ainda vai continuar afundado até o pescoço nessa merda alemã!”
“Olha eu sei que foi cagada minha, mas eu te disse, você pode pular fora do barco quando quiser.” Arrependeu-se das palavras um momento antes delas saírem de sua boca, mas não conseguiu segurá-las. Odiava quando a tratava mal daquela maneira. Porra, você pode ser uma puta ingrata, às vezes, pensou em silêncio. Ele apertou a mão dela com delicadeza. “Desculpe, meu amor. Você… eu te devo tudo por ainda estar aqui, por não me abandonar. Não foi justo o que acabei de dizer.”
“Harry, o que estou tentando explicar é que seria muito errado apostar tudo que temos em um único cavalo…”
“Não há cavalo algum, meu amor. Não é uma aposta de risco. Por favor, acredito no meu trabalho!”
Ela suspirou. “Eu sinto falta disso”, disse.
“Disso o quê? Me humilhar? Tirar qualquer crédito profissional que tenho?”
“Chega, Harry, me desculpe. Não quis ofender. É que nossa situação financeira não estará boa para sempre e acho que vivemos em uma bolha utópica, isso não é bom. Esse livro, esse cara, ele me fez perceber o quanto estamos fechados um com o outro, amor. Quero viver como os diálogos desses livros, reais, verdadeiros, com algum significado! Uma conversa, olho no olho, nossos narizes quase encostando, a saliva voando pelos lados no meio dos berros.” Ela o encarava profundamente, agora em um olhar etílico. Brenda arquejava e Harry achou por um segundo que a mulher iria vomitar sobre a manta que a cobria ou em cima da flanela que usava. Ela abriu a boca, não para vomitar, mas para se livrar de um peso que esmagava seu peito há anos. “Por quanto tempo você a comeu?”
Ele soltou os dedos gelados da mulher e encarou o teto, soltando um grunhido carregado de ira. “Eu não vou fazer parte disso.”
“Sim, você irá”, respondeu. “Escute bem, seu filho de uma puta, se você quiser que eu continue presa nesse apartamento dentro da merda dessa cidade fedorenta, é melhor abrir essa boca inútil e começar a falar, eu preciso disso, entendeu? Preciso ter uma conversa verdadeira neste instante, sem ter medo de pisar em ovos, sem tatear em um labirinto de espinhos. Por quanto tempo vocês tiveram um caso?”
“Duas semanas”, disse com a cabeça apoiada nas duas mãos, cabelo caindo entre os dedos cravados no couro cabeludo. “Simplesmente aconteceu, não foi nada planejado.”
“Nada planejado por duas semanas?”
Ele não achou resposta para dar.
“O que vocês fizeram?”
“Oh, Brenda, qual é.”
“Esse seu caso destruiu nossas vidas, Harry. Eu quero saber dessas coisas.”
“Sem pisar em ovos, certo?” Ela concordou com um aceno da cabeça. “Fizemos muitas coisas, mais do que eu poderia repetir sem vomitar nos meus pés. Ela gostava de me… ela gostava de sexo oral. Eu precisava de um escape, Brenda, era muita pressão, você não entende. Era isso ou enfiar um escopeta na minha boca e espalhar meu cérebro na parede da garagem. Eu nunca, nunca, nunca quis te machucar, não fiz isso par…”
“Você gostava dela?”
“Porra Brenda. Você e esses livros malucos.”
“Você gostava dela? Responda.”
“Não… sim, não sei.” Ficaram um tempo olhando para as estrelas no céu de Berlim. Era uma noite clara, a lua gorda lançava sobre aquela parte da Terra uma luz espectral e as rajadas de vento ficavam mais fortes e geladas. Logo teriam de entrar no apartamento a fim de não pegarem uma forte gripe. “Era uma mulher bonita, o que você quer escutar de mim? Ela era linda, sensual. Você não estava falando direito comigo, eu sei que estava insuportável naqueles dias, amor, mas tinha tanta coisa girando em minha cabeça… tantas preocupações e ansiedades. Transamos algumas vezes e mais nada. Bem, havia a coca, é claro. Mas não senti nada por ela, ou duvidei que te amava.”
Parecia que Brenda poderia socá-lo naquele instante. Harry sentiu-se um amontoado de clichês. O isolamento que ele próprio construiu no relacionamento, o eventual contato com sua secretária, deixar-se seduzir, pular naquele turbilhão sem retorno de pernas, braços, orgasmos e cocaína. Essa foi a primeira fase. A segunda era ainda mais previsível. Ele voltou para Brenda, arrependido, jurando amor incondicional dali pra frente e suas opções não eram melhores, ele podia apenas rezar para que ela o aceitasse de volta. Orar fora justamente a principal ocupação de Harry naquelas semanas seguintes à morte de Monique. Eles se trancaram em um hotel por dois dias e três noites, ela cheirou um caminhão do pó branco e teve um overdose fatal, apagam-se as luzes e o palco fica devastado pelo fim da peça. Os jornalistas, a vergonha, o escândalo. Ele foi para fora do país, esperar a poeira abaixar e voltar com um romance pronto para atingir as prateleiras, contornar a situação e trabalhar em sua imagem. Ele rezou para ficar longe da prisão. Rezou para não ser exilado do seio familiar. Mas suas rezas mais fervorosas eram pelo perdão de sua esposa. Brenda o aceitou de volta, o que mais poderia fazer? A menina fora estúpida o suficiente para cheirar mais pó em um só dia do que seu nariz encontrara a vida toda e Harry parecia sincero, afundado em um próprio tanque de medo, arrependimento e dor. Sim, ela o aceitaria de volta; sim, iria para a Alemanha, quem sabe seria um lugar bom para ela.
“Eu estou no meu limite, Harry. O livro acendeu algumas luzes na minha cabeça e acho que não tenho como ignorar o que foi iluminado. Estamos em uma encruzilhada, percebe a seriedade disso? Eu preciso saber, de verdade, se você está dentro do próprio jogo, seguindo as regras certas. Quero uma atualização do seu livro, quero que esteja sóbrio”, com um tapa jogou longe o resto de bourbon que ele segurava. “Quero minha vida de volta, você está pronto para devolvê-la?”
Ele olhou para as estrelas. Um ponto vermelho piscava no céu, brilhando como sempre. Por quanto tempo, ele não poderia dizer. Quem sabe mais tempo que a própria Terra. Imaginou-se de pé naquele ponto vermelho, com sorte um planeta rochoso. Naquele lugar ele não existia e tudo que fizera, todos seus erros, todas as pessoas que havia machucado não importavam. Alí ele podia novamente ser quem realmente era, alí poderia escrever com toda sua alma. Aquilo é Marte? Ou é Orion? Preciso ler mais sobre astronomia. Estava pronto para voltar e encarar o julgamento de todos? As pessoas amavam as histórias sobre decadência sexual regada à drogas e mortes, mas gostavam igualmente da escalada de volta ao topo? Brenda estaria esperando para refrescar seu corpo cansado uma vez terminada a escalada?
O escritor sentia o cheiro de vinho e bourbon. Retirou os óculos da face redonda e os entregou para a mulher ao seu lado. Sem a correção do vidro polido não podia ver as expressões de Brenda, era impossível prever a direção que estavam seguindo. Abriu a boca e deu a melhor resposta que poderia dar, a única que tinha, verdade seja dita. “Veja, eu limpei as lentes.”

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